quarta-feira, 3 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

A nova agenda 30 anos depois do Plano Real

O Globo

Brasil precisa promover reformas, confiar nos empreendedores e apostar no aumento da competição

As comemorações dos 30 anos do Plano Real, celebrados nesta semana, fazem jus ao feito histórico. A nova moeda acabou com a hiperinflação crônica, chaga que punia os mais pobres e provocava todo tipo de transtorno na vida de empresas e cidadãos. O principal legado do Real foi ter demonstrado que, quando unem determinação e propósito, os brasileiros têm o poder de resolver questões à primeira vista intratáveis. É com esse mesmo espírito em mente que o país precisa agora encarar um novo ciclo de reformas econômicas. O inimigo a bater desta vez não é mais a inflação, mas o crescimento medíocre da economia, responsável pela miséria renitente. Tal agenda deve ser encarada com a mesma garra. Se fosse possível resumi-la numa frase: o Brasil precisa confiar nos empreendedores e apostar no aumento da competição.

A história do agronegócio demonstra que o vigor empresarial brasileiro é capaz de enfrentar todo tipo de concorrente. Sem proteção tarifária, os empresários do campo adotaram as melhores práticas de plantio e gestão, investiram em tecnologia, exploraram nossas vantagens comparativas, prosperaram e criaram um dínamo de crescimento para o Brasil. Os fatores decisivos que o Estado propiciou para o sucesso não foram os programas de financiamento nem vantagens tributárias, mas o apoio à pesquisa científica, por meio da Embrapa. A revolução do interior não foi concebida num escritório na Esplanada dos Ministérios, na sede de uma estatal ou no BNDES. Como costuma dizer o ex-presidente do Banco Central Pérsio Arida — um dos artífices do Real —, a melhor receita para o êxito do Brasil está na experiência do setor agrícola, com a abertura maior da economia e menos intervenção estatal.

Ganhos de produtividade com a exposição à concorrência externa não são teóricos. Nos países com baixa competição, como o Brasil, as empresas não têm incentivo para investir em inovação. Se um artigo pode ser produzido como sempre foi e vendido caro, não há razão para apostar em melhorias. É por isso que a proteção de mercado resulta na perda de investimentos. O Brasil aplica em inovação o mesmo que países com renda per capita similar. Se as condições atuais forem mantidas, pouco mudará. A experiência dos últimos governos do PT mostra que não serão linhas de crédito facilitadas por bancos estatais que transformarão essa realidade. A desindustrialização precoce não será resolvida à base de subsídios. A solução é aumentar a concorrência para que os segmentos mais capazes se desenvolvam e prosperem. Nenhum país escapou da armadilha de crescimento baixo com renda média sem se integrar à economia global.

Aumentar a competitividade da economia brasileira tem uma dimensão local. A reforma tributária, atualmente em regulamentação no Congresso, terá papel crucial nisso. O sistema atual de impostos incentiva a má alocação de recursos, a guerra fiscal entre estados, mantendo no mercado empresas ineficientes graças ao acesso a benesses. Isso inibe os investimentos. Edmar Bacha, principal negociador do Plano Real junto ao Congresso, ressalta que a ação mais urgente hoje é salvar a reforma tributária dos lobbies que querem entrar nas listas de taxação zero. “É preciso enorme esforço político para evitar que a reforma seja desfigurada. Querem colocar até filé-mignon na cesta básica”, afirma.

Quanto maior o número de produtos isentos, maior será a alíquota básica paga por todos. E a isenção não terá os resultados alegados. A experiência internacional demonstra que os produtores beneficiados com renúncia fiscal não costumam repassar a vantagem aos consumidores. Está em curso em Brasília uma corrida não para ajudar os mais pobres, mas para capturar o Estado, com o único objetivo de obter privilégios. Bacha ressalta que a estratégia mais eficiente neste caso para cuidar da baixa renda é o sistema de cashback, que devolve dinheiro diretamente a quem precisa.

