sábado, 20 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Parlamentares usam emendas em favor de parentes candidatos

O Globo

Antecipação permitiu driblar regra em ano eleitoral. Laço familiar é exaltado em palanques sem constrangimento

As eleições municipais têm funcionado como estímulo para deputados destinarem emendas parlamentares a prefeituras de parentes. Depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais as emendas identificadas pela sigla RP9, ou “emendas do relator”, os congressistas passaram a usar as RP8, ou “emendas de comissão”, para alocar recursos a seus projetos particulares.

Até a semana passada, o governo federal programara pagar R$ 9,1 bilhões em emendas de comissão, garantindo o envio do dinheiro depois de esgotado o prazo determinado pela Justiça Eleitoral para essas transferências, o início de junho. Com a garantia dos recursos, as prefeituras e seus padrinhos poderão erguer palanques, anunciar e iniciar obras a tempo de conquistar votos para prefeito e vereador.

A maior parte dos recursos foi alocada em fundos estaduais e municipais de saúde e para o custeio de hospitais, medidas defensáveis. Mas ainda restou R$ 1,7 bilhão para obras, eventos e aquisição de equipamentos de toda sorte. Famílias de deputados têm sido agraciadas com emendas de parentes sem constrangimentos. O laço familiar é até exaltado nos palanques.

A segunda cidade mais beneficiada foi Patos, na Paraíba, que recebeu R$ 17,6 milhões para ampliar o Terreiro do Forró, por meio de uma emenda aprovada na Comissão de Turismo da Câmara. O prefeito Nabor Wanderley (Republicanos) anunciou a verba com estardalhaço nos festejos de São-João. O projeto será executado numa área de 100 mil m², onde também serão construídas quadras esportivas, com aparelhos de ginástica e um “espaço pet”. O prefeito fez questão de informar que o responsável por conseguir o financiamento público do projeto foi seu filho, o deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB). O parentesco e o apadrinhamento serão lembrados aos eleitores no momento devido.

Outra ação em família transferiu R$ 11 milhões à Prefeitura de Tauá, no interior do Ceará, graças ao deputado Domingos Neto (PSD), filho da prefeita Patrícia Aguiar (também PSD). Desse total, R$ 3 milhões serão gastos no Festival dos Inhamuns, o Festberro, evento agropecuário em que há exposição de animais, leilões de gado, vaquejada, shows musicais, artesanato e gastronomia. Deve ser um acontecimento importante para a cidade e a região de Inhamuns. A questão é sua capitalização por um grupo político e familiar, financiada pelos cofres públicos. O dinheiro serve para fortalecer o controle político de clãs em cidades no interior das regiões menos desenvolvidas.

Também no Ceará, a prefeita Giordanna Mano (PL), de Nova Russas, na mesma região de Tauá, comemorou nas redes sociais os R$ 3 milhões recebidos por emenda da Comissão de Turismo da Câmara, graças ao deputado Júnior Mano (PL-CE), seu marido. Com os recursos, será executado o projeto de reforma da Praça da Rodoviária, que prevê até a réplica de um avião.

Essas são amostras de um país com carências urgentes em educação, saúde, saneamento básico ou infraestrutura, com um Orçamento apertado e em crise fiscal aguda — mas que gasta milhões para atender a interesses puramente paroquiais. No Brasil, a fatia orçamentária cujo destino depende apenas da vontade dos parlamentares não encontra paralelo no mundo. Passou da hora de um corte drástico nessas emendas, em benefício de políticas públicas necessárias e consistentes.

Poluição nas praias reflete penúria do saneamento básico no Brasil

O Globo

Com coleta e tratamento de esgoto deficientes, 36% das praias estão impróprias para banho, revela estudo

Quase quatro anos depois da aprovação do Marco do Saneamento Básico, os avanços ainda são insuficientes para atingir as metas definidas para universalizar o acesso a água e esgoto no Brasil. De 2019 a 2022, a proporção do esgoto tratado no país passou de 49% para 52%, segundo o Sistema Nacional de Informações de Saneamento do Ministério das Cidades. É um índice ainda vergonhoso diante do objetivo de tratar 90% até 2033. Ao todo, 90 milhões de brasileiros não têm acesso a coleta de esgoto, e 32 milhões a água potável.

