sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Andrea Jubé - A política está cheia de som e fúria, e vazia de sentido

Valor Econômico

Exemplos são a acirrada campanha pela Prefeitura de São Paulo e a nova crise institucional em Brasília

Esses dois substantivos aparecem em um dos trechos mais famosos da tragédia “Macbeth”, de William Shakespeare, publicada no século XVII; formam o título de uma das obras-primas de William Faulkner no século XX; e, agora, dão o tom da política nacional.

“A vida é uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, que nada quer dizer”, constata um amargurado rei Macbeth, ao ser informado da morte de Lady Macbeth. Mas se o atormentado monarca se deparasse, de repente, com a nossa realidade, poderia afirmar: “A política brasileira é cheia de som e fúria, que nada quer dizer”.

E por que as tragédias de Shakespeare (“Macbeth”) e Faulkner (“O som e a fúria”) dialogam com o cenário brasileiro em plena campanha municipal, tumultuada pela suspensão do pagamento das emendas parlamentares? (Lembre-se que as emendas são um instrumento estratégico de deputados e senadores na relação com os prefeitos).

Pois esse paralelo é possível tomando-se, como exemplo, a acirrada campanha pela Prefeitura de São Paulo e a nova crise institucional em Brasília. A campanha e a crise dialogam com a ficção porque têm em comum o “som” estridente da disputa pelo controle do orçamento público, e a “fúria” predatória dos candidatos na briga pelo comando da capital paulista.

Em retrospecto, a coluna passa a relacionar, abaixo, fatos das últimas semanas que ilustram como princípios que deveriam pautar a política, como transparência dos gastos públicos, respeito ao adversário e ao eleitor, parecem coisa do passado, enquanto som (alto) e fúria dominam o ambiente.

Cena 1: 21 de agosto - Em vídeo divulgado nas redes sociais, o candidato a prefeito de São Paulo, Pablo Marçal (PRTB), usou um recado para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para disparar palavras de baixo calão (“banana”, “vagabundo”) contra seus adversários. Termos que, a rigor, não deveriam constar do vocabulário político. “O povo de São Paulo não vai prestar continência nem pro vagabundo do [deputado Guilherme] Boulos, nem pro banana do [prefeito Ricardo] Nunes”, xingou, ao afirmar que não desistirá da candidatura. “Não vou me [sic] retroceder”, concluiu, em um português claramente duvidoso.

Cena 2: 8 de agosto - No debate promovido pela Band/Portal UOL, Pablo Marçal chamou a adversária, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), de “adolescente”, que “precisa amadurecer um pouco”. Não satisfeito, insultou a parcela do público que defendeu a candidata: “Torcida kids, parachoque de comunista”. A “adolescente” a que ele se refere é uma mulher de 30 anos, admirada pela sua trajetória, iniciada em escolas públicas da periferia paulistana até a graduação em ciências sociais e astrofísica na prestigiada Universidade de Harvard.

Cena 3: 20 de agosto - No almoço realizado no Supremo Tribunal Federal (STF), que reuniu os chefes dos três Poderes, os 11 ministros da Corte e dois ministros de Estado, em busca de um entendimento por regras objetivas e transparentes para a liberação de emendas, houve momentos de tensão. Em um deles, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), subiu o tom em resposta ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, que citou exemplos de mau emprego dos recursos públicos. Lira retrucou alegando que ministros da gestão Lula seguiriam as mesmas práticas, e disse não fazer questão de ser simpático: “Eu sei que não gostam do meu estilo direto, e eu não me importo com estereótipo de ser ríspido, eu sou assim", desafiou.

A nova crise entre os Poderes foi deflagrada por decisões do ministro do STF Flávio Dino que suspenderam a liberação das emendas, até que novas regras garantindo transparência e clareza dos gastos sejam instituídas. A principal polêmica envolve as chamadas “emendas Pix”, uma verba de R$ 8 bilhões, pela qual um ministério transfere recursos milionários diretamente para o caixa de uma prefeitura ou de governo estadual, sem identificação do autor da emenda, sem uma destinação específica para os valores, e sem que o gestor tenha de prestar contas.

Na esfera paulista, o comportamento de Marçal evoca o Jair Bolsonaro em seu auge na campanha de 2018, quando prometeu “fuzilar a petralhada”, e entre outras provocações, arrebatou o eleitorado com o estilo antissistema.

Embora Bolsonaro apoie a reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB), Marçal cresce sem parar nas pesquisas entre eleitores do ex-presidente. Mostra, com isso, que o perfil de político em fúria contra tudo e contra todos continua atraindo votos, e não é mais monopólio de Bolsonaro.

Esse movimento pode ser contido? O presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, acredita que sim, e afirma que Marçal começará a derreter em duas semanas. “Ele sai atacando todos, o eleitor se cansa disso”, aposta.

Na campanha de Boulos, todavia, o sentimento é de que Marçal pode chegar ao segundo turno. Nessa hipótese, aliados do candidato do Psol veem no “coach” um adversário menos difícil, por não ter com ele as máquinas do poder municipal e estadual, que dão lastro à campanha de Nunes.

Voltando ao Bardo, se a vida é um conto de som e fúria, narrado por um tolo que ninguém compreende, a vida real deve ser som e silêncio, fúria e serenidade, onde o cidadão não seja o tolo, e a política faça todo sentido.

 

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