O Globo
Não deixa de ser insólito que a discussão do
momento na política brasileira seja sobre Lula devolver
ou não um relógio de R$ 60 mil recebido de presente da Cartier em 2005 numa
visita à França.
Não que o episódio seja irrelevante. Se o Brasil ficasse na
Escandinávia, o caso teria sido motivo de escândalo.
Mas não há escândalo hoje, não houve lá em 2005, e a única razão pela qual o assunto entrou na pauta do Tribunal de Contas da União (TCU) foi a representação de um deputado do PL que pedia que o presidente devolvesse o relógio, mas que no fundo torcia para que o TCU livrasse Lula e, por tabela, ajudasse também Jair Bolsonaro a se safar de uma denúncia por se apropriar dos presentes do príncipe da Arábia Saudita e tentar vendê-los depois de deixar o governo.
Entre os regalos sauditas que o ex-presidente
levou consigo estão não só relógios, mas também joias e esculturas de ouro e
prata que, no conjunto, valem R$ 7 milhões. É muito mais do que o Cartier de
Lula, sem contar o agravante de que Bolsonaro ainda tinha à disposição um time
de atravessadores para repassar as peças em joalherias americanas.
A Polícia
Federal pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF)
processe Jair por peculato (nome que o Código Penal dá ao desvio de bens
públicos), associação criminosa e lavagem de dinheiro. O inquérito está na
Procuradoria-Geral da República (PGR),
que ainda tem de decidir se denuncia ou não o ex-presidente.
Pois na sessão de ontem o Tribunal de Contas
não só deliberou que Lula não precisa devolver o relógio, como enviará ao
Congresso Nacional a cópia do resultado do julgamento “reconhecendo” que “não
há fundamentação jurídica para caracterização de presentes recebidos por
presidentes da República no exercício do mandato como bens públicos, o que
inviabiliza a possibilidade de expedição de determinação, por esta Corte, para
sua incorporação ao patrimônio público”. Em teoria, o alerta deveria servir
para que o Legislativo discutisse e aprovasse uma lei regulamentando afinal os
presentes.
Alguém acha que o fará?
Por enquanto, a decisão vale para Lula, mas,
se o próprio TCU diz que não há regra sobre presentes, é razoável supor que
fará o mesmo com Bolsonaro. Não à toa, dos 5 votos que formaram a maioria de
ontem, 3 foram de ministros ligados a ele.
O movimento do TCU foi amplamente discutido
nos bastidores e representou um cavalo de pau na conclusão do tribunal sobre o
mesmo assunto em 2016. Na ocasião, o relator Walton Alencar estudou as leis
disponíveis e diferenciou os objetos de luxo do que chamou de “itens de uso
personalíssimo”.
Coisas de pouco valor e uso estritamente
pessoal poderiam ficar com os ex-presidentes, enquanto joias e itens de valor —
incluindo relógios — teriam de ser devolvidos ao patrimônio público. Foi aí que
o plenário determinou que Dilma
Rousseff e Lula devolvessem 564 itens que tinham recebido em
seus mandatos.
Ontem, porém, parecia que nada disso tinha
acontecido. Em meio às piruetas retóricas adotadas para concluir que nenhum
presidente precisa devolver mais nada, vários ministros comentaram, como se
fosse a coisa mais natural, que até hoje não foram entregues nem os 564 itens
listados pelo TCU, nem outros 4 mil que foram recebidos e registrados nos
governos Dilma e Lula, mas desapareceram dos acervos públicos.
De acordo com Walton Alencar, a Polícia
Federal procurou, mas não encontrou nenhum deles. O Cartier não estava entre
esses objetos, porque não chegou sequer a ser catalogado.
Ao final da sessão, Lula e Bolsonaro podiam
se considerar vencedores. Numa mesma decisão, o tribunal que deveria fiscalizar
o uso dos recursos públicos optou por não fazê-lo, equiparando e anistiando os
dois.
Como resumiu o ministro Alencar em seu voto,
derrotado ontem, com essa guinada o tribunal na prática está autorizando
qualquer pessoa interessada em vantagens no governo a dar presentes milionários
aos presidentes sem sofrer qualquer sanção na Corte.
A esta altura, não dá para dizer se e como a
decisão do TCU vai afetar os próximos movimentos da PGR e do Supremo. Também
sempre haverá quem diga que o caso de Lula não permite nenhuma comparação com o
de Bolsonaro.
Ou, ainda, que um relógio não é nada diante
das negociatas da Covid, dos kits de robótica, das obras da Codevasf, dos
descontos bilionários e inexplicáveis em multas por corrupção ou dos esdrúxulos
perdões administrativos que se produziram no passado e continuam a ser
maquinados nas sombras do poder. Tudo isso é verdade. O problema é que, no
fundo, este não é um texto sobre relógios.
2 comentários:
Não é o valor … é o ato… essa turma devia devolver tudo ou converter em doações para os necessitados
Pura hipocrisia de Lula ao medíocre Bolsonaro !!!
Devolva.
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