terça-feira, 6 de agosto de 2024

Tiago Medeiros* - O Avesso de Marx: Conversas filosóficas para uma filosofia com futuro

A editora do Ateliê de Humanidades faz chegar ao público brasileiro um livro escrito por um incansável e arguto leitor de Karl Marx, o filósofo José Crisóstomo de Souza. O título é fiel à empreitada: O Avesso De Marx. Envolve as reflexões do autor de O Capital nas já conhecidas áreas em que produziu, mas vai além, ao tocar nos obscuros campos da teologia e do misticismo.

Praticado por uma metodologia inusual, o livro é uma sequência de conversas. Método e estilo são cuidadosamente entretecidos como para convidar o leitor a um bate-papo, e para refazer o convite à proporção que a narrativa avança e se adensa. Tendo se cercado de um imenso volume de referências, em seis idiomas, e as apresentado e articulado por toda a redação, especialmente em notas de rodapé, o autor não poupa o leitor da responsabilidade acadêmica com a qual está acostumado a tratar em seus escritos, sem com isso abrir mão da clareza, da didática e da coloquialidade espontâneas, próprias de quem quer se fazer entendido. As “conversas filosóficas para uma filosofia com futuro” – eis o subtítulo do trabalho – são antecedidas por dois textos introdutórios em que são anunciados o diagnóstico sobre a obra marxiana e uma agenda de tratamento da filosofia que a suporta. O diagnóstico é quanto ao caráter metafísico do pensamento de Marx, a agenda é a da orientação para destranscendentalizá-lo.

Crisóstomo evidencia que o jovem Marx (que escrevia em 1842) deixava escapar que sua sensibilidade pelos vulneráveis, excluídos e oprimidos tinha um fundo transcendente e, no limite, místico, que encontraria sublimação no mito do Humanus, poetizado em Mistérios, de Goethe. Sumariamente, o mito anuncia uma ideia da humanidade como uma comunidade amalgamada pela união do verdadeiro humano com o verdadeiro divino, o elo da caridade com o amor. Mas essa homogeneidade não seria um dado, seria uma potência, um projeto de futuro: uma conciliação apresentada como a “meta final, histórica, de toda cultura e religião anteriores”. Crisóstomo insinua que Marx foi atraído pela força hipnótica desse mito em sua juventude, razão pela qual esboçou os rumos de sua obra para perseguir o objetivo primaz de instauração da comunidade unitária na sociedade humana, elevando-a “à redenção, por via das diversas religiões dos diversos povos, coroadas elas todas no Cristianismo como religião do Deus-Homem, bem entendido, esotericamente traduzido” (p.15). Teria sido isso o que despertou o vigoroso humanismo que ele travestiu de ciência com um materialismo próprio e cheio de consequências, inclusive a da aposta normativa irrestrita e irreversível no Comunismo. Haveria aí um compromisso cripto-religioso. Apesar do verniz científico, a sina deflagrada pelo mito do Humanos teria feito Marx sucumbir a uma teleologia imanentista que comportaria um moralismo cristão secularizado e disfarçado de História universal. Assim interpretando, Crisóstomo propõe destranscendentalizar um Marx que se orgulhou de ter imantentizado o Cristianismo.  

A primeira conversa envolve os temas do cristianismo, do homem, da essência, do materialismo. É a reconstrução do diálogo entre Marx e Ludwig Feuerbach. O empirismo sensualista de Feuerbach é injustamente criticado por Marx, como um ponto-de-vista insuficientemente materialista e inadvertidamente individualista. Fazendo justiça ao autor de A Essência do Cristianismo, Crisóstomo escreve: “Se, conforme Feuerbach, pode-se de algum modo dizer ainda que os indivíduos ‘têm’ relações, em Marx as relações (sociais, de classe) ‘têm’ os indivíduos, que são ‘postos’ pelas mesmas, ou seja, pelas circunstâncias materiais e pela História” (p. 71). Do detalhado exercício de leitura e comentário aplicado sobre as Teses d Feuerbach, somos levados a concluir, tanto sobre quais são as reais qualidades de Marx, a defesa de uma materialismo prático-sensível, quanto sobre as fraquezas que enodoaram toda a sua obra posterior e que bizarramente serão tomadas, nolens volens, como virtude por seus epígonos no pensamento e na política: o transcendentalismo, o necessitarismo, o determinismo, uma epistemologia do real como invertido etc.

