O Estado de S. Paulo
Ao tratar cidadania e economia como realidades antagônicas, a política brasileira torna-se escandalosamente disfuncional
Temos no Brasil liberdade política e
pluripartidarismo. No entanto, parece haver uma grave lacuna em nosso espectro
político-partidário: não se encontra facilmente quem defenda a cidadania e, ao
mesmo tempo, um ambiente saudável de negócios. Em toda eleição, o eleitor tem
de fazer uma escolha um tanto absurda entre as duas coisas, como se elas fossem
incompatíveis.
É constrangedor. Se considero, por exemplo, como um aspecto central do desenvolvimento civilizatório uma polícia que atue dentro da lei e esteja sob estrito controle do Estado – que não seja racista, que não se sinta autorizada a realizar chacinas, que não seja politizada, que atue profissionalmente –, terei de escolher candidatos que desprezam afrontosamente princípios básicos de política econômica e do ambiente de negócios.
Ora, as duas realidades são compatíveis. Na
verdade, exigem-se mutuamente. Onde viceja uma polícia violenta não há
cidadania, não há segurança jurídica, não há segurança pública. Há barbárie. Há
prevalência da lei do mais forte. Há deturpação do poder estatal. É impossível
construir um ambiente de negócios saudável num cenário sob essas luzes.
Outro campo onde aflora uma artificial
contradição – não existe, a rigor, contradição nenhuma – é na educação pública.
Se entendo que é fundamental para o País cuidar bem de suas crianças e jovens,
que a imensa maioria deles está na rede pública e que, portanto, é preciso
investir os melhores recursos (humanos e financeiros) na educação pública,
terei na prática de escolher candidatos que ignoram escancaradamente a
perspectiva de quem investe e contrata, de quem atua na iniciativa privada com
seu próprio negócio.
Não estou falando da defesa infantil –
injusta e perversa – do mercado, no sentido que a chamada new right propõe. Na
verdade, entendo que essa turma é parte direta do problema, ao conceber o
liberalismo apenas como doutrina econômica, numa chave imediatista e
interesseira, inteiramente diferente do liberalismo clássico, entendido como
doutrina política com uma proposta de inclusão (de pessoas e direitos), não de
exclusão.
Refiro-me a uma compreensão responsável e
madura da vida econômica, que exige regulação, como todos os campos da vida
social, mas não estrangulamento, não ignorância, não populismo.
Mas o problema também está, isso é evidente,
no outro lado do campo político, com sua visão estreita da vida social e
econômica. De forma reiterada, a esquerda no Brasil tem colocado a defesa dos
direitos da população mais vulnerável em oposição à racionalidade econômica e à
construção de um ambiente saudável de negócios, numa negação infantil – também
injusta e perversa – de fatos básicos da vida real.
No Brasil, votar em candidatos do campo
progressista é ter de fazer vistas grossas para uma série de negacionismos na
área econômica, bem como para muitos preconceitos e ignorâncias relativos à
atividade empresarial. Sobre o tema, ver o artigo O Brasil invisível aos olhos
da esquerda (Estadão, 5/6/2024). O ponto é: não precisaria ser assim, não
deveria ser assim.
Ao tratar prioridades complementares como
realidades antagônicas, a política brasileira torna-se escandalosamente
disfuncional, pois não conseguimos enfrentar os problemas nacionais de maneira
consistente. Com essas políticas parciais, estamos sempre, ao menos,
alimentando parcela considerável de nossas deficiências.
Além de ser devastadora para a imensa maioria
da população – profundamente vulnerável, é quem sente na pele, de forma mais
intensa, os problemas nacionais –, tal disfuncionalidade transmite a perigosa
mensagem de que a política teria sempre uma dimensão de exclusão e de
parcialidade. Ela se torna uma resposta frágil e insuficiente, o que é
devastador no médio e longo prazos. As pessoas se desinteressam pela política
ou, o que pode ser ainda pior, vão buscar respostas fora da política
democrática.
Não ignoro a existência de nomes na política
nacional que tentam suprir essa lacuna, trabalhando para promover uma política
coordenada, de alcance mais amplo. No entanto, infelizmente, eles são ainda
tratados como irrelevantes, como ingênuos, como sonhadores, como pessoas
incapazes de vencer as eleições. Ou seja, não é que não tenhamos caminhos para
superar o que me parece ser uma das maiores deficiências nacionais. Mas estamos
sabotando, de partida, pessoas competentes e responsáveis que tentam fazer uma
política diferente.
Sejamos honestos. O problema não é Jair
Bolsonaro. O problema não é Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez ele esteja mais
próximo da nossa calçada, da nossa janela, do nosso celular. Talvez nós mesmos
vejamos, na prática, desenvolvimento social (cidadania) e desenvolvimento
econômico como realidades separadas, que não se exigem mutuamente. Talvez
achemos que apenas um dos aspectos precisa ser cuidado e que o outro viria como
uma decorrência necessária do primeiro. Por quanto mais tempo continuaremos
acreditando nessa visão que é desacreditada todos os dias pelos fatos? Dez
anos? Cinquenta anos? Duzentos anos?
Muito interessante e bem argumentado!
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