sábado, 17 de agosto de 2024

Pablo Ortellado - Os bastidores dos inquéritos são expostos

O Globo

A sequência sugere que Alexandre de Moraes primeiro formou sua opinião, depois encomendou provas para respaldá-la

A Folha de S.Paulo publicou uma série de reportagens que revelam trocas de mensagens entre um juiz auxiliar do gabinete de Alexandre de Moraes no STF e a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, de agosto de 2022 a maio de 2023. Essas mensagens mostram como provas para processos no STF foram solicitadas informalmente ao TSE em conversas no WhatsApp. Juristas debatem se essas comunicações podem configurar ilegalidade, comprometendo a validade dos processos, como ocorreu com a Lava-Jato.

Mais que a questão legal, porém, as mensagens expõem os problemas decorrentes da mistura de funções nos inquéritos contra os movimentos antidemocráticos. Esse arranjo surgiu para contornar a inação da Procuradoria-Geral da República (PGR) diante das mobilizações golpistas. As movimentações incluíram campanhas nas mídias sociais para minar a confiança nas urnas, acampamentos em frente aos quartéis, bloqueios de estradas, atos de sabotagem e até a invasão das sedes dos Poderes.

Para enfrentar a inação da PGR, foram propostos inquéritos de ofício em que o STF atua como vítima, investigador e juiz. O arranjo, inicialmente criticado, acabou com o tempo assimilado como fato consumado. Agora, com as reportagens, temos a oportunidade de entender o que acontece nos bastidores.

Um exemplo citado nas reportagens ilustra bem a situação: o juiz auxiliar do STF solicitou ao TSE um relatório sobre irregularidades nas redes sociais do comentarista bolsonarista Rodrigo Constantino. O relatório foi entregue, mas o STF pediu sua revisão, pois o ministro Alexandre de Moraes havia feito capturas de tela que não constavam do documento — o ministro estava “cismado” com o caso. O relatório foi refeito e, com ele, veio a sentença que determinou o bloqueio das redes sociais, o cancelamento do passaporte e a quebra do sigilo bancário de Constantino.

A sequência de mensagens revela o impacto da sobreposição de papéis. Moraes, como vítima, manifesta indignação com as postagens de Constantino. Como investigador, encomenda um relatório para comprovar o delito. Insatisfeito, exige um relatório mais completo. Finalmente, como juiz, sentencia a perda das redes, a quebra de sigilo e o confisco do passaporte.

Essa dinâmica gera uma decisão inevitavelmente enviesada. Como uma vítima indignada pode conduzir uma investigação criteriosa e, depois, emitir uma sentença equilibrada? A indignação da vítima orienta a investigação e contamina o julgamento. A sequência sugere que o ministro primeiro formou sua opinião, depois encomendou provas para respaldá-la. É uma justiça desequilibrada, uma justiça injusta.

Embora o STF tenha declarado não haver irregularidade na comunicação entre os órgãos, essa comunicação foi omitida da documentação oficial, justamente porque evidenciava o problema.

No caso Constantino, o relatório do TSE afirma: “Através do nosso sistema de alertas e monitoramentos realizados por parceiros deste tribunal, recebemos informações de frequentes postagens” (feitas por Constantino). A sentença sugere que o processo foi iniciado a partir de um ofício do TSE: “Trata-se de petição instaurada a partir de ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE por meio do qual foi submetido relatório técnico”.

A narrativa sugere que um monitoramento de rotina, feito por parceiros do TSE (como uma universidade), encontrou uma postagem ilícita de Constantino, motivando a elaboração de um relatório. Posteriormente, o STF, provocado pelo relatório, julgou e sentenciou. Isso faz parecer que o processo passou por etapas independentes: universidade, TSE e, só então, STF. A narrativa busca ocultar o que realmente aconteceu: o ministro indignado encomendou, mandou refazer o relatório, depois sentenciou. O que se quer esconder é o viés causado pela confusão de papéis.

Mais que discutir a legalidade da comunicação entre os órgãos, as reportagens revelam que o arranjo criado para contornar a inação da PGR durante os anos Bolsonaro gerou uma Justiça torta. Mesmo que esse arranjo tenha se justificado no auge da crise entre 2022 e 2023, ele não tem mais motivo para continuar. Precisamos concluir essas investigações excepcionais e retomar a separação de papéis, essencial para uma Justiça equilibrada.

 

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