domingo, 4 de agosto de 2024

Rubens Barbosa - Lula deve optar entre defesa da democracia e interesses do PT

O Estado de S. Paulo

A eleição na Venezuela representa o maior teste para a política externa do governo Lula

Apesar do princípio constitucional de não interferência em assuntos internos de outros países, os governos do PT fizeram o contrário, como se observa agora na Venezuela. Apoiou Hugo Chávez e Nicolás Maduro nas eleições e respaldou politicamente e minimizou as restrições à democracia dos dois governos, apesar das evidências de medidas autoritárias e de o Mercosul ter suspendido a Venezuela por desrespeito à cláusula democrática. Autoridades brasileiras ressaltaram o papel de Lula para a realização das eleições, para a transparência do processo eleitoral e para a negociação do acordo de Barbados.

Desde o acordo de Barbados, em outubro de 2023, em que a Venezuela se comprometeu a realizar eleições livres e transparentes, em troca da suspensão das sanções sobre a venda de petróleo e gás, com o Brasil como um dos avalistas, o governo Lula aumentou seu apoio a Maduro.

Exemplo claro foi o tratamento dado a Maduro e as declarações de Lula antes do encontro de presidentes sul-americanos em Brasília. Em seguida, Maduro antecipou as eleições previstas para dezembro e tomou medidas para dificultar a candidatura oposicionista (inabilitação de políticos, perseguições e medidas repressivas, limitação de eleitores no exterior, cancelamento de convites para observadores independentes).

SANÇÕES. Os EUA revogaram a suspensão das sanções com a crescente falta de transparência na campanha. O Brasil continuou a apoiar a Venezuela com um silêncio ensurdecedor, com contatos diretos, apresentando-se como possível mediador na disputa interna e com declarações vagas estimulando a transparência nas eleições.

Apesar de todas as restrições, a oposição se mantinha otimista quanto aos resultados. Poucas horas depois de encerrada a votação, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral anunciou, com 80% dos votos apurados, a vitória de Maduro para um terceiro mandato de seis anos.

Apesar dos protestos da oposição, que informou ter dados que contrariavam o anúncio, menos de 24 horas depois da eleição, o CNE diplomou Maduro como presidente. O ministro da Defesa fez pronunciamento respaldando a eleição. Como era previsível, manifestações de rua contra a diplomação se multiplicaram, com crescente repressão policial, causando dezenas de mortos e centenas de prisões.

A comunidade internacional manifestou dúvidas quanto à lisura do pleito, como foi feito por nove países latino-americanos (inclusive governos de esquerda de Chile e Colômbia), liderados pelo Uruguai. Os representantes diplomáticos de sete desses países foram expulsos com prazo de 72 horas para deixar o país, e a embaixada da Argentina foi ameaçada de invasão para retirar venezuelanos exilados em seu interior. Buenos Aires pediu ao governo brasileiro para representar os interesses argentinos.

ERRO. Nesse contexto, as ações e declarações do governo brasileiros se complicaram rapidamente. O envio do assessor internacional de Lula a Caracas foi um erro por colocar o Brasil no centro dos acontecimentos e dar a impressão que poderia exercer o papel de mediador entre o autoritarismo de Maduro e uma oposição fortalecida (o que, na realidade, não existe).

A posição do Brasil foi de cautela, sem declarações públicas sobre o resultado antes da divulgação das atas. Lula e Amorim declararam que o governo brasileiro só deve reconhecer o resultado após garantia de eleições justas, que não endossaria a narrativa de fraude sem ver as atas, que é normal haver briga e não há nada de grave.

Lula disse que o reconhecimento do resultado depende da publicação das atas e que, se houver contestação, a oposição deve recorrer à Justiça, que deverá decidir sobre a pendência – e só então o governo brasileiro vai se pronunciar.

Na prática, Lula antecipou o pedido de Maduro – que publicamente solicitou a mesma coisa ao CNE – e reconheceu implicitamente a reeleição de Maduro, visto que já se sabe qual a decisão do CNE (sempre a favor do governo). Essa atitude de Lula criou uma armadilha contra o próprio governo.

O quadro se complicou ainda mais pelos pronunciamentos do Centro Carter (que disse que o processo eleitoral não pode ser considerado democrático), da União Europeia, do G-7, dos países latino-americanos, da OEA, apesar de não ter conseguido aprovar resolução condenando a Venezuela, em função da abstenção do Brasil, que pediu a divulgação das atas, juntamente com México e Colômbia.

RECONHECIMENTO. Os EUA reconheceram a vitória da oposição. Sem falar da repressão às manifestações pela polícia e pelo Exército, das investigações sobre o ataque de hackers da Macedônia do Norte ao CNE, do fato de terem queimado e destruído documentos, dos ataques à oposição como responsável pelos “atos de terrorismo” e de tentativa de golpe de Estado, da ameaça de processo e prisão de María Corina Machado, todas contrárias às declarações de Lula de que tinha confiança na normalidade no processo eleitoral e não havia nada de grave na eleição venezuelana.

Algumas das consequências da atitude do governo brasileiro, ao demorar em se pronunciar sobre o resultado da votação, são a perda explícita da liderança política na América do Sul, o desgaste da imagem internacional do presidente Lula e a perda da credibilidade da política externa.

Caso reconheça a vitória de Maduro (o que me parece improvável por razões de política interna, mas possível pelas declarações até aqui) ou adie indefinidamente o reconhecimento, o governo Lula enfrentará forte crítica, dificultando ainda mais a governança interna.

As eleições de 28 de julho passaram a representar o maior teste para a política externa do governo Lula, no sentido de que vai demonstrar qual é sua prioridade: a defesa dos interesses do país, da democracia e dos direitos humanos ou a prevalência da ideologia e dos interesses partidários.

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