domingo, 7 de julho de 2024

Bernardo Mello Franco - Avalanche na ilha

O Globo

Eleições britânica devolveu poder aos trabalhistas e puniu Partido Conservador por apostas no Brexit e na redução do Estado

Foi uma avalanche, como dizem os britânicos. Depois de 14 anos na oposição, o Partido Trabalhista festejou uma vitória histórica no Reino Unido. A centro-esquerda voltou ao poder com uma supermaioria. Conquistou 412 cadeiras, quase dois terços da Câmara dos Comuns.

As manchetes parecem sugerir que a ilha se pintou de vermelho. Não foi bem assim. Apesar do triunfo, os trabalhistas receberam 500 mil votos a menos que na última eleição. O que definiu o resultado foi a derrocada do Partido Conservador, de direita. Sua votação despencou de 44% para 24% em cinco anos.

A bancada conservadora encolheu de 372 para 121 cadeiras — pior desempenho em quase dois séculos. Ao admitir a derrota, o primeiro-ministro Rishi Sunak reconheceu que os britânicos estavam com raiva de seu partido. “Sinto muito”, desculpou-se, no discurso de despedida.

A saída melancólica de Downing Street encerrou um ciclo iniciado em 2010, com a ascensão de David Cameron. Em 14 anos, os tories venceram quatro eleições, indicaram cinco primeiros-ministros e protagonizaram crises em série. O período pode ser resumido em duas apostas: no Brexit e na austeridade econômica. Ambas fracassaram, produzindo estagnação e impopularidade.

Em 2016, os britânicos decidiram deixar a União Europeia. A escolha se baseou numa fantasia populista: ao romper com o bloco, o país reviveria os tempos de glória do Império Britânico. O saldo foi desastroso. A inflação subiu, a libra derreteu, e o Reino Unido perdeu força e influência no cenário internacional.

No front doméstico, os conservadores adotaram um programa econômico ultraliberal, baseado em cortes de impostos e enxugamento do Estado. O déficit fiscal caiu, mas os serviços públicos ficaram em frangalhos. O efeito mais visível foi sobre o sistema de saúde, que sempre foi um orgulho nacional. A fila de espera por atendimento triplicou, e os hospitais começaram a sofrer com a falta de investimentos e mão de obra.

Quando Cameron chegou ao poder, 70% dos britânicos se diziam satisfeitos com o sistema, conhecido pela sigla NHS. No ano passado, a aprovação havia minguado para 24%. O sucateamento castigou a classe média e os mais pobres, que já penavam com a alta do custo de vida.

Parte desse eleitorado migrou para a extrema direita, liderada pelo histriônico Nigel Farage. Com discurso xenófobo, seu Partido Reformista abocanhou 14% dos votos na quinta-feira. Pelas regras do sistema eleitoral britânico, isso só resultou em cinco cadeiras no Parlamento. Mas foi determinante para a ruína dos conservadores.

Diante da derrota iminente, Sunak ainda ensaiou uma guinada nacionalista. Filho de indianos, anunciou um plano para capturar e despachar imigrantes para Ruanda. A ideia não saiu do papel. Só serviu para expor o desespero do premiê.

A vitória trabalhista consagrou Keir Starmer, um político de pouco carisma que costuma ser descrito como “pragmático” e “centrista”. Depois de assumir a liderança do partido, ele promoveu um expurgo em sua ala mais à esquerda, tachada de radical. Na campanha, evitou temas polêmicos e administrou o favoritismo com promessas genéricas.

Na véspera da eleição, Starmer aceitou falar sobre o Brexit. Descartou uma volta ao bloco europeu, na contramão do que defendia até pouco tempo atrás. A ver se os britânicos votaram na mudança para que tudo permaneça como está.

 

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