terça-feira, 13 de agosto de 2024

Míriam Leitão - O economista da ditadura

O Globo

Delfim Netto sempre buscou o poder. Na ditadura defendeu um ato mais duro que o AI-5. Na democracia foi interlocutor de presidentes

O ex-ministro Delfim Netto sempre quis o poder, e se adaptou para exercê-lo em qualquer circunstância. Na ditadura, demonstrou intimidade com o poder totalitário, assinou o AI-5 e disse naquela reunião que o ato deveria ser ainda mais forte. Nos governos Costa e Silva, Emílio Médici e João Figueiredo, foi o poder incontrastável na área econômica. Na democracia, buscou os caminhos para continuar influente, mantendo-se muito bem informado, dialogando com diversas correntes políticas e se transformando em interlocutor de vários presidentes. Na economia, foi um intervencionista, nunca foi liberal e manteve altas barreiras tarifárias ao comércio exterior. Para entender Delfim Netto é preciso aceitar as complexidades. O homem que comandou um período de forte crescimento, produziu depois uma recessão, foi o czar econômico da ditadura e depois deputado constituinte eleito.

O período de forte crescimento do PIB que ele comandou foi tão contraditório quanto ele. Ao mesmo tempo que o Brasil crescia a 11%, a desigualdade aumentava e a engrenagem contra adversários políticos ficava mais violenta. Ele fez a escolha de transferir recursos para os grupos de capitalistas que comandariam esse crescimento. Dizia, como se sabe, que era preciso esperar o bolo crescer para depois dividi-lo. Suas políticas foram concentradoras de renda numa época de abundância em que seria fácil enfrentar os dilemas sociais brasileiros, porque o país tinha uma população jovem, uma previdência leve, do ponto de vista fiscal, e estava em crescimento.

Naquele começo dos anos 1970, a inflação começou a subir, mas os índices foram manipulados pelo próprio Delfim para ficar num número que ele considerava aceitável e que hoje seria motivo de crise: 12% ao ano. Também no seu primeiro período como chefe da economia, nos governos Costa e Silva e Médici, a dívida externa começou a crescer, processo que se aprofundou no governo Geisel. Intrigas palacianas o afastaram de Brasília. Ele se indispôs com a dupla Geisel-Golbery e ganhou o exílio dourado da embaixada em Paris.

Ao voltar para o governo, na última fase da ditadura, durante a presidência de João Figueiredo, a trajetória também é reveladora da sua personalidade. Nomeado ministro da Agricultura, todo mundo sabia em Brasília como aquilo terminaria, com a saída de Mário Henrique Simonsen do Ministério do Planejamento e sua nomeação. Foi o que aconteceu em agosto de 1979, cinco meses depois de iniciado o governo. Instalou na Fazenda alguém de sua confiança e subordinação e voltou a ser o czar econômico, só que suas mágicas não funcionaram mais. A crise da dívida externa foi enfrentada com duas maxidesvalorizações que elevaram a inflação e a recessão. O começo dos anos 1980, período terminal da ditadura, foi um tempo desastroso. O Brasil sempre de pires na mão, assinando cartas e mais cartas com o FMI que nunca cumpria, a pobreza e a desigualdade produzindo cenas como as de saques a supermercados. Ficou famosa a cena dos empresários subindo em mesa e se atropelando para abraçar Delfim Netto quando ele voltou a comandar a economia em 1979. Ela revelava a dependência da elite industrial brasileira às benesses dos seus períodos na economia.

Delfim voltou a Brasília na democracia como deputado e constituinte. O fato de ele ter participado da vida democrática não elogia a ele, mas sim a democracia que aceita até seus inimigos. Nos cinco mandatos que exerceu, permaneceu influente e colocou em prática sua habilidade de falar com todas as correntes políticas. Era parte da estratégia. Em vez de se isolar em discurso radical e ideológico, como faz agora a extrema direita, ele quis diálogo com todos, manter-se informado, saber o máximo sobre o jogo do poder e se tornar interlocutor de quem tomava decisão.

Não é fácil definir o economista que morreu ontem, depois de doar toda a sua biblioteca de 250 mil volumes para a FEA-USP, onde estudou e foi professor. Os militares, ao levá-lo para o poder, o definiam como um técnico. Engano. Delfim Netto tinha cabeça política, por isso sempre buscou o poder, mesmo fora do governo. Na tirania, como os tirânicos, na democracia, com o diálogo e a negociação. Não é possível escrever a história da segunda metade do século passado no Brasil sem passar por Antonio Delfim Netto.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Muito bom! Como tantos economistas, Delfim se preocupava mais com a política do que com os números da economia.