O Globo
Eliana é negra. Já encostaram uma arma em sua
cabeça quando retornava de uma festa com um amigo branco
Pano rápido #1. Quarta-feira, início de
noite, bairro de Ipanema,
Zona Sul do Rio de Janeiro. Cinco meninos entre 13 e 14 anos — três negros e
dois brancos — voltam de uma pelada. Estão de férias, mãos abanando. Nem
mochila levam. Vestem o clássico traje conforto (camiseta/bermuda/chinelo de
dedo). Uma câmera de segurança mostra o grupo atravessando a rua. Param na
portaria do prédio em que reside um deles. Ele entra. Dez segundos depois (sim,
10 segundos), uma viatura policial irrompe na cena. Zunindo, com as portas já
escancaradas, o carro atravessa a pista, e dele saem dois policiais de armas
apontadas para os meninos na calçada. Três deles, negros, são abordados com
truculência, obrigados a ficar de costas com mãos na parede. O quarto
adolescente recebe tratamento diferente — ele é branco. O porteiro de prédio a
tudo assiste. Não interrompe seus afazeres. Motoristas e pedestres também não.
Vida que segue.
A história terminaria aqui. Ou melhor, talvez terminasse alhures e muito mal para os “suspeitos”. Por sorte, o amiguinho branco consegue falar: os três meninos negros são filhos de diplomatas estrangeiros, vieram de Brasília a passeio. Dois são filhos dos embaixadores do Gabão e de Burkina Faso, o terceiro é filho de uma assistente do embaixador do Canadá. Forma-se uma encrenca diplomática, o Itamaraty pede desculpas formais aos pais dos jovens e cobra uma “apuração rigorosa” do governo do Rio de Janeiro. Que “fundada suspeita”, além da conhecida filtragem racial, teria levado os PMs à truculência tão gratuita? A Ouvidoria da Polícia Militar do Rio de Janeiro informa “aos que se sentiram ofendidos” que devem “formalizar suas denúncias”.
Pano rápido #2. Quinta-feira, 21h30, Praça
Charles Miller, São Paulo, capital. Autores, público e promotores da estupenda
Feira do Livro capitaneada por Paulo Werneck encerram mais uma jornada de
trabalhos. A escritora Eliana Alves Cruz (“Água de barrela”, “Solitária”, “O
crime do Cais do Valongo”) havia mediado duas concorridas mesas para o programa
Trilha das Letras, que apresenta na TV Brasil. Fazia frio, ela estava de
sobretudo e puxara o capuz para perto do rosto. Mal colocara a mão na maçaneta
do Uber Black, o motorista fugiu em disparada errática. Por pouco não a feriu
seriamente. Quem estava a seu lado ficou atônito, nada entendeu. Eliane
entendeu tudo na hora. “Ele deve ter pensado que eu estava armada. É a terceira
vez que motoristas de Uber não me aceitam em São Paulo”, diz a escritora.
Eliana é negra. Já encostaram uma arma na sua cabeça quando retornava de uma
festa com um amigo branco. Também já apontaram uma arma à cabeça de seu filho a
caminho de um futebol matinal.
Pano rápido #3. Dia recente no nono andar do
Hospital Sírio-Libanês, São Paulo. Final do plantão noturno. A técnica de
enfermagem, com sete anos de casa, não demonstra cansaço. É jovial, apesar da
meia-idade castigada, tem três filhos e assumiu cuidados na casa da vizinha
adoentada. Indagada sobre o tratamento que recebe de pacientes no andar nobre
do hospital, conta o que quer esquecer. Estava no quarto de uma internada
idosa, que a chamou para perto da cama:
— Ei, você aí, vem cá e estende a mão —
ordenou a acamada.
Ela estendeu. A paciente então cuspiu-lhe o
chiclete que mascava na palma da mão negra.
Em novembro de 2020, por ocasião do
assassinato de um cidadão negro espancado por seguranças bestiais na garagem de
um supermercado Carrefour, perguntava-se neste espaço se o Brasil tem caráter.