Para aumentar a competição entre as empresas, o papel do Estado é intransferível. Quanto mais eficiente for, mais facilitará a vida de estudantes, trabalhadores e empreendedores. Por isso uma reforma administrativa deve ser outra prioridade. Os funcionários públicos correspondem a 5,6% da população brasileira, abaixo da média da OCDE, mas consomem 13% do PIB, mais que Portugal ou Espanha. Isso ocorre porque uma elite formada por juízes, procuradores, militares e outras categorias se recusa a abrir mão de privilégios que não existem em nenhuma outra parte — enquanto o grosso do funcionalismo trabalha em condições insatisfatórias.

Mesmo sendo uma estrutura cara, o Estado não entrega serviços na qualidade necessária. No Brasil, apenas 51% se dizem satisfeitos com a escola, percentual superior apenas a Venezuela e Haiti no continente. Na saúde, menos ainda: 33%. De modo geral, o serviço público peca pela falta de avaliações objetivas e periódicas e se destaca por carreiras fragmentadas e confusas. Nas áreas mais influentes do funcionalismo, servidores ganham mais, mesmo tendo competências e atribuições similares. Passou da hora de o Estado deixar de ser um peso e se transformar em facilitador.

Ao mesmo tempo que é preciso avançar na pauta de reformas, o país não pode descuidar das conquistas realizadas. O tripé macroeconômico consagrado com a experiência do Plano Real prevê metas de inflação, taxa de câmbio flutuante e superávit nas contas públicas. A falta da devida atenção à crise fiscal é a moléstia mais aguda de que sofremos neste momento — não é outro o motivo da disparada do dólar. Não pode ser menosprezada. O governo aprovou reajustes do salário mínimo acima da inflação, ciente dos reflexos no rombo da Previdência. A mudança da indexação de benefícios acelerou a necessidade de nova reforma previdenciária. Atrelar os gastos com saúde e educação ao aumento da receita é outra medida com apelo popular, mas contraproducente, por comprimir todos os demais gastos do governo, da infraestrutura aos investimentos para combater os efeitos das mudanças climáticas.

Sem o ajuste fiscal, a dívida pública continuará aumentando. O brasileiro precisa e merece educação, saúde e segurança muito melhores. A crise fiscal mostra que não há dinheiro para tudo, portanto é preciso uma gestão eficiente do setor público. Esse desafio ocupa hoje na agenda brasileira o mesmo lugar da hiperinflação na época do Real.

Lula cria embaraços em série para BC conter inflação

Valor Econômico

A impaciência do presidente e seus erros de visão aumentam desnecessariamente o dólar, a inflação, os juros - e a conta será paga por todos os brasileiros

Desde o dia 18 de junho, o presidente Lula passou a investir diariamente contra o Banco Central (BC), a figura de seu presidente e os rumos da política monetária. Lula pode ter opinião sobre tudo, mas não pode ignorar que, como líder da nação, suas palavras têm peso e consequências. Os efeitos das invectivas de Lula sobre o BC foram um aumento ininterrupto da valorização do dólar ante o real, que no ano atingiu até ontem 16,65%, perto de uma maxidesvalorização. O presidente subiu de tom aos poucos e ontem, diante da escalada do dólar, disse que o governo “precisa fazer alguma coisa” e que fará uma reunião sobre o assunto hoje - à revelia do BC, entenda-se. Em seguida, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve de desmentir que haverá mudanças no IOF no câmbio.

Há vários erros que o Planalto está cometendo, alguns mais graves que outros. O presidente não se conforma com o fato de Roberto Campos Neto, que dirige o BC, ter sido indicado por Bolsonaro. Mas tem de aceitar e respeitar a lei, que concedeu autonomia à autoridade monetária e mandatos não coincidentes com os do presidente da República, especialmente para preservar o BC das interferências e subserviência políticas - exatamente o que se tenta fazer no momento. Lula foi além e prestou um desserviço ao identificar a política monetária técnica liderada por Campos Neto, que tem derrubado a inflação, como um complô inspirado por um inimigo político para sabotar a política econômica de seu governo. Não há quaisquer sinais disso.

