O Estado de S. Paulo
Uma época copiadora, que se distancia cada vez mais das fontes das épocas criadoras e das gerações e ideias que não são mais levadas em conta
O cinismo dos costumes tira dos vícios a energia e está criando outro mundo. Muito do que anda por aí mostra uma debilidade do nosso tempo. Comodismos vocabulares procuram ajustar o confuso cenário de guerra, juros, desigualdades, tirania a uma compreensão automática das situações de conflito, medo e injustiça ao topo compreensível do lugar comum. Situação de língua em retrocesso que não toma mais consciência de si mesma e que usa a palavra como gíria. A linguagem alfabética nada mais sabe dos poderes que um dia teve. Alfabeto, esse velho beato, torturado pelo flagelo que é a inteligência artificial, perdeu a luta diante da prontidão de um mundo vazio, massificado, manipulado. Palavra e efeito sumiram da linguagem sem espaço para a compreensão dos signos do vocabulário, invertebrada, no exílio do espírito. Palavra sem paladar é floresta desfolhada, faísca de fósforo molhado. Vida encadernada não é modificada.
Artigos testemunhais como este são melhor
compreendidos como sentimento e não pura explicação. Joe Biden, o pobre Biden,
não conseguiu superar o acaso e se fez imoral. Nocauteador grogue confundiu
nomes e logo é atacado mortalmente de Londres a Nova York como o velho de
andador que perdeu o controle das pernas, a ser descartado. Indigna falta de
memória por dois países liderados por um destemido bom de copo e um majestoso
paraplégico que derrotaram um ditador vegetariano e genocida. Bizarro e
simétrico, o preconceito contra o idoso passa por cima de qualquer política de
diversidade e direitos humanos se defendido por premiadas famílias de cônjuges
badalados de seu partido. Enquadre-se Biden, ou não encontraremos mais o
caminho diante do monstro que criamos com nosso egoísmo. E Biden, humilhado,
escreveu seu próprio necrológio.
Aversões apaixonadas, situações bárbaras
revelam infortúnios. A hipocrisia sepulta qualquer opinião livre de quem não se
guia por dogmas geopolíticos da moda. Pesquisas e estatísticas pretensiosas
querem enquadrar o pensamento, bancadas por financiadores do status quo, podres
de ricos, provocam rombos e estouros jogando valores fora. Um mundo ao pé da
letra de economia predadora, motor das ambições tecnológicas. Não é bem um
mundo de grandes. Sem vontade própria é o destino que enquadra a política como caminho
do fracasso sem culpa. A escalada é de sucatas.
Um submarino russo visita o Caribe e logo é
seguido por um norte-americano. Não quer dizer nada, mas é melhor não correr o
risco de deixar de acreditar que pode ser alguma coisa. O mau gênio espreita a
democracia. No continente americano, onde cada líder justifica com louvor sua
participação e responsabilidade nesse caos, alguém que se acha maduro, de
instinto carnívoro, decidiu comer a carne dos irmãos. Ditador é um tipo da
elite dos políticos medíocres que, com o dom de fraudar eleição, perseguir bispo
e falar tolice, é mais regra do que exceção hoje. Diante do risco de
desmoralização total da democracia adiantam pouco táticas diplomáticas
cerimoniais de morder/soprar, xerife bom/xerife mau. São obscuras as
consequências de qualquer eleição diante de ogro eleitoral que se alimenta do
eleitor virtual. Onde fatos e não a tradição, trabalho ou convicção definem a
riqueza do sistema de poder, respeitar as leis é algo próximo da piedade.
Filhas do tempo e da cultura, não se improvisa nem nobreza nem hierarquia.
Não é mais possível criar incapazes de
qualidade melhor. O progresso se corrompeu para si mesmo. Como o incompetente
tem tido muito sucesso no mundo atual e, também, como nada vem do céu sem um
propósito, é bom ficar atento à aspereza que existe no ar. Há uma doença na
alma do mundo. Um mundo de trilha sonora do Abba onde o vencedor fica com tudo,
o perdedor fica pequeno. Vivemos um presente que não contém a ideia de
transição. Estática, crua ou cozida, a realidade se move por fatos criados por
seus beneficiários, não por ideias ou convicções.
Como a convivência humana só visa ao
interesse imediato, a luta pelo dinheiro está no centro da vida. Em tal
situação a inventividade é substituída pela avassaladora força do negócio. A
injustiça atravessa ilesa diante da justiça, que precisa se abrigar nos aviões
da defesa para se locomover. A geração que deu sentido à democracia desapareceu
sem se tornar uma elite espiritual. Em todos os lugares somos obrigados a
sofrer banalidades.
A agudeza e a severidade com que se formula
uma ideia produz no ar, irresistivelmente, o desejo de se contrapor a ela. Tese
e antítese sem síntese possível é a lógica do pugilista, não afeta o horizonte
do futuro. A instrução não é mais instrução, a tecnologia é mística desprovida
de vida, volúpia, costume sem probidade, método, disciplina, escrupulosidade.
Uma época copiadora, falsificadora que se distancia cada vez mais das fontes
das épocas criadoras e das gerações e ideias que não são mais levadas em conta.
E que ninguém está nem mais disposto a invejar. A única vantagem em tudo isso é
que não é mais necessário pensar tolice. Os vícios doentios de políticos e
internautas fazem isso muito melhor por nós.
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