Valor Econômico
Sucessão de episódios de
valorização/desvalorização cambial demostra que a almejada correção dos
chamados desequilíbrios globais vai exigir regras não compatíveis com sistema
atual
A continuada desvalorização do real nas últimas semanas deflagrou uma
avalanche de opiniões a respeito do fenômeno monetário-financeiro
internacional. Peço licença ao eventual leitor para sublinhar
monetário-financeiro e internacional.
O pedido ao leitor deita raízes na sobrecarga de opiniões que se
derramam em queixas que atribuem à irresponsabilidade fiscal os sucessivos e
intensos declínios de valor do nosso Real diante do patrono do sistema
monetário internacional, mister dólar.
Incursões na história: começamos com a estagflação dos anos 1970 do século passado. Naqueles tempos, a continuada desvalorização do dólar foi enfrentada com a elevação da policy rate deflagrada por Paul Volker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.
A forma como ocorreu a recuperação do dólar, como moeda-reserva e de
denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas
alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. Nas três décadas
seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as
políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et
orbi.
Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido
para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na
função de gestores da finança e da moeda universais. Nesse período, os
deslocamentos tectônicos na geoeconomia mundial - particularmente a ascensão da
China como potência manufatureira - produziram mais um episódio fascinante do
processo de “destruição criadora”.
A partir do início dos anos 1980, intensificou-se o movimento de
migração da indústria manufatureira para as regiões nas quais prevalecia uma
relação câmbio/salários mais competitiva e ampliaram-se os desequilíbrios nos
balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa.
O estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS) - “The Transmission of Unconventional Monetary Policy to Emerging
Markets” - admite que há consenso a respeito da predominância
dos fatores “externos” sobre os fatores internos na determinação dos fluxos de
capitais.
Reza o relatório: “Os bancos centrais das economias emergentes têm
enfrentado desafios políticos decorrentes tanto da apreciação da taxa de câmbio
quanto da depreciação nas últimas duas décadas. Durante a década anterior à
crise de 2008 e desde 2009, os diferenciais de taxa de juros e crescimento
resultaram em entradas substanciais de capital e pressões de apreciação da taxa
de câmbio. Em contraste, grandes saídas de capital durante maio-setembro de
2013 e início de 2014 foram acompanhadas por fortes depreciações cambiais.
Globalmente, na maioria das EME, as taxas de câmbio efetivas nominais
depreciaram-se significativamente e foram voláteis entre 2007 e 2013.
O economista Claudio Borio, do BIS, já desvelou a verdade que a maioria
dos analistas esforça por esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis
saberes fiscalistas. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente
pró-cíclica em sua recorrência maníaca que vai da abundância de grana
estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias. Esse
“eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela
interação entre a liberalização das contas de capital, a emergência das
economias “emergentes” como polos de atracão da movimentação financeira e o
papel dos EUA como provedores de ativos líquidos de “última instância”, títulos
do Tesouro americano.
Diante de episódios de instabilidade cambial, as vozes de sempre
descarregam a culpa nas “condições internas”
A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à
escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs
a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que
coloca formidáveis desafios às políticas monetárias. Diante da enxurrada de
capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação
desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes
da finança dotados de expectativas racionais.
Num ambiente internacional de livre movimentação de capitais, os bancos
centrais dos países de “moeda fraca” encontram dificuldades em manter,
simultaneamente, boas condições de crédito doméstico e a estabilidade de sua
moeda.
O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre
precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moeda
não-conversível. Os países periféricos mais bem-sucedidos, como a China,
preferiram manter controles seletivos e pragmáticos de câmbio e de capitais.
Acumulam reservas elevadas em moeda forte (dólares ou euros) com o propósito de
evitar “choques de desvalorização”, que possam afetar negativamente a taxa de
juro doméstica.
Nas pegadas da globalização financeira, o Brasil manteve por 20 anos uma
combinação câmbio-juro hostil ao crescimento da indústria manufatureira e
amigável à arbitragem sem risco.
Diante de frequentes episódios de aguçamento da instabilidade cambial,
as vozes de sempre descarregaram as culpas sobre os ombros das “condições
internas”. Proclamam - sempre e sempre - os danos do “risco fiscal”, exibido
como um pecado irremissível. Ignoram que os países de moeda não conversível se
dilaceram entre o objetivo de manter a inflação sob controle e o propósito de
não danar o crescimento ou colocar em risco a estrutura industrial e,
consequentemente, o “arcabouço” de geração de renda e emprego. No Brasil, a
derrocada exportadora da indústria faz parceria com a invasão das importações
de produtos manufaturados, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos
generosamente pelos competidores espertos.
Seja como for, a sucessão de episódios valorização/desvalorização demonstra que a almejada correção, dos chamados desequilíbrios globais, vai exigir regras não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual. O movimento dos Brics revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços a eles causados por uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar.
Muito bom! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho!
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