sábado, 13 de julho de 2024

Carlos Alberto Sardenberg - Mudar por acumulação, não por ruptura

O Globo

Plano Real hoje é muito maior. Desconfio que algo semelhante, embora não do mesmo tamanho, ocorra com a reforma tributária

Em seu pequeno e precioso livro “A soma e o resto”, Fernando Henrique Cardoso, ao tratar das características da sociedade contemporânea, cita esta entre as mais relevantes: “A mudança por acumulação, não por ruptura”.

O Plano Real, que continua em modo comemoração dos seus 30 anos, é um exemplo. A nova moeda não foi imposta por um golpe na calada da noite. Resultou de um processo — que começou com a formulação de uma teoria e seguiu por várias etapas preparatórias nos campos político e econômico.

Podem-se incluir nessas ondas de acumulação os seguidos fracassos de planos anteriores e a inflação que atormentava os brasileiros por décadas. No primeiro caso, os erros mostraram o que não deveria ser feito. No segundo, a carestia resiliente sugeria que havia ambiente para uma nova tentativa de reforma monetária.

O mesmo ambiente, paradoxalmente, também sugeria ceticismo e até oposição. Tipo assim: não tem como eliminar a inflação no Brasil; é endêmica; toda tentativa de derrubar deu ruim e piorou as coisas; e — quer saber? — o país sabe conviver com inflação.

No mesmo livro, FH observa que o Plano Real foi implantado com “enormes dificuldades e incompreensões políticas”. A gente pode não saber como se define revolução ou ruptura, mas reconhece quando topa com uma. No processo por acumulação, é mais difícil perceber o tamanho da mudança.

No podcast “Plano Real — histórias não contadas”, que preparei para a CBN, registramos que a nova moeda foi recebida com ceticismo por boa parte da imprensa, não raro perdida em intermináveis discussões sobre detalhes.

Pedro Malan, um dos pais do Real, até hoje demonstra seu espanto quando se lembra da primeira pergunta na entrevista coletiva em que explicava a introdução da nova moeda: se todos os planos anteriores deram errado, por que acham que agora vai dar certo?

Pérsio Arida, um dos autores da teoria de reforma monetária em que se baseou o plano, até se acostumou com os comentários que ouvia toda vez que expunha a ideia: “Uma loucura”. Depois de várias conversas, passou a introduzi-las assim:

— Parece uma coisa maluca, mas pense bem.

No ambiente político, havia incredulidade entre os aliados. Mário Covas, companheiro de FH, disse a ele:

— Apoio, mas não vai dar certo.

José Roberto Mendonça de Barros, outro companheiro, disse a Malan:

— Vocês dispararam um foguete; o foguete subiu, mas ninguém sabe onde e como vai descer.

Na oposição, o PT de Lula atacou: “estelionato eleitoral”. Erro grave, que lhe custou as duas eleições que perdeu para FH no primeiro turno.

Na sociedade, o reconhecimento da mudança foi imediato, para a ampla maioria. Mas mesmo os mais animados ainda tinham dúvida sobre a longevidade da nova moeda. De fato, FH passou os oito anos de seus dois mandatos tomando as medidas que consolidavam não apenas o Real, mas instituíam um regime econômico baseado no hoje clássico tripé: superávit fiscal (equilíbrio das contas públicas), câmbio flutuante e sistema de metas de inflação.

Assim como se reconhece uma ruptura no momento em que ocorre, para o bem ou para o mal, a mudança por acumulação leva tempo para vingar e ser reconhecida. O Plano Real hoje, passados 30 anos, é maior, muito maior.

Desconfio que algo semelhante, embora não do mesmo tamanho, esteja ocorrendo com a reforma tributária. Trata-se certamente de uma mudança por acumulação. Há décadas o tema vem sendo debatido, no que sempre pareceu uma demora interminável. Foi uma demora, mas nesse tempo amadureceram duas conclusões: uma, que o regime tributário vigente é um empecilho absurdo ao desenvolvimento; duas, que a reforma tinha de ser paulatina e no sentido da simplificação.

A reforma dos impostos sobre o consumo reúne cinco tributos em um, um Imposto de Valor Agregado, não cumulativo, cobrado em duas instâncias, a federal e a estadual/municipal. Com uma só legislação, nacional. Comparem só isso ao regime atual na cobrança do ICMS: regimes diferentes nos 26 estados e no Distrito Federal, portanto, 27 códigos tributários.

A ver. Voltaremos ao assunto.

 

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