Correio Braziliense
Tanto nas alianças eleitorais, a começar por
São Paulo, quanto nas recentes votações do Congresso, verifica-se a presença
ascendente das forças de direita aliadas ao bolsonarismo
Um fenômeno da política brasileira, cada vez
mais evidente, haja vista as decisões recentes do Congresso, é o descolamento
dos partidos da agenda democrática do país, que parecia consolidada com a
Constituição de 1988, para além da agenda econômica e social, cujas prioridades
se alternam na medida em que forças mais progressistas ou mais conservadoras
estão no poder. Isso ocorre em função da tendência cada vez maior de restringir
os direitos das minorias e impor-lhes uma “ditadura da maioria”, em questões que
envolvem os costumes e os direitos sociais. A hegemonia conservadora no
parlamento é resultado da presença cada vez maior de lideranças
neopentecostais, agentes de corporações vinculadas à segurança pública e
representantes de setores da sociedade adeptos da volta do regime militar e da
justiça pelas próprias mãos, com uma agenda fortemente reacionária.
Até agora, o sistema de freios e contrapesos entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário tem funcionado no sentido de garantir a ordem democrática, mas se fragiliza quando o Executivo foge à responsabilidade fiscal ou o Judiciário extrapola seu papel contramajoritário. Não fosse a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a firme defesa da urna eletrônica e do resultado do pleito pela Justiça Eleitoral, essa afirmação sobre a eficácia do sistema seria verdadeira?
Suponhamos que o presidente Jair Bolsonaro
tivesse sido reeleito, o que não ocorreu por pequena margem de votos, qual
seria o comportamento do atual Congresso e o futuro da composição do Supremo
Tribunal Federal (STF)? Provavelmente, caminharíamos para a adoção de um regime
“iliberal”, o projeto do nova extrema direita mundial, quase hegemônico na
Ásia, em ascensão na Europa e, novamente, uma real alternativa de poder dos
Estados Unidos.
Sem juízos moralistas, no Brasil, está em
curso um movimento “transformista” dos partidos políticos em direção à formação
de um regime semipresidencialista, sem responsabilidade com o êxito das
políticas públicas e empenhado no fortalecimento do poder pessoal de sua elite
dirigente. Essa elite se descola dos interesses de origem, o que é facilitado
pelo sistema de eleições proporcionais, e se acomoda às circunstâncias
eleitorais locais, o que provoca uma crise de identidade e de representação dos
partidos, principalmente os de centro-esquerda e esquerda.
Partidocracia
Setores de centro e centro-direita, de viés
conservador, estão a reboque da extrema direita reacionária, liderada pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro, tanto nas pautas do Congresso quanto na agenda
das eleições municipais, onde o tema da segurança pública ganhou centralidade.
A centro-esquerda derivam à direita e a esquerda ao centro, em busca de
sobrevivência; e a extrema esquerda prefere permanecer isolada. Tanto nas
alianças eleitorais locais, a começar por São Paulo, quanto nas recentes
votações do Congresso, verifica-se a presença ascendente das forças de direita
aliadas ao bolsonarismo, um fenômeno de massas, que busca a hegemonia também
por acumulação de forças na sociedade.
As forças de centro-esquerda e de esquerda,
que antes se organizavam a partir da sociedade civil e dos movimentos sociais,
cada vez mais são acometidas de um certo “cretinismo parlamentar”, no qual os
interesses imediatos e particulares de seus representantes convergem ou
coincidem com os das forças conservadoras, o que tem muito a ver com a forma de
financiamento da política. Basta perguntar a qualquer deputado ou senador,
inclusive do PT, se deseja acabar com as emendas impositivas e o orçamento
secreto, que ainda sobrevive disfarçado. A resposta será não.
Voltando ao tema do “transformismo”, trata-se
de um processo político e não moral, ainda que exista uma questão ética
subjacente. No Brasil, não existe um projeto de modernização capaz de forjar um
novo consenso político nacional. Estamos entre os modelos ultrapassados do
neoliberalismo e do nacional desenvolvimentismo, a dicotomia que dramatiza, por
exemplo, a história recente da Argentina. A massa crítica intelectual e
empresarial para formular essa alternativa de projeto nacional foi alijada da
política ou capturada por essa dicotomia. E não há um esforço dos partidos para
que isso seja revertido, foram capturados pela “transa” política. Já não se
orientam por programas, mas por interesses particulares e narrativas orientadas
por pesquisas eleitorais e a audiência das “bolhas” nas redes sociais.
Sem novas lideranças comprometidas com a
“política do bem comum”, que consigam formular um novo projeto nacional e se
projetar nacionalmente, nas novas condições de intervenção política, os
mecanismos de controle burocrático da atividade parlamentar, o financiamento
eleitoral, as emendas impositivas ao Orçamento e a “política como negócio”
ditam as regras do jogo e levam à constituição de uma “partidocracia”
patrimonialista, endinheirada para o clientelismo eleitoral. Assim, novas
gerações perpetuam velhas oligarquias.
Essa elite política, escaldada pelo tsunami eleitoral de 2018, se encastela no Congresso e cria mecanismos de obstrução da renovação política, de maneira a garantir uma blindagem inexpugnável para sua perpetuação no Congresso. Nunca houve, desde a redemocratização, tanta ausência de paridade de armas entre quem tem mandato e quem não tem. O processo democrático está sendo bloqueado por dentro das suas instituições políticas, o que abre espaço para o crescimento de forças antissistêmicas na sociedade, principalmente da extrema direita.
Verdade.
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