O presidente da República foi tornando mais explícitas suas críticas, ampliando seus efeitos nefastos sobre dólar e juros. Em 27 de junho, declarou à rádio O Tempo que a taxa Selic de 10,5% ao ano é “irreal para uma inflação de 4%”. E emendou: “Isso vai melhorar quando puder indicar o presidente, que vai ao Senado, para construirmos uma nova filosofia”. Na sexta, afirmou que “não precisamos ter política de juros altos neste governo. A taxa Selic a 10,5% está exagerada”. O que Lula está deixando muito claro é que vai nomear um substituto de Campos Neto que reduza a taxa de juros e que siga a “nova filosofia”, que de nova nada tem, escrita no Palácio do Planalto.

Nos discursos de improviso do presidente, um equívoco não vem sozinho, mas arrasta muitos outros que compõem um cenário intranquilo. Lula põe um sinal de igualdade entre realizar ajuste fiscal, para deter a gastança que seu governo realiza, com cortar benefícios dos pobres. Ou identifica cobranças de adequação das contas públicas, para que seja possível cumprir metas fiscais que sua própria gestão traçou, com “prestar contas a ricaços” ou a banqueiros e especuladores, pessoas às quais considera que o BC dedica atenção exclusiva.

No pacote dos discursos, há a rejeição da autonomia do BC, ao ajuste de contas que reduza os gastos previdenciários, à desvinculação dos benefícios da correção real do salário mínimo, e à política monetária. Essas ideias não são as respostas que investidores domésticos e internacionais esperam para o cenário que traçam hoje. A queda da Selic teve de ser interrompida porque a inflação voltou a se distanciar da meta. Os 10,5% atuais, contra os quais se insurge o presidente, terão que perdurar por um bom tempo para que o BC leve a inflação a 3%, que é o seu mandato. A opinião de mais de uma centena de consultores e analistas no boletim Focus prevê 4% de inflação para este ano e 3,87% para o próximo, e que o governo não cumprirá as metas de resultado fiscal em nenhum dos anos de seu mandato.

A taxa de câmbio reflete todos esses fatores domésticos, mas sua tendência principal tem componente preponderante externo. Taxas de juros altas nos EUA, prolongadas por mais tempo que o previsto, fortaleceram o dólar, assim como agora as incertezas sobre as eleições americanas. A maré de apreciação do dólar prevalece há meses, mas atinge os países com intensidades diferentes. Entre as moedas emergentes relevantes, o real foi a que mais se desvalorizou no primeiro semestre do ano. As declarações de Lula pesaram: parecem confirmar as piores suspeitas dos investidores sobre a deterioração da situação fiscal e da política monetária futura.

O presidente Lula tumultua artificialmente um cenário que não é de crise. Os números da economia são vigorosos, especialmente os do emprego e da renda. O crescimento será possivelmente maior que o previsto e a arrecadação bate recordes. No que se refere à ameaça cambial, o país tem US$ 355 bilhões em reservas (dados de 2023), mais que suficientes para enfrentar grandes turbulências. O que obscurece esses dados são o déficit fiscal e a resistência da inflação, que o BC tenta corretamente debelar, sob queixas de Lula.

“O que o mercado está precificando hoje não está sincronizado com a realidade”, disse ontem Campos Neto em Portugal, ao revelar que está confiante em que a inflação futura será menor do que as expectativas. O presidente Lula cria embaraços desnecessários para que o BC continue reduzindo a inflação, o que necessariamente põe algum freio na economia até que o objetivo seja atingido. A impaciência do presidente e seus erros de visão aumentam desnecessariamente o dólar, a inflação, os juros - e a conta será paga por todos os brasileiros.

