sábado, 17 de agosto de 2024

Carlos Alberto Sardenberg - Pelas vias tortas

O Globo

O devido processo legal no Brasil é tão intricado que praticamente impede a busca da justiça

Não é apenas que se tolera a coisa errada para alcançar resultado que se considera certo. É pior. O que sobra do debate em torno dos fatos da semana é o seguinte: no sistema jurídico e político brasileiro, só dá para fazer a coisa certa pelos métodos errados.

E, se é assim, vamos mal. E não é de hoje.

O gabinete do ministro Alexandre de Moraes fez muitas coisas erradas. Mas o que queriam? — dizem seus defensores. Se fosse para seguir tudo direitinho, não haveria como combater a tempo e com a força necessária a ameaça de golpe contra a democracia.

Tudo direitinho, no caso, seria assim: a polícia investiga, o Ministério Público denuncia, o tribunal julga. Alexandre de Moraes acumula as três atribuições porque — é o argumento de seus apoiadores — a polícia não investigava, e o Ministério Público não fazia nada. E o golpe estava ali na esquina. Ou seja, teria sido necessário fazer um desvio pelo caminho errado para dar no lugar certo. 

Mesmo assim, a produção de provas pelo duplo gabinete de Moraes — no STF e no TSE — foi, no mínimo, irregular. As conversas entre os assessores, combinando formas de ajustar provas a pedido do ministro, são, no mínimo, constrangedoras. E uma confissão. Eles sabiam que faziam a coisa errada, ou “descarada”, por isso pensaram em meios de burlar as aparências. Fica implícito que perderiam tempo e oportunidade de pegar os golpistas se seguissem o devido processo legal.

Foi, portanto, pior do que na Lava-Jato. Nesta, promotor e juiz combinaram suas atuações. A justificativa também era fazer a coisa certa: combater a grossa corrupção. Também tomaram atalhos que se revelaram eficientes. Por exemplo: perguntar informalmente a uma autoridade estrangeira se tinha alguma conta escondida por ali. Tinha? Ok, então segue o ofício solicitando o acesso oficial a essa informação. Muitas autoridades policiais e jurídicas, aqui e em países de sólida democracia, defendem essa informalidade. E deu certo, não é mesmo? A corrupção foi apanhada e o golpe impedido.

O que nos leva a uma terrível conclusão: o devido processo legal no Brasil é tão intricado que praticamente impede a busca da justiça. Daí os atalhos. O que piora o quadro. O recurso aos atalhos depende da política, que muda como as nuvens.

A Lava-Jato foi “legalizada” pelos tribunais superiores, inclusive o STF, em diversas decisões. O atalho mostrou-se largo e certeiro. Levou a grandes empresas, ao Parlamento, aos governos nacional e regionais, chegou muito perto de outras autoridades — uma sangria que saía do controle. Os alvos reagiram, fechou-se o atalho, a operação foi considerada ilegal. Mudou a lei? O processo? A jurisprudência? Nada. Apenas se formou um outro arranjo político, com a participação do STF.

Foi também um arranjo político que permitiu a instalação, no Supremo, do inquérito em que Alexandre de Moraes investiga, denuncia e julga. A tentativa de golpe de Bolsonaro foi tão “tabajara”, tão escrachada, que facilitou a formação de uma frente contrária a tal movimento. A necessidade de eficiência contra forças poderosas — Bolsonaro ainda era o presidente — justificou os atalhos.

Tudo bem, não é mesmo? Lula se elegeu, assumiu, está governando, teremos eleições municipais livres. Mas até onde pode ir a superautoridade de Moraes e do STF? Até alcançar quem mais?

A Corte entrou na política naquele e noutros casos — como na disputa entre o presidente Lula e o Congresso em torno das emendas parlamentares impositivas. O presidente gostou da intromissão do STF, mas o Congresso retaliou negando verbas ao Judiciário. Tudo por atalhos travestidos de formalidades.

Todos os Poderes se diminuem nesse ambiente. O Supremo deixa de ser a Suprema Corte constitucional. O Executivo governa para os seus. O Congresso quer o dinheiro, público, para fazer campanha e distribuir entre os correligionários.

É, não dá mesmo para fazer tudo isso pelo devido processo legal.

 

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