Como sociedade, não temos. E vergonha de sua estrutura social racista, o Brasil
tem? Também não, pois, se tivesse, a população brasileira negra (pretos e
pardos) sentiria alguma satisfação em ser maioria, teria cidadania plena.
Estamos há 500 anos desse dia. “Quando crimes se empilham, eles se tornam
invisíveis”, escreveu Bertolt Brecht às vésperas da Segunda Guerra. A extensão
do horror só ficou explicitada quando os campos de concentração foram
escancarados. A frase de Brecht poderia servir para resumir os crimes
cotidianos cometidos pelos donos do Brasil branco (Justiça, instituições,
elites, governos, sociedade) contra sua gente preta.
O episódio dos meninos em Ipanema traz ecos
da “Operação Verão 23/24”. Instituída em setembro passado pelo governo estadual
do Rio, a ação praticamente impedia o acesso à orla da Zona Sul carioca a
jovens negros de bairros periféricos. Alegando fazer um pente-fino de
“suspeitos em potencial” e prevenir “possíveis infratores”, a ação da
Secretaria de Ordem Pública (Seop) apreendia a garotada já no transporte
público, sem flagrante, ao arrepio de qualquer lei. O clamor contra o absurdo
foi grande, percorreu várias instâncias até chegar ao Supremo Tribunal Federal
em dezembro, onde atolou até depois do carnaval, nas mãos do presidente Luís Roberto
Barroso. Todo um verão roubado à garotada pobre e preta. Em
fevereiro, o ministro Cristiano
Zanin retomou o caso e proibiu as retenções sem flagrante.
Também deu prazo de 60 dias prorrogáveis por mais 30 para o estado e o
município do Rio de Janeiro criarem um protocolo de abordagem policial para
menores na orla.
Surpresa: segundo Rodrigo Azambuja,
coordenador de Defesa da Infância e Juventude, a redação final do protocolo
está concluída, aguardando a publicação dos instrumentos. “É um avanço muito
grande, embora seja restrito a Operações Verão”, avalia a jornalista
Flávia Oliveira, soberana no tema.
Ainda estamos no inverno. Os três meninos de
Brasília e as crianças e adolescentes negros do Rio pobre precisarão esperar
mais cinco meses para poder ir à praia despreocupados.
Excelente! A sensibilidade da grande jornalista está presente em cada frase tão bem escrita.
ResponderExcluirA reflexão estava excelente, até que ela resolveu mentir"
ResponderExcluir"...Também não, pois, se tivesse, a população brasileira negra (pretos e pardos) sentiria alguma satisfação em ser maioria, teria cidadania plena..."
A maioria é mestiça (47%), pois negros são 10% e brancos 43%. Convenhamos, ela poderia ter dito assim:
"Racista ou não, a PM tem que acabar."
Mas ela preferiu agradar daniel...
MAM
Segundo o IBGE,o preto e pardo (o mestiço) são negros,negro não é cor é etnia,a colunista só erra em usar o termo ''preto'' em vez de ''negro''.
ResponderExcluirA colunista não erra em nada nesta questão: ela define quem chama de população negra, termo absolutamente USUAL e correto: pretos (10% da população segundo último censo do IBGE) e pardos (45% segundo tal censo). Portanto, tal população negra é MAIORIA (55%). Fora destes percentuais temos os brancos (43%), indígenas e os que não se definiram; que juntos ou separados são minoria.
ResponderExcluirEvidentemente alguém pode preferir reconhecer como maioria apenas um dos grupos raciais/étnicos recenseados pelo IBGE, e aí pardos/mestiços seria o grupo majoritário, mas não há qualquer erro/mentira em fazer como a colunista, que reuniu 2 grupos frequentemente tratados como um em pesquisas, os brasileiros com expressiva influência de ancestrais africanos e/ou escravizados, hoje em dia tão brasileiros quanto qualquer branco ou índio nascido aqui.
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