terça-feira, 9 de julho de 2024

Ricardo José de Azevedo Marinho - Paixão pelo Possível

Blog Voto Positivo

A compostura política não deve ser confundida com a social, que, embora aparente ser menos importante para o futuro das sociedades, carrega um papel sobejo. A compostura social refere-se às regras de boas maneiras, à ideia de bom gosto e às normas de comportamento social que começam a ser estabelecidas no século XV e que são bem descritas pelo mestre da história dos costumes Norbert Elías (1897-1990) e às quais o grande filósofo Erasmo de Rotterdam (1466-1536), que deixando fluir por um momento seu grande gênio, dedicou em 1530 um pequeno livro que fez muito sucesso a época, De civilitate morum puerilium (Da civilidade pueril), um livro curioso e divertido aos nosso olhos, em que desenvolve o conceito de civilidade também caro ao saudoso Emmanuel Le Roy Ladurie (1920-2023), um conjunto de bons costumes válido para se comportar na vida e que opera para toda a sociedade.

Nesse livro, ele aponta, entre outras coisas, preocupações específicas sobre o muco nasal e a forma como ele deve ser removido. Afirma que não é correto se jogar ele ao leu e muito menos colocar as mãos na comida a torto e a direita.

A compostura política é algo diferente, é uma questão que apela à substância e à forma, ao método como parte inseparável do conteúdo da política democrática. Consiste numa forma de comportamento, num estilo, num tom que reforça na ação política a procura de um caminho reflexivo para liderar a pólis que procura os caminhos dos compromissos e acordos históricos, que aproximam visões avessas a polarizar posições conflituosas, que tentam alcançar o apoio do cidadão, pois deseja proclamar as virtudes dessas propostas.

Procura soluções possíveis que sejam aceitáveis ​​para grandes maiorias e procura olhar o adversário distante do conceito-relação amigo-inimigo, em que o inimigo deve ser destruído.

A compostura política implica decência e decoro nos métodos a utilizar, moderação na linguagem, e descarta a estridência e o insulto, ao desejar fortalecer não só as posições que defende, mas ao mesmo tempo a vida democrática como um todo, protegê-la do declínio, das brigas que reinam nos sistemas políticos decadentes, que acabam por incentivar o surgimento como uma pandemia de ideias rudes e autoritárias que se propõem a estabelecer a ordem a todo custo, mesmo quando há direitos e liberdades pisoteados.

Este tom, este estilo, não significa renunciar as convicções e a objetivos e metas ousados ​​e necessários, não devem corresponder a uma posição política fraca e vazia, mas procura os seus objetivos de forma serena, gradual, comedida, sem pretender possuir verdades absolutas, mas com ouvidos abertos aos outros, a quem pensa diferente e age de forma ponderada e ajustada às circunstâncias, ao tempo e ao lugar.

Isso não significa que aqueles que a praticam como o recém-empossado primeiro-ministro do Reino Unido Keir Starmer do Partido Trabalhista não tenham temperamento e sangue nas veias, mas sim que tenham uma capacidade de autocontrole que é sempre útil para qualquer pessoa, mas é essencial para um líder que aspira a liderança dirigir os destinos de um país, competindo em um sistema pluralista e diversificado.

Há poucos dias completaram-se quarenta anos do falecimento, em 11 de junho, de Enrico Berlinguer (1922-1984), secretário-geral do Partido Comunista Italiano, ocorrida no meio de uma manifestação, dramaticamente devido a um acidente vascular cerebral durante um discurso. Berlinguer liderou o maior Partido Comunista do Ocidente naqueles anos e realizou uma transformação gradual da sua tradição histórica e teórica, conduzindo-o a um horizonte democrático e reformador. Ele nunca liderou um governo, mas para o seu funeral a Itália rendeu todas as honrarias de chefe de Estado, com apoiantes e adversários homenagearam-no, mesmo os mais ferozes, houve um sentimento de perda não só política, mas cultural, ele deixou uma marca profunda por ter ajudado a Itália a passar por momentos infelizes durante o recomeço da democracia.

Anos depois de sua partida, o partido que contribuiu poderosamente para mudar deu origem, juntamente com outras tradições políticas progressistas, ao atual Partido Democrático, que nas últimas eleições europeias alcançou 24,8% dos votos, sendo o segundo partido em Itália, uma enorme garantia democrática em tempos de ascensão da extrema direita e de tendências iliberais.

Algumas de suas ideias não duraram, mas sua figura permanece sendo muito respeitada mesmo entre as novas gerações. Nestes quarenta anos perdurou um respeito, um apreço e até uma reverência que percorre todo o arco político, as mais diferentes posições e de muitos cidadãos afastados da política.

Berlinguer faz falta porque ele incorporava com impressionante precisão o que tememos que a nossa comunidade planetária possa perder: a compostura. A capacidade de manter um estilo público e uma respeitabilidade em seu cotidiano que não pode ser apagada pelos acontecimentos, como se entre os deveres de um líder, estivesse o de demonstrar, não como algo menor, mesmo nas mais duras e dramáticas tempestades políticas um estilo.

Um estilo de decência, austeridade e altivez em todas as suas batalhas desde a libertação da Itália, quando era muito jovem, até à sua morte demasiada precoce.

Afinal, foi essa a marca que ele deixou, algo humano, corajoso e que transpirava brandura. Muito poucos políticos sobrevivem a um respeito profundo, duradouro e horizontal pela sua compostura política. Berlinguer não é o único, claro, e há outros de diversas tendências políticas, mas são poucos.

Estamos próximos ao início de um período eleitoral que pode fortalecer ou enfraquecer a nossa democracia, que apesar da sua resiliência e resistência não nos encontramos no melhor momento, a atmosfera existente e o nível dos debates são mesquinhos e dolorosos.

Não será hora de refletir sobre o tom, o estilo e o método de ação política? Talvez esta reflexão nos ajude a abandonar como fez em uma semana a França, ao pôr de lado as visões extremas, os interesses particulares que por vezes parecem ocupar a maior parte do espaço público e a regressar, pouco a pouco, ao caminho do bem comum.

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