terça-feira, 30 de julho de 2024

Eric Posner - Processos e política não se misturam

Valor Econômico

Se há alguma lição dos julgamentos de Trump, é que processos na esfera política em um país democrático têm mais chances de prejudicar aqueles no poder do que seus oponentes

Enquanto os Estados Unidos voltam suas atenções para a eleição presidencial entre Kamala Harris e Donald Trump, os processos contra o ex-presidente praticamente ficaram esquecidos. Os democratas, porém, têm a esperança de que o papel anterior de Kamala como promotora distrital possa ajudar a refrescar as memórias e a persuadir alguns dos cruciais eleitores indecisos a optar pela promotora em vez do criminoso. Será que isso vai funcionar? Ou será que a tentativa malsucedida de assassinato contra Trump mitificará retroativamente os processos, como se fossem as estações da Via Crúcis no caminho dele para se tornar quase um mártir?

Até agora, os processos não prejudicaram a campanha de reeleição de Trump. A acusação de ter lidado de forma indevida com documentos confidenciais, apresentada em 8 de junho de 2023 pelo procurador especial Jack Smith, foi derrubada quando a juíza responsável, Aileen Cannon, após realizar audiência após audiência sobre moções muitas vezes frívolas, acabou rejeitando o caso, sob o argumento de que a nomeação de Smith foi inconstitucional.

Da mesma forma, o processo federal por interferência eleitoral, também apresentado por Smith, ficou desarticulado diante da decisão da Suprema Corte de que Trump goza de imunidade contra algumas das ações apresentadas na acusação. E o caso de interferência eleitoral na Geórgia está interrompido desde que o tribunal tomou conhecimento de que a promotora, Fani Willis, teve um relacionamento romântico com um subordinado. O processo agora está em suspenso enquanto o Tribunal de Recursos da Geórgia considera se ela deve ser removida.

A única acusação bem-sucedida até agora foi o caso de fraude conduzido pelo promotor distrital de Nova York, Alvin Bragg, que resultou na condenação de Trump por falsificação de registros comerciais, aparentemente para ocultar pagamentos feitos a uma atriz de filmes adultos em troca do silêncio dela. Ironicamente, era o mais fraco dos quatro processos e o que tinha menos chances de resultar em prisão ou qualquer outra penalidade séria. O veredito não teve impacto nos números das pesquisas de Trump. Em vez disso, levou a uma enxurrada de doações para a campanha de Trump de eleitores indignados com o que viam como uma acusação política.

Por fim, também houve a tentativa fracassada de deixar Trump fora da eleição com base na cláusula de insurreição da Constituição - um argumento que todos os nove juízes da Suprema Corte rejeitaram. Tudo isso deu aos republicanos o potente argumento político de que os oponentes de Trump abusaram do sistema legal para assediá-lo, porque não podem vencê-lo de forma justa na próxima eleição.

A realidade, é claro, é mais complicada. Trump praticamente implorou para que Smith entrasse com um processo ao se recusar a entregar os documentos confidenciais quando solicitado. O caos de 6 de janeiro de 2021 levou a centenas de processos legítimos contra manifestantes, e Trump, sem dúvida, pode ser considerado moralmente responsável pelos mortos e feridos naquele dia, independentemente de ter ou não violado a lei. Além disso, Smith teve azar com o sorteio que atribuiu o caso à juíza Cannon, que, na melhor hipótese, pode ser descrita como excessivamente cautelosa e, na pior, como não estando à altura ou possivelmente até como tendenciosa a favor de Trump, que a nomeou.

Ainda é possível que Trump acabe na prisão. Se ele perder a eleição, os processos nos três casos restantes seguirão adiante. Os processos, contudo, parecem ter melhorado suas perspectivas eleitorais e, se ele derrotar Kamala, eles certamente serão encerrados ou suspensos em razão das dificuldades de processar um presidente em exercício.

Muito disso poderia ter sido (e foi) previsto. No entanto, ainda há algumas lições a aprender. A preocupação usual quanto a ações contra autoridades políticas é que eles podem desencadear uma série interminável de processos retaliatórios. O próprio Trump disse que vai processar democratas em retaliação pelas acusações contra ele - e é fácil imaginar que, depois, futuros presidentes democratas retaliariam contra Trump, seus assessores e outros republicanos pelas retaliações.

Os casos contra Trump meramente ilustram que julgamentos de oponentes políticos são um risco grande demais em um país democrático, porque os réus sempre podem virar a mesa e acusar os promotores de abusar do sistema judicial por motivos políticos próprios

Esse tipo de represália olho por olho, que poderia se espalhar para os Estados, inflamaria ainda mais a política dos EUA e poderia levar presidentes e outros membros do governo a fazer armações para continuarem no poder, em vez de correrem o risco de processos se deixarem o cargo voluntariamente após perderem uma eleição. Isso seria o fim da democracia americana.

Segundo essa teoria, a democracia constitucional sobreviveu precisamente porque a classe política resistiu à tentação de lançar processos na esfera política. Comenta-se que essa norma foi criada há cerca de 200 anos, quando ações contra vários adversários políticos encontraram oposição nos tribunais e na opinião pública, em parte pelas memórias ainda frescas do domínio britânico.

O problema desse ponto de vista, é claro, é que Trump violou essa norma sobre processos na esfera política muito antes de os democratas começarem a fazê-lo. Em 2016, ele prometeu indiciar Hillary Clinton; e desde então - tanto dentro quanto fora do cargo e tanto antes quanto depois dos indiciamentos contra ele próprio - Trump ameaçou ordenar a abertura de processos contra uma lista de oponentes políticos e até de apoiadores por quem ele acha ter sido traído. A atual rodada de ações contra Trump e seus assessores pode ser vista como o resultado inevitável de uma ruptura iniciada pelo próprio Trump.

Há, contudo, outra forma de analisar tudo isso, uma forma melhor. Os casos contra Trump meramente ilustram que julgamentos de oponentes políticos são um risco grande demais em um país democrático, porque os réus sempre podem virar a mesa e acusar os promotores de abusar do sistema judicial por motivos políticos próprios. Os réus se beneficiam da maior publicidade e da suspeita natural dos eleitores de que os governos tendem a abusar de seus poderes, fatores que tornam impossível para os tribunais ignorarem pequenos erros cometidos pelo lado da acusação.

As aventuras românticas de Willis provavelmente não teriam vindo à tona se ela estivesse processando qualquer pessoa que não fosse Trump. Da mesma forma, o ritmo lento dos procedimentos em todos os processos é resultado do razoável cuidado tomado pelos juízes, que são responsáveis por manter a confiança pública no sistema judicial. Eles vêm se deparando com questões delicadas e sem precedentes sobre como tratar um réu que concorre à Presidência.

O lado positivo é que, se Trump for eleito, provavelmente não cumprirá as ameaças de ordenar a abertura de processos contra metade da liderança democrata e um bom número de republicanos. E mesmo que o faça, os casos sairão pela culatra. Se há alguma lição dos julgamentos de Trump, é que processos na esfera política em um país democrático têm mais chances de prejudicar aqueles no poder do que seus oponentes. (Tradução de Sabino Ahumada)

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