Uma das consequências nefastas da evolução lenta na coleta e no tratamento de esgoto é o estado lastimável das praias brasileiras. Um levantamento do GLOBO com base nos últimos dados disponíveis para dez estados — Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina — constatou que 36% dos 1.035 pontos analisados na costa estão impróprios para banho.

O levantamento mostra que mesmo em áreas turísticas, em que se supõe haver a preocupação em manter o mar despoluído para atrair mais visitantes, o saneamento não é prioritário. Fica evidente a falta de visão de governadores e prefeitos que não acompanham o crescimento urbano com a necessária expansão da infraestrutura. Se o país universalizasse coleta e tratamento de esgoto até 2040, poderia atrair mais R$ 80 bilhões apenas com o turismo, revela estudo do Instituto Trata Brasil.

Pernambuco, estado em pior situação no levantamento, com 63% das praias poluídas, permitiu, nos anos 1970 e 1980, a ocupação desordenada do Litoral Norte do estado, sem a expansão da estrutura de saneamento. O risco é o próprio turismo se retrair se nada for feito para resolver o problema. Em Santa Catarina, já existem regiões em colapso devido ao crescimento da população sem a ampliação da estrutura de saneamento básico, segundo o oceanógrafo Marcus Polette, da Universidade do Vale do Itajaí. Balneário Camboriú, Itapema, Porto Belo e Navegantes também recebem a pressão do fluxo de turistas.

Com o Marco do Saneamento, abriu-se um espaço mais amplo à atuação de empresas privadas. De acordo com o Plano de Saneamento Básico, é necessário um investimento mínimo de R$ 231 anuais por habitante para universalizar coleta e tratamento de esgoto. Em 2022, a média foi de apenas R$ 111. Há estados em situação calamitosa, como o Acre, com investimento de R$ 3 por habitante. É verdade que a melhora no saneamento exige tempo, mesmo assim a principal razão para o Marco ainda não ter surtido efeitos na velocidade desejada é a falta de investimento. Cabe aos gestores públicos criar condições para atrair capital privado ao setor. As estatais de água e esgoto já provaram que, sozinhas, não resolverão o problema.

Autonomia financeira do BC é passo à frente

Folha de S. Paulo

Proposta dá mais liberdade à autoridade monetária em relação ao Executivo e para contratar profissionais qualificados

Os reiterados ataques políticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra a condução da política monetária pelo Banco Central são prova inequívoca de como foi acertada a decisão que concedeu autonomia operacional ao órgão a partir de fevereiro de 2021.

Afinal, sob a gestão de Roberto Campos Neto, alvo preferencial das diatribes ditas por Lula, o BC brasileiro foi um dos primeiros a elevar os juros para debelar a inflação no período pós-pandemia, enquanto vários países demoraram a agir e sofrem as consequências até hoje.

Autônomo em relação ao Executivo, o órgão começou a subir a Selic no final de 2021 e a manteve em patamar elevado, em 13,75% ao ano, na campanha eleitoral de 2022 —o que, em tese, poderia ser visto como prejudicial ao então candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL), que colocou Campos Neto no cargo.

Agora, o Brasil tem a oportunidade de dar um passo positivo à frente com a Proposta de Emenda à Constituição 65, em discussão no Congresso. Ela propõe transformar o BC em uma instituição de natureza especial com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira.

Isso significa que o BC teria a capacidade de elaborar, aprovar e executar o próprio orçamento, de forma independente do governo. Para isso, utilizaria receitas próprias, geradas a partir de seus ativos, a fim de custear despesas com pessoal e eventuais investimentos.

A mudança do enquadramento jurídico afetaria a relação de trabalho dos servidores. Eles deixariam de ser regidos pelas normas do Regime Jurídico Único do funcionalismo e passariam a ser empregados públicos regulamentados pela CLT. O texto da PEC também contém pontos para preservar a estabilidade dos servidores.

Na prática, o BC teria independência para buscar profissionais mais qualificados e remunerados no mercado, além de maior liberdade para geri-los. Neste ponto, a proposta precisaria ser equilibrada, para evitar exageros que possam levar o órgão a um comportamento corporativo.

Recente estudo do FMI envolvendo 87 dirigentes de bancos centrais mostrou que 74% deles consideram a autonomia financeira o aspecto mais importante para medir a independência dessas instituições.