Retórica populista de Lula semeia a crise

Folha de S. Paulo

Frenesi verborrágico do petista alimenta incertezas e a alta do dólar, criando armadilha para o próximo chefe do BC

São típicas da retórica populista a pretensão de personificar o interesse do povo, sempre tratado como massa amorfa e incapaz, e acusações contra supostos inimigos de tais aspirações. Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que nunca se afastou muito desse padrão, decidiu aprofundá-lo num recente frenesi de entrevistas e pronunciamentos.

"Eu não sou um presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo que está na Presidência da República deste país por conta de vocês", discursou Lula de modo quase caricatural no sábado (29), em São Paulo, ao concluir uma longa sequência de autoelogios.

Os inimigos escolhidos são, mais uma vez, o Banco Central e o mercado financeiro, que estariam envolvidos em uma conspiração para manter os juros elevados. "O que você não pode é ter um BC que não está combinando adequadamente com aquilo que é o desejo da nação", disse o petista na segunda-feira (1º), desta vez arvorando-se em falar em nome da nação.

Mesmo para um mandatário desde sempre amigo dos microfones, a escalada verborrágica dos últimos dias é evidente —foram ao menos oito entrevistas a veículos de comunicação e 13 discursos desde a semana retrasada. Já os objetivos não parecem tão claros, e os resultados são desastrosos.

Só nesse período, a cotação do dólar saltou 4,7%, segundo a taxa média calculada pelo BC, aproximando-se do patamar de R$ 5,70, o que tende a pressionar a inflação.

Pudera: em 16 dias, Lula indicou que espera do próximo chefe do BC mais alinhamento a seus desígnios, desautorizou medidas de controle de despesas públicas aventadas por sua equipe e, nesta terça (2), disse que o governo fará "alguma coisa" contra a alta do dólar.

Não há lógica no falatório. Os quatro diretores indicados pelo governo petista ao BC votaram pela interrupção da queda dos juros, amparados por argumentação técnica. A desvalorização do real só torna ainda mais difícil retomar o corte das taxas.

O mercado, ambiente no qual se formam preços, reage às incertezas alimentadas por Lula quanto às contas públicas, a autonomia da política monetária e o controle da inflação. Intervir nesse movimento, sem estancar suas causas, será inócuo na melhor das hipóteses.

Em menos de seis meses, Roberto Campos Neto deixará o BC e não servirá mais de bode expiatório para as mazelas da economia. Na toada de hoje, seu sucessor corre risco de assumir em um cenário hostil, de impacto do câmbio na inflação e perda de credibilidade.

A piora das condições financeiras, cedo ou tarde, chega à produção e ao emprego, e os mais atingidos são os pobres em cujo nome pretende falar o populismo.

Gasto nada homeopático

Folha de S. Paulo

Ante carências do SUS, uso de recursos em terapias controversas deve ser revisto

Atualmente, 11% dos brasileiros têm mais de 65 anos. Estima-se que, em 2050, serão mais de 20% e, em 2050, quase 30%. Tal envelhecimento da população impõe desafios para a Previdência Social e, não menos importante, para o sistema público de saúde.

É preciso desenhar políticas para os idosos e de prevenção contra problemas comuns com o avanço da idade. Essa mobilização demanda alocação racional de recursos. Causa espécie, nesse contexto, que dinheiro público seja direcionado a terapias sem eficácia comprovada.

A homeopatia é uma delas. Ao lado de outras carentes de evidências (como reike, aromaterapia e constelação familiar), ela é ofertada no programa Práticas Integrativas e Complementares (PICs) do SUS, criado em 2006.

Em 2023, 32,6 mil atendimentos em homeopatia foram feitos no sistema público de saúde do país, segundo o Ministério da Saúde. O problema é que, até agora, pesquisas científicas não conseguiram comprovar que a terapia funciona.

Duas meta-análises publicadas em 1997, na revista Lancet, e em 2017, na Systematic Review, concluíram que não há evidências suficientes de que a homeopatia seja eficaz para enfermidades específicas.

Há indícios de que os benefícios apontados por usuários e homeopatas se devam ao chamado efeito placebo —isto é, a consequência da expectativa positiva dos pacientes de que serão curados.

