Valor Econômico
Não deixa de ser estranho que, 100 anos depois, o mundo caminhe para políticas que lembram bastante o que se viu no entre guerras
A busca de um comércio internacional mais livre foi um dos principais marcos das discussões de política econômica no século XX. Essa busca começou ainda no período entre as duas Grandes Guerras, tentando reverter o forte protecionismo adotado pela maioria dos países em resposta ao quadro recessivo de então. Como logo ficaria claro - por exemplo, no fracasso da Conferência Monetária e Econômica Mundial de 1933 - esse seria um desafio bem maior do que inicialmente pensado, pela dificuldade, de um lado, de convencer os atores políticos e, de outro, de negociar tarifas individuais para produtos específicos, em que a competitividade dos países era bem diferente.
Esse processo se acelerou após a Segunda
Grande Guerra, primeiro com a conferência de Bretton Woods, em 1944, de onde se
originaram o FMI e o Banco Mundial, assim como as regras que governariam o
sistema monetário internacional nas décadas seguintes, e, em 1947, com a
assinatura do Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT, na sigla em inglês). Os
Estados Unidos exerceram uma liderança importante nesse processo, refletindo
sua vantagem comparativa na produção de bens manufaturados, a situação
econômica favorável com que saiu da guerra e os seus interesses geopolíticos,
em especial de conter a expansão do comunismo, o que em algumas situações fez o
país aceitar acordos que de outra forma rejeitaria.
Outras rodadas de negociação viriam ao longo
dos anos, culminando com o estabelecimento da Organização Mundial do Comércio,
no início de 1995. Ajudou bastante nessa fase a popularidade de políticas
econômicas mais liberais, que viria com a dissolução do bloco soviético e o
abandono do comunismo, com a maioria dos países reduzindo a influência do
Estado na alocação de recursos na economia. O Brasil, com seu programa de
abertura comercial no final dos anos 1980 e, principalmente, no início dos anos
1990, é um bom exemplo do que ocorreu nessa fase.
Se os EUA impuserem novas barreiras às
importações, isso reduzirá o crescimento na Europa e na China
Não foi, porém, um processo isento de
críticas. Em especial, ele é visto como tendo favorecido as economias
avançadas, focando em liberalizar o comércio de bens manufaturados, em que
estas eram mais competitivas. Mas isso tem mudado nos últimos anos, conforme a
vantagem comparativa na produção de manufaturados passou, em grande parte, para
os países emergentes, em especial a China. É interessante observar, nesse
sentido, que entre 2000 e 2023 o volume de exportações dos emergentes cresceu
em média 5,4% ao ano, contra 3,1% ao ano para as economias avançadas. Entre
1980 e 2000, essas taxas haviam sido de 5,7% e 6,8% ao ano, respectivamente.
Essa é parte da explicação para as políticas
comerciais mais protecionistas que vêm sendo adotadas em algumas economias
avançadas, como os Estados Unidos. Em especial, Donald Trump tem prometido que,
se for reeleito presidente, irá elevar as tarifas sobre as importações
americanas, particularmente as vindas da China, promovendo um significativo
programa de (re)industrialização via substituição de importações, um objetivo
também perseguido pelo atual presidente, ainda que focando mais em subsídios
aos investimentos.
Três fatores principais parecem motivar essa
postura. Um, de caráter mais geopolítico, é o desejo de reduzir a integração
econômica entre os Estados Unidos e a China. Outro, vem da visão de que a
indústria é parte da cadeia de defesa nacional. E, um terceiro, é o potencial
de votos que podem vir de políticas voltadas a gerar empregos nos Estados do
Meio Oeste americano, que tendem a ganhar com essas políticas.
Há sérias dúvidas de se os Estados Unidos
serão bem sucedidos nessas políticas. A visão dominante é que a proteção
tarifária, junto com os estímulos fiscais, irá resultar em apreciação cambial,
o que reduziria a competitividade americana. Os Estados Unidos poderiam
pressionar para haver um esforço coordenado com outros países para depreciar o
dólar, como nos anos 1980. Mas dificilmente teria sucesso, dado o gigantesco
volume de recursos que seriam necessários para promover uma desvalorização
suficiente do dólar. Algo assim só seria possível se o dólar deixasse de ser a
moeda dominante nas transações comerciais e financeiras internacionais, o que
dificilmente valeria à pena para os Estados Unidos.
Não obstante, se os EUA impuserem novas
barreiras às importações, isso reduzirá o crescimento tanto na Europa como na
China. Esta, em especial, tem dependido significativamente do aumento das suas
exportações para crescer, em um quadro de baixa expansão da demanda doméstica.
É um risco relevante, visto que nos últimos anos a China embarcou em um
programa de elevados investimentos na produção de manufaturados, com foco em
produtos intensivos em tecnologia, uma iniciativa que pode gerar elevada
capacidade ociosa, na ausência de um crescimento mais forte das exportações.
Não deixa de ser estranho que, um século
depois, o mundo esteja caminhando para políticas comerciais e cambiais que
lembram bastante, ainda que com menos intensidade, o que se viu no entre
guerras. É torcer para que o bom senso - e o internacionalismo - prevaleça
antes que haja, como então, um impacto mais forte sobre a saúde da economia
mundial.
" A indústria é parte da cadeia de defesa nacional. "
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