Mas, como está redigida, a PEC não tem apoio do governo, embora Fernando Haddad (Fazenda) diga não ser contra a autonomia financeira do BC, mas sim à sua transformação em empresa pública.

Campos Neto, com mandato até 31 de dezembro, diz que gostaria de deixar a mudança como legado. Se o governo não quer que a medida seja mais um item na lista de seus acertos, que ajude a aprová-la assim que indicar seu sucessor.

Violência sem estratégia

Folha de S. Paulo

Há melhorias em segurança, mas falta integração e letalidade policial preocupa

Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados na quinta (18) mostram que, nessa área, sobra truculência das polícias e falta inteligência em investigação, o que denota a necessidade de uma política racional integrada entre as três esferas de governo.

De 2022 a 2023, houve queda nas várias modalidades de roubo, mas tal redução pode estar relacionada com o aumento de 8,2% dos casos de estelionato, com quase 2 milhões de golpes em 2023, sendo que 1 a cada 12 ocorreu por meio eletrônico —desde 2018, a alta foi de 360%. É o crime mais registrado em 21 dos 26 estados do país.

Em relação à violência contra a mulher, constatou-se alta em todos os tipos de crime sofridos por essa população, como feminicídio (0,8%), violência doméstica (9,8%) e estupro (6,5%). Neste último, o aumento desde o início da série histórica, em 2011, foi de 91,5%.

O número de mortes violentas intencionais (homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de óbito, e mortes causadas por intervenções policiais) caiu 3,4%. Mas em seis estados houve alta.

Apesar da queda geral, os dados revelam uma chaga na segurança pública do país. Das 46.328 mortes violentas intencionais no ano passado, 6.393 foram causadas por policiais, o que representa 13,8%. Entre 2013 e 2023, a alta foi de 189%, o que faz com que a ínfima redução de 0,9% de 2022 a 2023 não constitua melhoria de fato no cenário.

Jequié, na Bahia, passou de cidade com o maior número de mortes violentas intencionais por habitante em 2022 para a que tem a polícia que mais mata em 2023.

O município baiano encapsula o problema brasileiro: usar a brutalidade policial para combater a criminalidade. Trata-se de medida custosa, ineficiente e que atenta contra os direitos humanos.

O governo federal precisa desenvolver uma política integrada com estados e municípios. Ela deve se basear em evidências, para direcionar ações à proteção de estratos sociais mais fragilizados e alocar recursos em inteligência, capacitação dos agentes e tecnologias que já mostraram resultados na contenção da letalidade policial, como as câmeras corporais.

 Haddad ganha uma

O Estado de S. Paulo

Ao anunciar contenção de despesas de R$ 15 bi, governo deixa implícito que mira o limite inferior da meta fiscal. Por ora, no entanto, o ministro respira aliviado, e o País pode comemorar

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conseguiu uma vitória e tanto nesta semana. Na quinta-feira, quando o dólar voltava a se apreciar em meio a incertezas sobre a política fiscal do governo e a um cenário externo mais adverso, o ministro antecipou a informação que era aguardada apenas para a próxima semana e anunciou um congelamento de despesas da ordem de R$ 15 bilhões para tentar atingir a meta fiscal. “Estamos antecipando justamente para evitar especulação”, disse o ministro.

Simbólico, o anúncio foi feito no Palácio do Planalto, logo após uma reunião entre os ministros que compõem a Junta de Execução Orçamentária (JEO) e o presidente Lula da Silva, numa clara tentativa de mostrar que o presidente havia sido convencido da necessidade de conter gastos. Ao menos, foi essa a mensagem que Haddad e a ministra do Planejamento, Simone Tebet, tentaram transmitir em conjunto.

Desses R$ 15 bilhões, R$ 11,2 bilhões serão bloqueados porque o crescimento dos gastos obrigatórios ultrapassou o limite determinado pelo arcabouço, de 2,5% acima da inflação. Outros R$ 3,8 bilhões serão contingenciados porque as receitas não têm tido o comportamento que o governo esperava e podem comprometer o cumprimento da meta fiscal. Ambos os valores podem vir a ser liberados se as estimativas melhorarem ao longo dos próximos meses.

Como há pouquíssimo espaço para rever gastos obrigatórios, tanto o bloqueio quanto o contingenciamento deverão ter forte impacto nas despesas discricionárias, rubrica que inclui o custeio de atividades administrativas dos ministérios, investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e emendas parlamentares.