A medicação extremamente diluída da homeopatia em si parece não produzir impacto, mas o atendimento acolhedor dos médicos que a receitam, sim.

Por isso, especialistas como o professor de Havard Ted Kaptchuk, um dos maiores nomes em análises de placebo, indicam que a medicina precisa incorporar nas consultas melhor comunicação e um atendimento mais individualizado, que trate o paciente como um todo, não apenas seus sintomas.

Há indícios de que incentivar tratamentos alopáticos humanizados seria mais sensato do que bancar terapias sem respaldo com dinheiro público, ainda mais considerando as dificuldades orçamentárias do governo e a pressão do envelhecimento da população.

A alarmante escalada do déficit da Previdência

O Estado de S. Paulo

Estudo do Ipea mostra que o rombo chegou a R$ 429 bilhões no ano passado. Com receita de R$ 1,18 trilhão para despesas de R$ 1,6 trilhão, uma nova reforma da Previdência é urgente

A receita da Seguridade Social no ano passado atingiu R$ 1,179 trilhão, o suficiente para cobrir apenas 73,3% da despesa total de R$ 1,6 trilhão do sistema de previdência e assistência social. O déficit de R$ 429 bilhões em 2023, revelado em estudo de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados coletados da Receita Federal, mostra que é urgente repensar o sistema previdenciário. Ainda que em 2019 a Previdência tenha passado por sua mais ampla reformulação desde a Constituição de 1988, os números comprovam que não foi o bastante para garantir o financiamento futuro.

Os pesquisadores Rogério Nagamine Constanzi e Graziela Ansiliero, autores do trabalho que buscou estimar alíquotas capazes de custear a Previdência Social, recorreram à base de dados de órgãos do governo, pesquisas estatísticas e estudos de especialistas para concluir que a perspectiva – caso permaneça a situação atual – é que o déficit cresça ao longo do tempo, acompanhando o rápido envelhecimento da população.

O novo trabalho do Ipea corrobora, com precisão técnica inquestionável, a necessidade de um novo e profundo debate sobre a questão previdenciária. Há pouco mais de quatro anos, mudanças fundamentais para a manutenção do sistema, como a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, representaram avanço importante, mas não solucionaram os problemas de financiamento. Faz-se necessário, no atual contexto de discussão da reforma tributária, retomar um debate profundo para garantir a solvência previdenciária nas próximas décadas.

Lembrando que, num sistema previdenciário contributivo a receita é vinculada ao financiamento da despesa, Nagamini e Ansiliero chamaram a atenção para o fato de que o rombo do ano passado ocorreu, apesar do efeito do mecanismo de Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite ao governo federal usar livremente 30% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas, o que incluía (supostos) excedentes de receitas vinculadas à seguridade social.

O acompanhamento dos economistas mostrou que, ao longo de 15 anos, a relação entre receita e despesa se deteriorou de forma consistente. Em 2008, as receitas representavam 111,8% das despesas assistenciais e de Previdência; em 2013, a arrecadação ainda era mais do que suficiente para os gastos, representando 102,8%, mas, daí para a frente, os déficits se sucederam até chegar aos pouco mais de 73% em 2023.

O estudo também apresenta dados restritos do regime previdenciário dos trabalhadores privados vinculados ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e os resultados são ainda mais alarmantes: em 2000, a receita cobriu 84,7% da despesa total; em 2023, a arrecadação foi suficiente para custear apenas 65,9% do dispêndio. A receita do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) correspondeu a 5,5% do PIB no ano passado, exatamente a mesma proporção de 2009. Já a despesa, que era de 6,7% do PIB em 2009, aumentou para 8,3% em 2023.

