quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Malu Gaspar – Não é sobre relógios

O Globo

Não deixa de ser insólito que a discussão do momento na política brasileira seja sobre Lula devolver ou não um relógio de R$ 60 mil recebido de presente da Cartier em 2005 numa visita à França. Não que o episódio seja irrelevante. Se o Brasil ficasse na Escandinávia, o caso teria sido motivo de escândalo.

Mas não há escândalo hoje, não houve lá em 2005, e a única razão pela qual o assunto entrou na pauta do Tribunal de Contas da União (TCU) foi a representação de um deputado do PL que pedia que o presidente devolvesse o relógio, mas que no fundo torcia para que o TCU livrasse Lula e, por tabela, ajudasse também Jair Bolsonaro a se safar de uma denúncia por se apropriar dos presentes do príncipe da Arábia Saudita e tentar vendê-los depois de deixar o governo.

Entre os regalos sauditas que o ex-presidente levou consigo estão não só relógios, mas também joias e esculturas de ouro e prata que, no conjunto, valem R$ 7 milhões. É muito mais do que o Cartier de Lula, sem contar o agravante de que Bolsonaro ainda tinha à disposição um time de atravessadores para repassar as peças em joalherias americanas.

Polícia Federal pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) processe Jair por peculato (nome que o Código Penal dá ao desvio de bens públicos), associação criminosa e lavagem de dinheiro. O inquérito está na Procuradoria-Geral da República (PGR), que ainda tem de decidir se denuncia ou não o ex-presidente.

Pois na sessão de ontem o Tribunal de Contas não só deliberou que Lula não precisa devolver o relógio, como enviará ao Congresso Nacional a cópia do resultado do julgamento “reconhecendo” que “não há fundamentação jurídica para caracterização de presentes recebidos por presidentes da República no exercício do mandato como bens públicos, o que inviabiliza a possibilidade de expedição de determinação, por esta Corte, para sua incorporação ao patrimônio público”. Em teoria, o alerta deveria servir para que o Legislativo discutisse e aprovasse uma lei regulamentando afinal os presentes.

Alguém acha que o fará?

Por enquanto, a decisão vale para Lula, mas, se o próprio TCU diz que não há regra sobre presentes, é razoável supor que fará o mesmo com Bolsonaro. Não à toa, dos 5 votos que formaram a maioria de ontem, 3 foram de ministros ligados a ele.

O movimento do TCU foi amplamente discutido nos bastidores e representou um cavalo de pau na conclusão do tribunal sobre o mesmo assunto em 2016. Na ocasião, o relator Walton Alencar estudou as leis disponíveis e diferenciou os objetos de luxo do que chamou de “itens de uso personalíssimo”.

Coisas de pouco valor e uso estritamente pessoal poderiam ficar com os ex-presidentes, enquanto joias e itens de valor — incluindo relógios — teriam de ser devolvidos ao patrimônio público. Foi aí que o plenário determinou que Dilma Rousseff e Lula devolvessem 564 itens que tinham recebido em seus mandatos.

Ontem, porém, parecia que nada disso tinha acontecido. Em meio às piruetas retóricas adotadas para concluir que nenhum presidente precisa devolver mais nada, vários ministros comentaram, como se fosse a coisa mais natural, que até hoje não foram entregues nem os 564 itens listados pelo TCU, nem outros 4 mil que foram recebidos e registrados nos governos Dilma e Lula, mas desapareceram dos acervos públicos.

De acordo com Walton Alencar, a Polícia Federal procurou, mas não encontrou nenhum deles. O Cartier não estava entre esses objetos, porque não chegou sequer a ser catalogado.

Ao final da sessão, Lula e Bolsonaro podiam se considerar vencedores. Numa mesma decisão, o tribunal que deveria fiscalizar o uso dos recursos públicos optou por não fazê-lo, equiparando e anistiando os dois.

Como resumiu o ministro Alencar em seu voto, derrotado ontem, com essa guinada o tribunal na prática está autorizando qualquer pessoa interessada em vantagens no governo a dar presentes milionários aos presidentes sem sofrer qualquer sanção na Corte.

A esta altura, não dá para dizer se e como a decisão do TCU vai afetar os próximos movimentos da PGR e do Supremo. Também sempre haverá quem diga que o caso de Lula não permite nenhuma comparação com o de Bolsonaro.

Ou, ainda, que um relógio não é nada diante das negociatas da Covid, dos kits de robótica, das obras da Codevasf, dos descontos bilionários e inexplicáveis em multas por corrupção ou dos esdrúxulos perdões administrativos que se produziram no passado e continuam a ser maquinados nas sombras do poder. Tudo isso é verdade. O problema é que, no fundo, este não é um texto sobre relógios.

 

2 comentários:

  1. Anônimo8/8/24 13:43

    Não é o valor … é o ato… essa turma devia devolver tudo ou converter em doações para os necessitados
    Pura hipocrisia de Lula ao medíocre Bolsonaro !!!

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