domingo, 14 de julho de 2024

Míriam Leitão - O maior risco da PEC da anistia

O Globo

A aliança do PT com PL no Congresso choca ainda mais diante da exposição dos detalhes dos planos do ex-presidente para se manter no poder

O que a Polícia Federal mostrou na última quinta-feira foi mais do que a profundidade do uso do órgão de inteligência. A “Abin paralela” exposta na operação “Última Milha” é o retrato da captura de um órgão de Estado para desviá-lo de suas funções, espionar supostos adversários, alguns deles autoridades dos poderes legislativo e judiciário, proteger os interesses do filho do presidente, ameaçar servidores públicos e conspirar contra a democracia. O crime maior, o guarda-chuva que abrigou todos os outros, presente em vários inquéritos, é a tentativa de Bolsonaro de permanecer no poder atropelando a Constituição.

Por isso, chocam as alianças que o PT e o PL fazem em certos pontos em que têm o mesmo interesse. Foi assim no populismo tributário que isentou todas as carnes. Mas houve uma aliança pior. A que aprovou a PEC anistiando partidos que descumpriram as cotas de gênero e de raça. Na proposta de emenda, políticos se perdoam pela ilegalidade eleitoral, eliminam as próprias dívidas e tornam os partidos entidades isentas de impostos.

Nas tramitações de matérias é natural haver encontros de interesse entre partidos que estão em campos diferentes, dependendo do tema ou da conjuntura,. Mas o partido do ex-presidente Bolsonaro não é apenas distante ideologicamente do PT. Ele apoiou e sustenta teses antidemocráticas e quer anistiar o ex-presidente por seus crimes. Deveria ser repudiado pelos democratas de quaisquer tendências.

A semana passada foi rica de indícios e rastros dos crimes de Bolsonaro. Na segunda, ao serem liberados os documentos do inquérito das joias, ficou claro o tamanho dos descaminhos que o país viveu. Os investigadores seguiram a pista deixada pelo dinheiro das contas bancárias do ex-presidente.

— Ele estava num processo de transferir tudo para o exterior. Na nossa avaliação ele tinha receio de vir a ser preso, sabendo de antemão do que seria tentado no 8 de janeiro. Ou ele seria preso ou voltaria para retomar o controle do país — me disse um investigador.

O golpe não deu certo, mas há outros indícios de que a venda das joias serviu como um dos “recursos de subsistência no exterior”. Isso porque o saldo das contas para as quais transferiu dinheiro não foi mexido.

— Se ele tinha outras fontes de recursos, doação ou alguém pagava as contas, a gente ainda não sabe. O que sabemos é que seu saldo se manteve intacto.

Em outra frente, cujos detalhes foram informados na quinta-feira, a Abin espionava adversários políticos, aliados, e autoridades ou qualquer pessoa que ele considerasse inimiga. Num diálogo, dois dos agentes que trabalhavam na Abin falam em dar um tiro na cabeça do ministro do STF Alexandre de Moraes. A agência, comandada pelo delegado Alexandre Ramagem, tentava também dar consistência aos delírios persecutórios do ex-presidente.

Todos os crimes, seja desvio de bens públicos, seja uso de órgãos públicos para interesse pessoal, serviam a uma causa: o atentado à democracia. O ex-presidente terá que responder a todos esses processos, até porque fica claro que ele mentiu nos depoimentos.

— Ele fala que desconhecia as tratativas de vendas das joias no exterior, mas isso cai por terra quando troca mensagens com Mauro Cid, quando dá ordens, orientações e recebe dinheiro das mãos do general Lourena Cid. A investigação mostrou que o dinheiro entrou nas contas do Cid pai e que foram feitos vários saques, inclusive no dia do encontro no restaurante em Nova York. Ele apaga mensagens, usa contas de terceiros, indicativos de que queria se blindar e que sabe que estava fazendo algo ilegal — me disse um investigador.

No caso da Abin, há um mar de indícios de conspiração antidemocrática e uso ilegal da máquina pública para interesses pessoais. O ex-presidente está inelegível mas o PL, seu partido, o apoia, entidades empresariais financiam seus encontros, outros partidos se unem a ele. Governadores e prefeitos orbitam em torno dele. Bolsonaro e suas forças continuam sendo uma ameaça à democracia. A conspiração continua.

Por este motivo, choca que haja arranjos no parlamento entre bolsonaristas e forças democráticas. O pior foi a vergonhosa autoanistia que os partidos aprovaram na Câmara por não cumprir legislação eleitoral que tem o objetivo de incluir negros e mulheres nas disputas eleitorais. Há acordos que democratas não podem fazer e forças às quais nunca deveriam se unir.

 

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