Diante de números que revelam tamanha insustentabilidade do regime previdenciário, ações como a criação de uma força-tarefa do INSS para realizar 800 mil perícias e verificar se foram corretamente concedidos os benefícios por incapacidade e as aposentadorias a idosos de baixa renda e pessoas com deficiência, como anunciou o presidente do instituto, Alessandro Stefanutto, ao Estadão, assumem um caráter meramente paliativo. Embora a revisão periódica de benefícios seja uma medida importante para evitar fraudes e gastos desnecessários, a questão previdência é mais profunda e exige ação imediata.

Os pesquisadores do Ipea destacam, além da intensa mudança demográfica, transformações do mercado de trabalho, que criaram desequilíbrios adicionais na cobertura previdenciária, como o crescimento vertiginoso de Microempreendedores Individuais (MEIs), com tratamento subsidiado, e o aumento da informalidade. As alíquotas de contribuição propostas por eles são invariavelmente altas, ao redor dos 30%. Em tempos de debate sobre desoneração da folha de pagamentos, é uma discussão necessária.

Elogio ao cinismo

O Estado de S. Paulo

Ao fazer campanha descarada por seus candidatos em São Paulo e Rio, Lula não só desabona a própria Presidência da República, como ajuda a converter lei eleitoral em peça de ficção

Com um olho na própria reeleição e outro nas eleições municipais deste ano, o presidente Lula da Silva passou o fim de semana na ponte aérea ao lado de seus candidatos às prefeituras de São Paulo e do Rio de Janeiro. Nesse périplo eleitoreiro, os nomes apoiados por Lula – o paulista Guilherme Boulos (PSOL) e o carioca Eduardo Paes (PSD) –, as plateias do presidente nas duas cidades e, infelizmente, o restante do Brasil testemunharam, quase sem disfarces além do cinismo de praxe, a antecipação da campanha eleitoral. Pelo que faz e pelo que diz de maneira incontrolável – afinal, é sua natureza –, Lula desmoraliza o cargo que ocupa, o que não chega a surpreender. Seria demais esperar que o petista respeitasse a lei que proíbe campanha eleitoral, posto que jamais desceu do palanque, mas não precisava desmoralizá-la de maneira tão acintosa.

Em São Paulo, num descarado comício no Jardim Ângela, com a presença de Boulos no palanque, Lula disse que iria assinar ali o contrato de financiamento da expansão do metrô para aquela região periférica da capital, mas não o fez porque nem o prefeito Ricardo Nunes nem o governador Tarcísio de Freitas aceitaram comparecer ao evento. É possível imaginar as razões que levaram Nunes e Tarcísio a declinar do convite, já que nada ali se assemelhava a um evento oficial de governo. Era um ato de pura e simples campanha eleitoral, natureza que ficou clara quando Lula ironizou o prefeito e o governador, dizendo que, “quando a gente quer fazer investimento, quando a gente quer fazer crédito, a gente não se preocupa de que partido é o governador, a gente se preocupa se o povo daquele Estado, se o povo daquela cidade precisa das coisas que a gente faz”.

Já no Rio de Janeiro, Lula foi recebido de braços abertos por Paes, candidato à reeleição, despejando sobre o anfitrião fartos elogios e afirmando estar “diante do possível melhor gerente de prefeituras que este país já teve”.

Veteraníssimo de campanhas eleitorais, Lula conhece muito bem a lei. Até o início oficial da campanha, em 16 de agosto, não se pode pedir voto. No evento do 1.º de Maio, no entanto, Lula resolveu pedir votos para Boulos porque o comício havia sido um fracasso e era preciso criar um fato político para desviar a atenção. Ele sabia que seria multado pela Justiça Eleitoral, mas a multa, de tão irrisória, na prática se torna uma despesa de campanha como outra qualquer. Não existe de fato um estímulo para que a lei seja cumprida, especialmente pelos partidos que andam com as burras cheias de dinheiro oriundo de generosos fundos públicos.

