quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Malu Gaspar - Não aprendemos nada

O Globo

O noticiário foi chacoalhado nos últimos dias com uma versão 2.0 da Vaza-Jato aplicada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Desta vez, as reportagens da Folha de S. Paulo, assinadas pelos jornalistas Glenn Greenwald e Fabio Serapião, trazem uma sequência de mensagens entre auxiliares do ministro Alexandre de Moraes no STF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), trocadas nos bastidores das investigações sobre fake news e sobre as manifestações golpistas que resultaram nos ataques de 8 de janeiro.

O material mostra que Moraes encomendava relatórios sobre os bolsonaristas investigados por ele no STF a técnicos da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE.

Depois (às vezes apenas horas depois), usava os documentos como base para medidas como quebra de sigilo, bloqueio de perfis, cancelamento de passaportes e intimações – mas, em vez de dizer que encomendara o material, fazia constar nos processos que eles haviam sido produzidos por iniciativa do próprio TSE ou recebidos via denúncia anônima.

As mensagens deixam claro que os técnicos sabiam agir de forma irregular. “Formalmente, se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada, digamos assim”, diz num áudio Airton Vieira, juiz instrutor e espécie de braço-direito de Moraes no STF.

“Como um juiz instrutor do Supremo manda [um pedido] para alguém lotado no TSE, e esse alguém, sem mais nem menos, obedece e manda um relatório, entendeu? Ficaria chato.”

Em dezembro de 2022, já depois das eleições, Vieira pede que o perito Eduardo Tagliaferro, do TSE, faça um pente-fino nas publicações da revista Oeste e em “todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”.

No dia seguinte, Tagliaferro diz que só encontrou “publicações jornalísticas”, que “não estavam falando nada” e pergunta o que colocar no relatório. Vieira responde: “Use a sua criatividade… rsrsrs”. E o outro: “Vou dar um jeito rsrsrs”.

Um mês depois, o canal da Oeste no YouTube foi desmonetizado. A plataforma afirma que a medida foi tomada por iniciativa própria, e não por decisão judicial.

As reportagens colocaram o bolsonarismo em polvorosa, rascunhando pedidos de impeachment para se juntar aos mais de 20 que já tramitam contra Moraes no Senado Federal. Desencadearam também um movimento coordenado de defesa do ministro no STF, de que participaram Flávio DinoLuís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, além do procurador-geral da República, Paulo Gonet.

De acordo com eles, não há nada demais nas mensagens porque não faria sentido o ministro pedir informações para si mesmo. O próprio Moraes se explicou:

“Seria esquizofrênico, como presidente do TSE, me auto-oficiar. Como presidente, tenho poder de polícia e posso, pela lei, determinar a feitura dos relatórios”.

Se os pedidos eram legítimos, por que escamotear sua origem?

Os amigos de Moraes dizem ainda que a comparação é estapafúrdia, porque, diferentemente do que ocorreu lá atrás, não há conluio entre juiz e Ministério Público para produzir ou esquentar provas. Talvez seja até pior, porque agora o MP nem sequer está na jogada. É o juiz quem produz as provas por conta própria. Investiga, acusa e julga como acha que deve, depois só comunica aos procuradores.

Numa coisa, porém, eles têm razão. A ação de Moraes não é novidade para ninguém e foi autorizada pelo próprio STF. Abertos em 2019 e correndo em sigilo até hoje, os inquéritos para investigar a difusão de fake news e ameaças contra os ministros do Supremo já abarcaram de tudo — de ataques à segurança do sistema eleitoral a conteúdos golpistas ou à censura de matérias jornalísticas que nada tinham de fake news ou golpismo.

Quando a legalidade do “inquérito do fim do mundo” foi questionada no STF, dois procuradores-gerais da República — Raquel Dodge e Augusto Aras — pediram seu encerramento. Dodge ainda o chamou de “tribunal de exceção”. O Supremo, porém, não concordou. Por dez votos a um, decidiu que o inquérito é legal e pode continuar sabe-se lá até quando.

Ainda assim, ontem os defensores de Moraes se preocuparam em justificar suas atitudes da mesma forma que, lá atrás, diante da Vaza-Jato 1.0, muita gente defendeu a Lava-Jato.

Para eles, o ministro não pode ser criticado porque nos salvou do golpismo, da mesma forma que Sergio Moro não merecia reparo, uma vez que “livrou” as instituições da corrupção. Curioso. Se não houvesse margem para questionamento, não seria necessário entrar nesse mérito.

Deveríamos ter aprendido com a Vaza-Jato que, quando o judiciário atropela os meios em nome dos fins, quem sofre é a própria democracia. As mensagens vindo à tona mostram que, pelo jeito, não aprendemos nada.

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