domingo, 18 de agosto de 2024

Ricardo José de Azevedo Marinho - Propósito Educacional

Os debates sobre os problemas e dificuldades mais imediatas da educação geralmente adiam a discussão substantiva sobre o seu propósito nas atuais circunstâncias históricas. No entanto, ambos os planos estão intimamente relacionados entre si.

As principais questões preocupantes em relação à educação hoje no Brasil – como controlar a violência escolar, melhorar o desempenho acadêmico, alcançar maior equidade e garantir uma melhor coexistência – estão efetivamente ligadas ao propósito educativo das sociedades contemporâneas. Qual é esse propósito? Em suma: qualificar as pessoas com as competências e conhecimentos necessários para uma vida produtiva, integrá-las no mundo das normas e valores típicos da coexistência em sociedades diversas e em mudança, e dotá-las de capacidades para agir de forma responsável. Historicamente, a educação aparece – juntamente com a lei, entre outras expressões da civilização – como um meio poderoso para debelar a agressividade social e socializar os indivíduos nos valores comunitários. Ensina, portanto, como conviver, como autorregular os impulsos destrutivos e como reconhecer a diversidade. Implica aprender que qualquer ordem baseada na liberdade das pessoas significa também submeter-se às regras, às disciplinas e às disposições das autoridades democraticamente legítimas em todas as dimensões da vida individual e coletiva.

É fato, porém, que esta finalidade educativa está hoje comprometida e a sua materialização é dificultada por fatores de natureza muito díspares.

No que diz respeito ao contexto social externo, a educação – institucional e não só formal – desenvolve-se em condições adversas. Os níveis de agressividade social aumentam, o crime se espalha e se torna mais organizado, são inúmeras as tecnologias que facilitam as ações criminosas. Pelo contrário, as comunidades sofrem erosão na sua coesão, os laços sociais são enfraquecidos, as âncoras tradicionais de existência desaparecem e os Estados enfrentam dificuldades crescentes em manter e exercer uma vida cidadã.

Por sua vez, no contexto interno e intersubjetivo das pessoas, onde a finalidade educacional busca refletir objetivos e valores culturais que fazem parte do autocontrole e autogoverno das pessoas, sua disposição de viver uma vida com sentido, tal propósito esbarra na perda de sentido dos valores (niilismo), na incapacidade de lidar com os desejos e impulsos e na ausência de normas sociais ou na sua degradação (anomia).

A crise da autoridade da docência desempenha um papel fundamental neste contexto, uma vez que dela depende a realização de qualquer propósito educacional. No entanto, hoje esta autoridade está localizada no ponto preciso onde se juntam um contexto social externo deteriorado e um contexto intersubjetivo interno danificado.

A chamada crise de autoridade da docência não é, portanto, um problema técnico, ou de mera disfuncionalidade ou perda de eficácia. Pelo contrário, é reflexo de uma profunda alteração cultural, relacionada com a secularização radical da vida. Desde Durkheim, esta circunstância – o colapso do sentido de autoridade legítima – tem sido diagnosticada como um mal-estar cultural.

Estas são, então, as razões fundamentais por detrás das atuais preocupações sobre a mitigação e a tão desejada erradicação da violência e a necessidade de melhorar a coexistência escolar.

Poder-se-ia pensar que as outras duas preocupações – desempenho acadêmico e equidade – são mais conhecidas e, portanto, também seriam mais fáceis de processar; isto é, ser diretamente atendido por políticas públicas apropriadas.

Bem, as políticas testadas em ambas as áreas – desempenho e equidade – produzem apenas um progresso limitado e têm uma maturação lenta. O que provoca frustração, desilusão e exasperação crescente com tais políticas, qualquer que seja a sua orientação.

Superficialmente, aparecem invariavelmente como dois lados da mesma moeda: melhorar a aprendizagem e distribuí-la de forma mais equitativa. Em essência, eles apontam, de fato, para uma causalidade idêntica. O desempenho acadêmico é desigual porque as trajetórias dos corpos discentes são desiguais. Essa trajetória desde tenra idade impacta em grande medida os desenlaces das pessoas.

Intersubjetivamente, esta percepção social afeta, sobretudo, moças e rapazes e jovens de lares com dotações desiguais de capital econômico, social e cultural. Desde cedo, eles vivenciam as diferenças de classe como uma ferida oculta como mostrou Richard Senett; uma desvantagem avilta, uma exclusão injustificada que afeta as motivações, a autoconfiança, as expectativas e os projetos de vida. Se tais sintomas não forem abordados precocemente, atenuados e enfrentados, o sistema escolar acaba por reproduzi-los, instalando uma espiral de desvantagens, que não são resolvidos com um pé de meia furada.

Em tais circunstâncias, a própria noção de aptidão e os seus pressupostos comportamentais – esforço pessoal e perseverança – dissipam-se no ar. Os fundamentos da coexistência civilizada enfraquecem e/ou desaparecem; não só na escola. Isto é especialmente verdade no quadro de uma hipermodernidade como ilustra Marco Aurélio Nogueira em A democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto (Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2023) que promete e eleva, como horizonte cultural, a igualdade de direitos e dignidade das pessoas, a distribuição merecida de oportunidades e o reconhecimento do esforço pessoal como única fonte de diferenciação legítima das trajetórias de vida.

Todo o quadro das sociedades democráticas hipermodernas é, portanto, apoiado por um propósito educativo que está em constante tensão com contextos de condições objetivas e subjetivas que dificultam a sua realização. Se estes condicionantes não forem erradicados, o objetivo educativo – promover a paz e a justiça social numa coexistência civilizada – não poderá ser alcançado.

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