Mas a coisa vai além da mera desobediência. É puro escárnio. “Não posso falar o nome do Boulos, porque já fui multado uma vez”, disse Lula no Jardim Ângela, como se estivesse realmente preocupado com isso. Para deixar claro que não dava a mínima para a lei, permitiu que seu candidato discursasse em tom de triunfo, ao enaltecer a obra e a graça de “governos populares em São Paulo”. No Rio, Paes também ironizou a impossibilidade de pedir votos, dizendo que não pode “pedir nada”.

Tudo isso mostra a evidente limitação da legislação eleitoral no contexto das pré-campanhas. São problemas que vão além do mecanismo da reeleição, como se constata ante o empenho de Lula para usar a máquina federal em favor de seus candidatos. O brasilianista Thomas Skidmore, no clássico livro Brasil de Getúlio a Castello, publicado na década de 1960, já descrevia assim os dilemas entre a gestão e a disputa eleitoral no País: “Só existe governo no Brasil durante a primeira metade do mandato presidencial – a outra metade é consumida elegendo o próximo presidente”. Uma herança que se espraia uniformemente pelos mandatos de governos estaduais e prefeituras. E assim o presidente não apenas desabona o próprio papel, como converte a legislação que rege os limites da pré-campanha numa peça de ficção ou de cinismo – uns fingem que obedecem; outros fingem que fiscalizam e punem.

O peso de Lula na inflação

O Estado de S. Paulo

As falas do presidente da República contribuem para piorar expectativas já bastante ruins

As estimativas de analistas do mercado financeiro para a inflação sobem semana a semana há, ao menos, dois meses. Para este ano, a previsão já atinge 4%, ou seja, um ponto porcentual acima do centro da meta de 3% e só meio ponto abaixo do teto; para 2025, a projeção é de 3,87%. A tendência já havia sido verificada no recente Relatório Trimestral de Inflação (RTI), que constatou consistente piora na percepção dos analistas para o comportamento inflacionário, ainda que os resultados fiscais negativos no curto prazo já fossem favas contadas.

Tanto o RTI quanto o Focus são elaborados pelo Banco Central (BC), com base em modelos de projeções coletados em mais de cem instituições financeiras. A deterioração das previsões, é bom ressaltar, não se deve apenas ao acompanhamento de preços ou ao comportamento desta ou daquela commodity agrícola ou mineral, ou mesmo aos reflexos da economia norte-americana. Contribuem – e muito – para o cenário as incertezas futuras no mercado doméstico e, neste tópico, o presidente Lula da Silva tem se esmerado em potencializar a inquietação.

Por óbvio, tem pesado muito nas expectativas de inflação a constatação de que a revisão das despesas prometidas pelo governo não será suficiente para equilibrar o orçamento público, ainda mais diante de uma arrecadação já no limite. E desde que decidiu substituir as lives semanais roteirizadas por entrevistas a veículos de comunicação, Lula da Silva se transformou numa fonte inesgotável de insegurança.

A cada declaração estouvada, faz disparar o dólar, recalibra opções de analistas, deixa o mercado em polvorosa e, depois, se diz surpreso com o resultado. Sem medir as palavras, chamou de “cretinos” os especialistas que atribuíram um pico na cotação do dólar em parte às dúvidas que ele manifestou sobre a necessidade de cortar gastos, em entrevista ao portal UOL, mesmo diante de um déficit primário de R$ 61 bilhões, o segundo pior desde 1997. “Os cretinos não perceberam que o dólar tinha subido 15 minutos antes”, disse Lula, ignorando o fato de que a alta do dólar naquela quinta-feira tinha ocorrido imediatamente depois de sua fala desastrosa, e não antes, conforme cronometrou o Estadão/Broadcast.

Dizer que não tem certeza da urgência de cortar despesas é assinar um atestado contra a responsabilidade fiscal. Sem que Lula ao menos demonstre efetivo interesse em equilibrar as contas, será necessário manter os juros altos para conter a inflação.

Mas Lula não está nem aí. Em entrevista à rádio mineira O Tempo, indiferente ao caos que espalha, voltou a criticar os juros e garantiu que “isso vai mudar” quando ele puder indicar o presidente do Banco Central. Ou seja, o presidente anunciou, a quem interessar possa, que o próximo presidente do BC será só um nome no crachá, pois a política monetária será ditada pelo Palácio do Planalto.

