terça-feira, 2 de julho de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Nada de novo sob o sol: dólar x real

Valor Econômico

Sucessão de episódios de valorização/desvalorização cambial demostra que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais vai exigir regras não compatíveis com sistema atual

A continuada desvalorização do real nas últimas semanas deflagrou uma avalanche de opiniões a respeito do fenômeno monetário-financeiro internacional. Peço licença ao eventual leitor para sublinhar monetário-financeiro e internacional.

O pedido ao leitor deita raízes na sobrecarga de opiniões que se derramam em queixas que atribuem à irresponsabilidade fiscal os sucessivos e intensos declínios de valor do nosso Real diante do patrono do sistema monetário internacional, mister dólar.

Incursões na história: começamos com a estagflação dos anos 1970 do século passado. Naqueles tempos, a continuada desvalorização do dólar foi enfrentada com a elevação da policy rate deflagrada por Paul Volker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.

A forma como ocorreu a recuperação do dólar, como moeda-reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. Nas três décadas seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi.

Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais. Nesse período, os deslocamentos tectônicos na geoeconomia mundial - particularmente a ascensão da China como potência manufatureira - produziram mais um episódio fascinante do processo de “destruição criadora”.

A partir do início dos anos 1980, intensificou-se o movimento de migração da indústria manufatureira para as regiões nas quais prevalecia uma relação câmbio/salários mais competitiva e ampliaram-se os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa.

O estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS) - “The Transmission of Unconventional Monetary Policy to Emerging Markets” - admite que há consenso a respeito da predominância dos fatores “externos” sobre os fatores internos na determinação dos fluxos de capitais.

Reza o relatório: “Os bancos centrais das economias emergentes têm enfrentado desafios políticos decorrentes tanto da apreciação da taxa de câmbio quanto da depreciação nas últimas duas décadas. Durante a década anterior à crise de 2008 e desde 2009, os diferenciais de taxa de juros e crescimento resultaram em entradas substanciais de capital e pressões de apreciação da taxa de câmbio. Em contraste, grandes saídas de capital durante maio-setembro de 2013 e início de 2014 foram acompanhadas por fortes depreciações cambiais. Globalmente, na maioria das EME, as taxas de câmbio efetivas nominais depreciaram-se significativamente e foram voláteis entre 2007 e 2013.

O economista Claudio Borio, do BIS, já desvelou a verdade que a maioria dos analistas esforça por esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis saberes fiscalistas. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca que vai da abundância de grana estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias. Esse “eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, a emergência das economias “emergentes” como polos de atracão da movimentação financeira e o papel dos EUA como provedores de ativos líquidos de “última instância”, títulos do Tesouro americano.

Diante de episódios de instabilidade cambial, as vozes de sempre descarregam a culpa nas “condições internas”

A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes da finança dotados de expectativas racionais.

Num ambiente internacional de livre movimentação de capitais, os bancos centrais dos países de “moeda fraca” encontram dificuldades em manter, simultaneamente, boas condições de crédito doméstico e a estabilidade de sua moeda.

O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moeda não-conversível. Os países periféricos mais bem-sucedidos, como a China, preferiram manter controles seletivos e pragmáticos de câmbio e de capitais. Acumulam reservas elevadas em moeda forte (dólares ou euros) com o propósito de evitar “choques de desvalorização”, que possam afetar negativamente a taxa de juro doméstica.

Nas pegadas da globalização financeira, o Brasil manteve por 20 anos uma combinação câmbio-juro hostil ao crescimento da indústria manufatureira e amigável à arbitragem sem risco.

Diante de frequentes episódios de aguçamento da instabilidade cambial, as vozes de sempre descarregaram as culpas sobre os ombros das “condições internas”. Proclamam - sempre e sempre - os danos do “risco fiscal”, exibido como um pecado irremissível. Ignoram que os países de moeda não conversível se dilaceram entre o objetivo de manter a inflação sob controle e o propósito de não danar o crescimento ou colocar em risco a estrutura industrial e, consequentemente, o “arcabouço” de geração de renda e emprego. No Brasil, a derrocada exportadora da indústria faz parceria com a invasão das importações de produtos manufaturados, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos generosamente pelos competidores espertos.

Seja como for, a sucessão de episódios valorização/desvalorização demonstra que a almejada correção, dos chamados desequilíbrios globais, vai exigir regras não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual. O movimento dos Brics revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços a eles causados por uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho!