domingo, 11 de agosto de 2024

Rolf Kuntz - Lula e Maduro, um vizinho complicado

O Estado de S. Paulo

Não há, nesta altura, razões estratégicas ou diplomáticas para disfarçar o repúdio ao ditador venezuelano

A tolerância de Luiz Inácio Lula da Silva com o companheiro Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, é explicada por alguns analistas como diplomacia de boa convivência. Relações amigáveis com o governo de um país vizinho atendem a interesses nacionais, acrescentam esses analistas. Falta mostrar por que interessa ao Brasil a vizinhança de um país comandado por um autocrata violento, responsável por dezenas de mortes e milhares de prisões e apoiado por governos autoritários, como os do Irã, da Rússia e da China.

Que o Brasil mantenha relações pacíficas – e vínculos econômicos – com países de todo o mundo é certamente desejável. Nada obriga, no entanto, a atenuar, negar ou normalizar as ações de um ditador disposto a ameaçar publicamente os seus opositores. O presidente Lula, depois de ter descrito como normais as condições venezuelanas, buscou entendimento com governantes do México e da Colômbia para uma ação conjunta. Dificilmente poderia continuar olhando para outro lado. Forçado a se manifestar, pediu respeito à soberania do povo da Venezuela, enquanto Maduro mantinha a repressão brutal a seus críticos.

Lula pode ter feito uma aposta errada, ao propor a revisão dos votos pelo conselho eleitoral da Venezuela, sujeito à influência do Executivo. Foi mais cauteloso, no entanto, que os dirigentes do PT, muito rápidos ao reconhecer a reeleição de Maduro. Outros governos da região, além da Organização dos Estados Americanos (OEA), já se manifestaram, criticamente, e apertaram o cerco a Maduro e seus companheiros.

Não há, nesta altura, razões estratégicas ou diplomáticas para disfarçar o repúdio ao ditador venezuelano. O quadro ficou mais complicado com a intervenção chinesa, iraniana e russa no debate sobre a Venezuela. Se esse fato, no entanto, levar os democratas latinoamericanos a recuar, uma ditadura apoiada por governos autoritários estranhos à região estará bem mais próxima de consolidar-se.

A intromissão explícita de Rússia, China e Irã na política da América Latina realça a importância de uma ação coletiva mais clara e mais eficiente na defesa dos valores democráticos. A Rússia já estava amplamente envolvida no apoio militar e tecnológico à Venezuela, mas sem uma clara intromissão na ordem diplomática latino-americana. Diante do novo cenário, pode ser inevitável uma revisão da pauta política regional. O autoritarismo de Maduro interessa claramente a governos antidemocráticos de outros continentes.

A incompetência de Maduro como administrador pode ser irrelevante, neste momento, para quem pretende usar a Venezuela como base para maior influência na América Latina. Apesar do amplo investimento estrangeiro e do grande potencial petrolífero, a atividade produtiva estagnou.

A incompetência é notória.

Detentora de enorme reserva de petróleo, a Venezuela tem vivido, neste século, um prolongado desastre econômico. Entre 2013 e 2023 o Produto Interno Bruto (PIB) do país encolheu 62,5%, diminuindo de US$ 258,93 bilhões para US$ 97,12 bilhões. Em sete anos, nesse período, houve redução do valor produzido no país, segundo levantamento da agência classificadora Austin Rating, baseado em números do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.

Também esses dados conferem a Nicolás Maduro uma condição singular. Ele foi incapaz de usar seu enorme poder para mobilizar recursos – incluído o petróleo – num esforço de crescimento econômico e de modernização produtiva. Outros governantes autoritários têm sido mais eficientes em suas políticas econômicas. Mas a estagnação foi apenas um dos componentes do fracasso econômico venezuelano, nesse período. A inflação venezuelana foi uma das mais intensas do mundo, na maior parte do século 21. Em 2013, os preços ao consumidor aumentaram 56,2%, uma taxa assustadora em qualquer país fértil e sem guerra. Em 2018, no entanto, a onda inflacionária superou 130.000%. Recuou, depois, mas pode superar 150% neste ano.

Com seu enorme potencial econômico, a Venezuela seria um importante parceiro econômico do Brasil, se o governo instalado em Caracas tivesse alguma competência e trabalhasse com alguma seriedade. Mas nenhuma dessas condições é verificada. No primeiro semestre deste ano as exportações brasileiras para o mercado venezuelano somaram US$ 525 milhões, 0,3% do valor total exportado pelo Brasil nesse período. As importações brasileiras da Venezuela ficaram em US$ 227 milhões, 0,2% do valor comprado no exterior.

No mesmo período, as vendas brasileiras para a Argentina bateram em US$ 5,9 bilhões. Esse resultado, enorme quando confrontado com o valor vendido à Venezuela, foi, no entanto, 37,6% menor que o dos primeiros seis meses do ano passado, por causa do ajuste recessivo imposto à economia argentina pelo recém-eleito presidente Javier Milei.

Maior potência econômica sul-americana, o Brasil pode contribuir para a expansão da Venezuela, mas a boa vontade do presidente Lula será desperdiçada, se a incompetência do governo venezuelano continuar tão grande quanto o autoritarismo de seu chefe.

 

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