Enquanto isso, a inflação sobe. No momento em que se relembra o lançamento do real, que há 30 anos restabeleceu o poder de compra da moeda nacional e abriu caminho para o desenvolvimento maduro do País, é preciso reforçar a mensagem de que o controle da inflação não é uma dádiva da natureza, mas resultado de responsabilidade fiscal – aquela que Lula parece desdenhar.

As falas de Lula e os especuladores

Correio Braziliense

Não há nenhum fundamento que justifique o valor do dólar, que, ontem, fechou cotado a R$ 5,66, acumulando valorização de 1,37% no mês e de 16,75% no ano

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou ontem preocupação com a escalada do dólar frente ao real. Mas, mais do que preocupação, sinalizou que pedirá uma reunião de governo para adotar medidas para conter o que classifica de ataque especulativo contra o real. De fato, a moeda brasileira tem se desvalorizado muito em função de movimentos especulativos dos investidores, mas também pelas altas taxas de juros nos Estados Unidos e pelas incertezas em relação à economia norte-americana e pelos embates do presidente com o Banco Central. Lula, sozinho, não tem capacidade para alterar o câmbio, mas as suas falas são tudo o que os especuladores querem para justificar a escalada do dólar.

O presidente tem todo direito de expressar suas opiniões e diretrizes do seu governo, mas precisa considerar a conveniência de suas declarações — muitas vezes orientadas para a política e para marcar posição para seus candidatos nas eleições municipais. Lula trata questões econômicas como se estivesse em um palanque e o adversário fosse o presidente do Banco Central ou os investidores, uma atitude que é extremamente danosa para a economia brasileira. Não há nenhum fundamento que justifique o valor do dólar, que ontem fechou cotado a R$ 5,66, acumulando valorização de 1,37% no mês e de 16,75% no ano.

A cotação do moeda norte-americana está fora da realidade, considerando a conjuntura econômica do país, mas não há um limite para que se valorize frente ao real, e o que se espera é que, como disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se elimine os ruídos de comunicação gerados pelo próprio governo, que, segundo ele, comunica mal os seus feitos na área econômica. Em relação ao limite para a alta do dólar, é preciso lembrar que, em setembro de 2022, nas vésperas da primeira eleição vitoriosa de Lula, a moeda atingiu valor recorde, corrigido pela inflação, de R$ 8,76. Hoje, o dólar, que começou o ano abaixo de R$ 5, está na maior cotação desde janeiro de 2022.

Esse cenário de incertezas nos Estados Unidos pressiona as moedas de todo o mundo, não apenas no Brasil. Moedas da Colômbia, da Argentina, do Chile e do México estão pressionadas e perdendo valor frente ao dólar, mas num patamar não tão intenso quanto no Brasil. Com as taxas de juros elevadas nos EUA e as taxas de longo prazo, que não são controladas pelo Banco Central, subindo sistematicamente, dólares de todas as partes do mundo migram para a América, e os mercados em que há menos divisa norte-americana sofrem desvalorização das suas moedas. Ocorre, praticamente, em todas as economias periféricas, num processo que se torna mais intenso no Brasil, com o presidente municiando os especuladores.

Nesse contexto, a primeira medida efetiva para conter o ataque especulativo é cessar as falas que alimentam e servem de justificativa para os especuladores. O resultado desse movimento será exatamente a elevação das taxas de juros para evitar, de um lado, que o dólar caro e a demanda aquecida elevem a inflação, num cenário que há seis meses seria improvável, e, de outro, conter a própria cotação da moeda dos Estados Unidos. O dólar elevado encarece todos os produtos importados, como diesel e trigo, cujo aumento vai parar direto no bolso do brasileiro. O presidente Lula tem que ser alertado de que o efeito das suas falas pode ser exatamente o contrário do que ele diz almejar.

 

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