Valor Econômico
Sinalização do projeto de Rodrigo Pacheco é de que o compromisso fiscal do país continua frouxo e ao sabor da consciência e conveniência de quem está no cargo
O Brasil tem um histórico de leniência com a
questão fiscal, em todos os níveis da administração pública. A forma paternal
como a União trata os governos regionais muitas vezes estimula a inconsequência
e, volta e meia, resulta em desequilíbrios profundos nas contas de Estados e
municípios.
A nova rodada de renegociação de dívidas dos
Estados que se desenha desde o início do governo Lula não é muito diferente.
Mas a proposta do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para favorecer algo
como R$ 700 bilhões em dívidas soa como uma prêmio para filhos pródigos.
O projeto de lei de Pacheco aprofunda benefícios que o próprio Ministério da Fazenda estava disposto a conceder. A redução do indexador de IPCA mais 4% para IPCA puro e simples, por exemplo, é praticamente a institucionalização do juro real zero, algo bastante fora da realidade brasileira.
A proposta cria um fundo de equalização, para
o qual será destinado um ponto percentual da redução dos juros dos Estados que
aderirem, cujos recursos serão partilhados. O economista Felipe Salto, da
Warren Investimentos, classificou a iniciativa como “jogar dinheiro pela
janela”.
Além disso, o benefício originalmente
proposto de reduzir a conta para quem investisse em educação profissionalizante
foi desfigurado. Pela proposta, o governador pode decidir se investe em
educação, infraestrutura e segurança. O país precisa desses investimentos. Mas
não entra na discussão o fato de não terem sido concretizados antes de se
tornarem prementes nem que agora entram no cenário como forma de barganha para
aliviar contas que não foram pagas - ou que não se desejam pagar.
A edição do Valor desta
quarta-feira, 10, indica a insatisfação da Fazenda com a proposta.
Reservadamente, integrantes da equipe econômica classificaram o projeto de lei
como “longe do ideal” e capaz de comprometer o fluxo financeiro.
A proposta traz também a possibilidade de
ceder à União ativos que abatam parte da dívida. Parece cilada.
Até o início da década de 1990, o principal
ativo dos Estados eram suas instituições financeiras. Bancos estaduais serviam
para tudo, incluindo fazer política clientelista, financiar projetos pessoais e
cavar o profundo buraco fiscal dos Estados.
Em 1993, crise fiscal e hiperinflação
conduziram a uma renegociação de dívida para alguns governos regionais. A
situação geral piorou e, entre 1997 e 1998, o buraco era tão fundo que o país
se viu compelido a encontrar uma solução. As dívidas de 23 Estados, do Distrito
Federal e de mais de uma centena de municípios foi renegociada, assumida pela
União - que tornou-se credora - e esticada por 30 anos.
Em seguida, os bancos estaduais se tornaram
alvo de um processo de limpeza. Dos 32 que havia, 20 foram liquidados pelo
Banco Central ou privatizados. Os Estados perderam sua retroescavadeira, mas
alguns mais determinados continuaram com pás a cavar fossos fiscais.
Em menos de 20 anos, a solução fez água. Em
2016, o Supremo Tribunal Federal favoreceu governos regionais ao decidir que as
condições da dívida estavam então além da capacidade de pagamento. Governadores
ganharam o direito de pagar a União com juros simples e livres de punições.
O STF deu prazo para que as partes
repactuassem o débito. Assim, a União alongou o financiamento por mais 20 anos
- e os 30 anos originais se tornaram 40 - e ainda concedeu oito meses de
suspensão dos pagamentos mensais. A contrapartida era de que as contas
estaduais passariam a seguir a limitação de não elevar o gasto além da variação
da inflação oficial do ano anterior.
Agora, com quatro grandes Estados - São
Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais - com a corda no
pescoço, a proposta do presidente do Senado soa como uma licença para quem se
descontrolou na hora de conciliar o que ganha com o que gasta. Situação que
ofende quem fez sua parte. Sem contar que três dos quatro quase enforcados - a
exceção é São Paulo - estão em Regime de Recuperação Fiscal, ou seja, já
receberam ajuda e condições favorecidas para colocar as contas em dia.
Governadores no exercício do cargo dirão que
herdaram a situação atual. Fato. Mas enquanto alguns fazem esforços para
corrigir o problema, outros jogam a toalha - e a culpa - à espera de novo
socorro. Parte deles se esquece que a herança às vezes veio de aliados
políticos.
Há poucos dias, em conversa com o Valor,
o economista Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento
Público do FGV Ibre, comentou que a Lei de Responsabilidade Fiscal está
envelhecida e precisa ser modernizada. A lei não é tão velha, acabou de
completar 24 anos. Mas, com todas as salvaguardas, não tem sido capaz de conter
sucessivos deslizes nas contas públicas, em especial nos governos regionais.
Ainda que a proposta de Pacheco não venha a
ser aprovada como está e seja amenizada, a sinalização que ela traz não é das
melhores. Praticamente sem ter de apresentar contrapartidas, Estados com contas
deterioradas limpam sua barra, governadores continuam tocando seus mandatos, e
o compromisso com a responsabilidade fiscal continua frouxo e ao sabor da
consciência e da conveniência de quem está no cargo. A conta fica com a União,
ou seja, para contribuintes do país inteiro.
Verdade.
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