domingo, 4 de agosto de 2024

Carlos Melo - A paróquia está no centro da política

O Globo

Legislativo hoje coordena interesses dispersos sem maior preocupação com a agenda nacional

Mesmo não sendo consenso entre politólogos, é difícil negar a ineficiência e a elevação de custos no sistema político brasileiro. Transformações institucionais ao longo do tempo — emendas impositivas, atenuação do poder do governo na emissão de MPs e o maior número de partidos — retiraram capacidade de aglutinação e protagonismo políticos do Poder Executivo e não resultaram em ganhos gerais.

No passado, presidentes da República controlavam coalizações multipartidárias com relativa facilidade e grau de sucesso. A discricionariedade na distribuição de cargos e recursos públicos lubrificava suas relações com um Congresso dependente. Porém a tomada do Orçamento federal autonomizou e fortaleceu o Legislativo, que hoje coordena interesses dispersos sem maior preocupação com a agenda nacional.

Leis são aprovadas e vetos derrubados pelo Congresso em acordo com lobbies e o fisiologismo de seus grupos: a dinâmica interna submete o interesse geral. Um emblemático sinal da mudança está na eleição às presidências da Câmara e do Senado: o grande eleitor deixou de ser o presidente da República, que frequentemente tinha na Câmara um lugar-tenente. Em condições normais, a agenda ficava sob seu controle.

Evidente que aquele presidencialismo imperial era impróprio e carecia de ajustes. Mas o duplo salto carpado da História resultou em que o desequilíbrio institucional apenas mudasse de lado na Praça dos Três Poderes.

Hoje, recursos descarregados nos municípios atravessam políticas públicas com opacidade ética. A paróquia é o centro do raciocínio político. Sob pressão do mercado, reformas econômicas até são aprovadas. Para repousarem, depois, na fila de leis complementares. Senhor dos movimentos, o Congresso anda pouco, para muito, exige mais. Garroteia o governo administrando sua ventura ou desventura.

Defensor dos próprios interesses, o presidente da Câmara é, por excelência, o representante corporativo de seus pares. Para atendê-los, não hesita empunhar pautas-bomba ou insinuar retaliações — o impeachment faz parte do imaginário. O presidente da República cede.

É equívoco evocar o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, essa dinâmica não tangencia tais modelos. Antes, os perverteria. Resta torcer para que interesses do sistema eventualmente coincidam com os interesses da nação. A vida segue. Mas, segue insatisfatória.

O efeito colateral é claro: a cultura é presidencialista; do presidente se espera a condução de um processo político virtuoso. Dele são cobrados os resultados. A imprensa e a economia exigem racionalidade e cortes de gastos — na área social, que seja! — enquanto isso, a caravana das emendas passa com pouco alarde. Na eleição, impiedoso, um plebiscito cairá sobre os ombros do presidente, não nos de parlamentares donos de currais que os protegem.

Resta ao presidente submeter-se a esse suplício ou abrir a janela do cativeiro, arriscando uma fuga para a frente. No caso, em direção à popularidade. Sua libertação, o nome do jogo: a popularidade. Afinal, presidentes populares realçam o carisma e irradiam perspectiva de poder continuado. Apaixonam oportunistas. (Re)tomam o controle do processo.

Há, porém, pouca margem para o voluntarismo fiscal: o dólar pode subir, e a inflação pune. Para retomar a autoridade e a iniciativa perdidas, o presidente Lula precisará de aditivos na popularidade provenientes de meios não exclusivamente fincados no gasto público. Plantar controvérsias e colher apoio em determinados segmentos sociais tem sido a estratégia.

Assim, se as pesquisas indicam ser promissor amaldiçoar, por exemplo, juros, BC, mercado, rifar o ministro e o diabo, esse será o caminho. É o que tem feito. Mas também aqui haverá riscos: como entre a virtude e o vício, a diferença entre o popular e o populista está na dose. Viver de arroubos pode viciar.

 

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