As pastas que mais concentram gastos não obrigatórios, além do Ministério dos Transportes, são as da Saúde e da Educação, algumas das mais sensíveis aos olhos da base de apoio do governo. Ademais, qualquer mexida nas emendas parlamentares sempre traz algum desgaste nas relações com o Congresso.

O governo ainda precisará detalhar como essa tesourada será materializada, mas, segundo Haddad, esses números não incluem o resultado do pente-fino em programas sociais. A estratégia funcionou, ao menos por enquanto, e trouxe alguma tranquilidade ao mercado. O congelamento foi maior do que os R$ 12 bilhões que a maioria esperava, mas inferior aos R$ 26 bilhões necessários para cumprir a banda inferior da meta.

Ou seja, com o anúncio desta semana, o governo deixou implícito que não almeja exatamente o centro da meta de déficit zero, mas que trabalhará com a margem de tolerância de 0,25 ponto porcentual. Isso permitiria um saldo negativo entre receitas e despesas de até R$ 28,8 bilhões neste ano.

Se assim for, o governo ainda terá de anunciar mais uma contenção de despesas na próxima revisão bimestral do Orçamento, em setembro. E, se tudo der certo, em novembro, poderá fazer uso do tradicional empoçamento – diferença entre os pagamentos que foram autorizados e os que efetivamente ocorreram – para remanejar recursos entre as áreas.

Até lá, há a dura realidade com a qual o governo terá de lidar. Como tradicionalmente acontece, o Orçamento deste ano conta com despesas que foram subestimadas, especialmente os benefícios previdenciários e de assistência social, que avançam em ritmo superior à inflação.

Na outra ponta, as receitas foram superestimadas, entre elas a expectativa de arrecadação com a retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Até agora, dos R$ 56 bilhões inicialmente previstos, nada entrou. E ainda não houve acordo com o Senado sobre as medidas arrecadatórias para compensar a renúncia de R$ 18 bilhões associada à desoneração da folha de pagamento de 17 setores e dos municípios.

O problema de mirar o limite inferior, em vez do centro da meta, é que o governo não terá qualquer margem de manobra caso ocorra algum imprevisto. Mas, diante do cenário que se desenhava, alcançar um déficit de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) ainda é melhor que nada. Por ora, Haddad venceu a batalha, mas a guerra ainda está longe de terminar.

Ultraje no mérito, e não no rito

O Estado de S. Paulo

Pacheco diz que não haverá ‘açodamento’ no Senado ao tratar da infame PEC que livra partidos de multas, mas problema da proposta não é a tramitação, e sim o conteúdo, que afronta País

Aprovada na Câmara dos Deputados, a infame PEC da Anistia – Proposta de Emenda à Constituição que livra os partidos de multas por violações a regras eleitorais – chegou ao Senado levando consigo a natural indignação da sociedade, por inscrever na Constituição um acintoso perdão autoconcedido por políticos de todas as colorações ideológicas.

Provavelmente ciente da profunda impopularidade da medida, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já afirmou que não haverá “açodamento” na análise do texto, isto é, a PEC será debatida por comissões da Casa, para só então ser levada ao plenário. Ora, isso não muda a essência da desfaçatez: o problema nunca foi do rito, e sim do mérito. A PEC é uma afronta a todos os eleitores, sem exceção, e continuará sendo mesmo que haja “debates” antes de sua eventual aprovação.

Pacheco parece encenar um distanciamento dessa farra. Segundo o presidente do Senado, a PEC da Anistia, que deixou os presidentes de partidos “muito entusiasmados”, partiu da Câmara. Essa euforia mostra as agremiações totalmente desconectadas das reais aspirações dos eleitores que elas deveriam representar.

Pelo texto aprovado com uma coesão invejável na Câmara – capaz de unir os antípodas PT e PL –, a Constituição será modificada para que os partidos possam refinanciar em até 15 anos os seus débitos, sem cobrança de juros e multas; terão até cinco anos para quitar obrigações previdenciárias; poderão usar verba pública dos fundos eleitoral e partidário para pagar as multas, incluindo aquelas decorrentes do uso de recursos de “origem não identificada” – o popular caixa dois; e, de bônus, terão ampliada a imunidade tributária. Mas não é só isso.

