O Globo
Delfim Netto sempre buscou o poder. Na
ditadura defendeu um ato mais duro que o AI-5. Na democracia foi interlocutor
de presidentes
O ex-ministro Delfim Netto sempre quis o poder, e se adaptou para exercê-lo em qualquer circunstância. Na ditadura, demonstrou intimidade com o poder totalitário, assinou o AI-5 e disse naquela reunião que o ato deveria ser ainda mais forte. Nos governos Costa e Silva, Emílio Médici e João Figueiredo, foi o poder incontrastável na área econômica. Na democracia, buscou os caminhos para continuar influente, mantendo-se muito bem informado, dialogando com diversas correntes políticas e se transformando em interlocutor de vários presidentes. Na economia, foi um intervencionista, nunca foi liberal e manteve altas barreiras tarifárias ao comércio exterior. Para entender Delfim Netto é preciso aceitar as complexidades. O homem que comandou um período de forte crescimento, produziu depois uma recessão, foi o czar econômico da ditadura e depois deputado constituinte eleito.
O período de forte crescimento do PIB que
ele comandou foi tão contraditório quanto ele. Ao mesmo tempo que o Brasil
crescia a 11%, a desigualdade aumentava e a engrenagem contra adversários
políticos ficava mais violenta. Ele fez a escolha de transferir recursos para
os grupos de capitalistas que comandariam esse crescimento. Dizia, como se
sabe, que era preciso esperar o bolo crescer para depois dividi-lo. Suas
políticas foram concentradoras de renda numa época de abundância em que seria
fácil enfrentar os dilemas sociais brasileiros, porque o país tinha uma
população jovem, uma previdência leve, do ponto de vista fiscal, e estava em
crescimento.
Naquele começo dos anos 1970, a inflação começou
a subir, mas os índices foram manipulados pelo próprio Delfim para ficar num
número que ele considerava aceitável e que hoje seria motivo de crise: 12% ao
ano. Também no seu primeiro período como chefe da economia, nos governos Costa
e Silva e Médici, a dívida externa começou a crescer, processo que se
aprofundou no governo Geisel. Intrigas palacianas o afastaram de Brasília. Ele
se indispôs com a dupla Geisel-Golbery e ganhou o exílio dourado da embaixada
em Paris.
Ao voltar para o governo, na última fase da
ditadura, durante a presidência de João Figueiredo, a trajetória também é
reveladora da sua personalidade. Nomeado ministro da Agricultura, todo mundo
sabia em Brasília como aquilo terminaria, com a saída de Mário Henrique
Simonsen do Ministério do Planejamento e sua nomeação. Foi o que aconteceu em
agosto de 1979, cinco meses depois de iniciado o governo. Instalou na Fazenda
alguém de sua confiança e subordinação e voltou a ser o czar econômico, só que
suas mágicas não funcionaram mais. A crise da dívida externa foi enfrentada com
duas maxidesvalorizações que elevaram a inflação e a recessão. O começo dos
anos 1980, período terminal da ditadura, foi um tempo desastroso. O Brasil
sempre de pires na mão, assinando cartas e mais cartas com o FMI que nunca
cumpria, a pobreza e a desigualdade produzindo cenas como as de saques a
supermercados. Ficou famosa a cena dos empresários subindo em mesa e se
atropelando para abraçar Delfim Netto quando ele voltou a comandar a economia
em 1979. Ela revelava a dependência da elite industrial brasileira às benesses
dos seus períodos na economia.
Delfim voltou a Brasília na democracia como
deputado e constituinte. O fato de ele ter participado da vida democrática não
elogia a ele, mas sim a democracia que aceita até seus inimigos. Nos cinco
mandatos que exerceu, permaneceu influente e colocou em prática sua habilidade
de falar com todas as correntes políticas. Era parte da estratégia. Em vez de
se isolar em discurso radical e ideológico, como faz agora a extrema direita,
ele quis diálogo com todos, manter-se informado, saber o máximo sobre o jogo do
poder e se tornar interlocutor de quem tomava decisão.
Não é fácil definir o economista
que morreu ontem, depois de doar toda a sua biblioteca de 250 mil
volumes para a FEA-USP, onde estudou e foi professor. Os militares, ao levá-lo
para o poder, o definiam como um técnico. Engano. Delfim Netto tinha cabeça
política, por isso sempre buscou o poder, mesmo fora do governo. Na tirania,
como os tirânicos, na democracia, com o diálogo e a negociação. Não é possível
escrever a história da segunda metade do século passado no Brasil sem passar
por Antonio Delfim Netto.
Muito bom! Como tantos economistas, Delfim se preocupava mais com a política do que com os números da economia.
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