O Globo
Nosso belo hino, decentemente executado por
qualquer banda de música, funciona como kryptonita para cantores populares
O Hino Nacional não dá sorte, coitado. É
sonoro, poético, arrebatador, mas ele mesmo não se ajuda. A começar pela letra
— hermética, quilométrica, redigida na fronteira entre o hipérbato e a
sínquise, eivada de proparoxítonas (é provável que, nesse quesito, só perca
para “Construção”, de Chico Buarque,
e “O drama de Angélica”, de Alvarenga e Ranchinho).
Suas estrofes são intercambiáveis, sem
obedecer a uma sequência lógica — e a maior dúvida da nossa literatura não é se
Capitu traiu Bentinho, mas se o “sonho intenso” vem antes ou depois do “amor
eterno”. (Repare: sempre haverá uma pausa dramática ao fim do refrão Ó
Pátria amada,/Idolatrada,/Salve! Salve!, e nos quedamos em obsequioso silêncio,
à espera de ver — ouvir — para onde vai aquela minoria que inventou uma fórmula
mnemônica para não se perder.)
Há quem diga que a melodia foi inspirada em obras de Beethoven, Rossini, Liszt, Paganini, Neukomm e do padre José Maurício — mas ninguém sabe ao certo, nesse caso, quem é o ovo, quem é a galinha.
Sabemos que nosso belo hino — magistralmente
interpretado por Arthur Moreira Lima, decentemente executado por qualquer banda
de música — funciona como kryptonita para cantores populares. Que o digam
Vanusa em 2009, Luan Santana em
2011, Carlinhos
Brown em 2014 e Ludmilla em
2023. Mais sorte (e talento) tiveram Fafá de Belém, na campanha das Diretas Já,
e Paulinho da
Viola, na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016 — e
muitíssimo menos a até agora desconhecida Yurungai (que se autodefine como
“criadora sobrevivente, afroamerindígena em trânsito” — expressões bem mais
impenetráveis que o lábaro estrelado ou o verde-louro desta flâmula). Coube a
ela, desafinadamente, causar estragos tanto ao hino quanto à campanha de
Guilherme Boulos — num pleito que pode catapultar ao Planalto, em 2026, um
charlatão (eufemismo sugerido pelo meu Departamento de Compliance) que nos
fará ter saudades de Sarney, Collor, Lula, Dilma e Bolsonaro, juntos.
Não ocorrerá a Kamala Harris meter
um “free persons” em “when freemen shall stand”, nem a Emmanuel
Macron neutralizar o “Aux armes, citoyens” com um “citoyen.es”
(em francês, o neutro se faz com “.e”). Primeiro, porque têm juízo; segundo,
porque Hino Nacional é coisa séria; por fim, porque sabem que isso só ganha
voto em eleição de DCE, não nas justas contra Trump ou Le Pen. Pois a campanha de
Boulos houve por bem adulterar um dos nossos símbolos pátrios.
Tá legal, eu aceito o argumento: a língua é
viva, as mentalidades mudam —e hoje seria inimaginável cantar a letra escrita
em 1833 por Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva: Homens bárbaros,
gerados/De sangue judaico e mouro/Desenganai-vos: a Pátria/Já não é vosso
tesouro. Mesmo a letra oficial foi alterada diversas vezes por seu autor,
Osório Duque Estrada.
Mas, se for para não fugir à luta decolonial
e antifalocêntrica, é melhor adotar logo a sugestão da jornalista Madeleine
Lacsko e wokizar de vez, com o país Deitade eternamente em berço
esplêndide/Ao som do mar e à luz da energia limpa/Fulguras, ó Brasil, raiz de
Abya Yala,/Iluminade ao sol de poves origináries.
Contribuo com o refrão: Des filhes deste
solo és pessoa que pariu (como quer o Ministério da
Saúde), Mátria amada, Brasil!. Não soluciona nenhum dos nossos
inúmeros problemas, mas pelo menos a rima se salva.
Carlos Melo, pouco acima, fala da "kryptonita de Bolsonaro". Este pseudointelectual vem com "kryptonita para cantores populares". Estes colunistas parecem meio limitados ou repetitivos nas suas abordagens. Ou são todos fanáticos pelo Super-Homem?
ResponderExcluirTem gente chamando Jesus de Genésio,rs.
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