As agremiações serão perdoadas pelo descumprimento das cotas de candidaturas de negros e mulheres. Os valores não aplicados em pleitos passados poderão ser compensados nas próximas quatro eleições, mas há fundadas razões para crer que, nesse período, outra anistia virá em socorro dos partidos que não cumprirem nem mesmo essa singela obrigação.

As legendas destinarão, ainda, 30% dos recursos do fundo eleitoral para candidaturas de negros, mas um único candidato ou uma única região poderá concentrar o dinheiro. Hoje, por determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), essa verba deve ser dividida entre os postulantes de forma proporcional.

No mundo político, há pressa. Questionado sobre por que a PEC tramita no Congresso neste momento, o relator do texto na Câmara, deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), afirmou que “qualquer hora é hora”, deixando claro que se trata de projeto prioritário. A ideia é que as mudanças já valham nas eleições deste ano.

Segundo o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), havia uma promessa feita a líderes e presidentes de partidos de que Rodrigo Pacheco abraçaria essa causa. Lira, que colocou a PEC em votação no plenário sem que o texto tivesse recebido aval em comissão especial, já reconhece o incômodo da proposta. Em entrevista à CNN Brasil, o deputado afirmou que nem ele nem ninguém “fica satisfeito em discutir uma matéria que cause esse desconforto”. Se “desconforto” houve, contudo, não parecia: registrou-se acachapante votação a favor da PEC, com as honrosas exceções do PSOL e do Novo.

Agora, ao que tudo indica, há um clima de constrangimento no Congresso. No Senado, uma espécie de operação-padrão já está em curso. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, Davi Alcolumbre (União Brasil), empurrou a análise da proposta para agosto, quando os parlamentares voltarão ao trabalho.

A questão é que, se agora provoca mal-estar no meio político, é porque a natureza indecente da PEC da Anistia mal pode ser escondida. É de Rodrigo Pacheco o poder sobre a pauta do Senado. Manda a decência que a proposta seja engavetada ou desfigurada, para ao menos torná-la menos obscena.

Uma empresa refém

O Estado de S. Paulo

Vale convive com pressões do governo no lento processo sucessório de sua presidência

Refém do assédio do governo Lula da Silva, a Vale prepara a sucessão na presidência executiva num processo lento – que se arrasta desde o ano passado – e frequentemente estressado por rumores os mais diversos, em evidentes sinais da batalha travada nos bastidores. Ocasionalmente, informações oficiais escapam, dando conta da pressão que extrapola os limites corporativos, mas são os boatos os principais motores da especulação que cerca a empresa há meses.

Dado o porte e a importância da Vale, uma das líderes mundiais na produção de minério de ferro e níquel e uma das principais concessionárias de logística do País, é plausível ser identificada como empresa estratégica, ainda mais por atuar no segmento extrativista. O interesse do Estado brasileiro nos passos da Vale é óbvio e, por isso mesmo, foram criadas as golden shares (ações de ouro, em tradução livre) na privatização, assim como em outras estatais estratégicas que passaram à iniciativa privada, como Embraer, IRB e Eletrobras.

O mecanismo de golden share dá ao governo poder de veto em uma série de decisões que vão desde a mudança de sede, para o caso de intenção de deixar o País, até a liquidação da empresa, alienação ou encerramento de atividades do sistema integrado de exploração de jazidas, minas, ferrovias, portos e terminais marítimos. Ou seja, o governo manteve, mesmo após a decisão de privatizar a mineradora, a garantia de que o interesse econômico estaria prioritariamente voltado ao País.

Mas, por óbvio, a União não detém poder de gestão numa ex-estatal, como quer o governo Lula da Silva não apenas na Vale, mas também na Eletrobras, como comprovaram inúmeras declarações do presidente. Durante a posse de Magda Chambriard na Petrobras, Lula lamentou que a Vale tenha sido “rifada por 899 mil pequenos fundos”. Referia-se ao processo que tornou a Vale uma empresa de capital pulverizado, sem controlador. “Você não tem um dono para conversar”, reclamou.

Alguém “para conversar” é o que Lula da Silva vem buscando na Vale desde o início de sua terceira gestão, quando foi cogitado o nome de seu ex-ministro e fiel escudeiro Guido Mantega para a presidência da empresa. Agora, quando a consultoria Russel Reynolds, contratada para assessorar o processo sucessório, listou 15 candidatos, nenhum deles do governo, surgem rumores de que Dario Durigan, o número dois de Fernando Haddad no Ministério da Fazenda, teria sido sondado para o cargo, mesmo sem nenhuma experiência no setor de mineração.

Difícil imaginar que uma empresa como a Vale, dependente de tantas decisões governamentais, desde a autorização de lavra até multas operacionais, opte por uma blindagem total contra o governo, mesmo sabendo do interesse, declarado por Lula da Silva, de obrigar a mineradora a ter o “papel social” de “atendimento das necessidades soberanas do País”. Em outras palavras, trata-se de direcionar a gestão da empresa para o financiamento de projetos de interesse do governo, sem preocupação com gestão ou governança. Além de uma afronta à iniciativa privada, é uma temeridade.

A tragédia da violência sexual doméstica

Correio Braziliense

A cada seis minutos, ocorre um estupro no Brasil. Trata-se de uma herança da relação casa grande e senzala, que replica e agrava a cultura machista e misógina da formação do nosso patriarcado colonial

A cada seis minutos, ocorre um estupro no Brasil. Os números traduzem uma das piores formas de iniquidade social: mulheres (88%), principalmente negras (52%) e com menos de 13 anos (62%) são a maioria das vítimas. Somente em 2023, foram 83,9 mil casos registrados, um aumento de 6,5% em relação a 2022. Não devemos nos iludir: trata-se de uma herança da relação casa grande e senzala, que replica e agrava a cultura machista e misógina da formação do nosso patriarcado colonial, na qual se destaca, ainda, o sequestro e a servidão de mulheres e jovens indígenas.

A cultura do estupro não é uma realidade apenas brasileira, mas tem ingredientes estruturais da nossa história que definem o perfil majoritário das vítimas. Outra realidade marcante no nosso país é que a maioria dos algozes é conhecida, gente que deveria estar cuidando das crianças e adolescentes. Segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta semana, além de 76% das vítimas de estrupo serem vulneráveis (menores de 14 anos), nesses casos, 64% dos agressores são familiares e 22%, conhecidos da família. Ou seja, o local de risco é a própria casa (65%).

A maioria das vítimas tem entre 10 e 13 anos (32%), seguida da faixa de 5 a 9 anos (18%) e da de 0 a 4 anos (11%). Entre os bebês, foi registrada, em 2023, "a chocante" taxa de 68,7 casos por 100 mil habitantes, o dobro da média nacional: 41,4. De uma forma geral, entre 2011 e 2023, o número de estupros cresceu 91,5% no país — de 43,4 mil casos para quase o dobro, 83,4 mil. Desde 2021, há uma tendência de crescimento, após queda durante a pandemia da covid-19.

A notificação de violência doméstica também não desacelera: foram 258.941 vítimas em 2023, 9,8% a mais do que no ano anterior. O número de mulheres ameaçadas subiu 16,5%: 778.921 denunciaram essa situação à polícia no ano passado. Além disso, houve aumento dos registros de violência psicológica (33,8%,) e de stalking (perseguição), 34%.

A polarização e a desagregação sociopolítica favorecem a cultura da violência de todas as formas. No caso da violência sexual doméstica, há ainda a influência da opressão no âmbito familiar — muitas vezes, a causa de sua desestruturação, ao contrário do que muitos imaginam. A cultura que favorece a violência sexual doméstica foi naturalizada a partir de um comportamento social que relativiza ou silencia as ocorrências para "não envergonhar a família", por exemplo. São segredos perversos, guardados a sete chaves, com a desculpa de que a "roupa suja se lava em casa", erguendo uma muralha de medo, silêncio e intimidação na rotina familiar.

Por isso, a necessidade de uma participação efetiva da sociedade para coibir a cultura da violência que massacra as mulheres brasileiras. Punições mais rígidas contra os criminosos não são suficientes em um país em que, além da cultura de silenciamento dentro das casas, tem a tendência, por exemplo, de culpar as vítimas pelo crime — seja pela roupa que usava, pelo local em que estava ou qualquer outro tipo de comportamento "provocante". Essa mudança de mentalidade porá fim ao machismo estrutural que sustenta as agressões cotidianas contra crianças, jovens e adultas no país. O caminho é longo, mas urgente.

 

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