Se a primeira conversa é dedicada a esmiuçar a interlocução entre Marx e Feuerbach, a segunda vai à matriz filosófica de tudo: Hegel. O debate aqui é sobre as noções de substância e autoconsciência, objetividade e subjetividade. Crisóstomo explora a leitura que Marx fez de Hegel e a que Hegel fez de Espinosa, para mostrar que o horizonte do materialismo histórico marxiano é sobremaneira visado pelas polidas lentes de um substancialismo espinosista, aquele para o qual há “o primado da natureza exterior” (p. 106). Mas não só isso. Em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx reconheceu que o sistema hegeliano torna o Estado a manifestação substantiva do Homem, o que para ele é um vaticínio, além de uma falsificação. Marx ataca a substancialidade do Estado para, por negação, propor sua antítese, como destruição. A substância do humano não estaria no complexo de instituições e relações de produção vigentes, estaria em seu futuro. E seu futuro é para onde a História o levará: ao Comunismo. Não é uma questão de “se”, mas de “quando”; não é uma questão de filosofia, mas de ciência.

Adiante, a terceira conversa explora uma certa antropologia filosófica e uma filosofia da história que dariam o combustível para que Marx avançasse com uma tese teleológica voltada para realizar a essência comunitária do Homem. Num sofisticado movimento de idas e vindas em obras diferentes do filósofo, Crisóstomo mostra o que muda e o que permanece ao longo de toda a carreira de Marx; e, sem dúvida, o objetivo normativo da implementação do Comunismo é a pedra de toque, seu significado para o todo da obra marxiana é inequívoco: “[P]odemos entender, portanto, que o Comunismo de Marx é finalmente a instauração do Homem (do homem ideal ou do Ideal Comunista de homem), isto é, do homem plenamente social, comunitário, que serão resultado e o coroamento da História” (p. 133)   

Pouco a pouco, vamos vendo o cenário desenhado pelo legado marxista na cultura ocidental contemporânea. É quando o materialismo torna-se moral e a política, religião. Crisóstomo revela como esse engodo, que viria a soprr a atual onda identitária, já estava contido em Marx e em seu parceiro e cúmplice, Friedrich Engels. Vários parágrafos da quarta conversa são dedicados à leitura de Engels sobre Feuerbach. Eles conduzem ao corolário de que aos olhos da dupla, a moral só se torna concreta – e, portanto, pós-feuerbachiana e pós-kantiana – com a concepção materialista da história, pois que o roteiro de postulados apodíticos e os contornos apocalípticos do discurso criam o horizonte inultrapassável do Capitalismo como Mal e do Comunismo como Bem. Essa clivagem é o sumo de uma política praticada como fé: “Com a concepção materialista da história, temos uma coisa prática, uma ‘religião politica’, ou uma ‘política religiosa’, temos a política da realização do Ideal, do Comunismo – de um ‘Reino de Deus na Terra’, se se quiser” (p. 165).

À guisa de excurso, a quinta conversa é uma exploração sintética e enciclopédica, porém igualmente crítica, da noção de corpo transpessoal. O tema é atravessado por imagens religiosas e escatológicas e, antes de Marx, foi amanhado por gente como Rousseau (a “vontade geral”) e Hobbes (a “Pessoa” que é unidade de “Homem” e “Deus”). Mas em Marx a sintomática pretensão à objetividade é traduzida na superação do Estado. O corpo transpessoal, um Corpo político, de que fala Crisóstomo ao eviscerar Marx, é o da humanidade que impõe a si a independência dessa forma transitória de institucionalidade, o Estado.  

Enquanto filósofo, Crisóstomo não esconde o que aprendeu com Marx e o que dele legou. Investe em uma pauta que Marx não quis investir, porém não ignorou. No fundo, o Avesso é um grande elogio ao autor de O Capital, apesar de parecer o contrário. E não propriamente pelo Capital, mas por insights dispersos e abandonados por Marx. A tese de que o real é atividade sensível, que Crisóstomo veio a desenvolver em seu sofisticado A World of Our Own, foi uma luz que Marx lançou na filosofia contemporânea, em termos tais que nem o pragmatismo, segundo Crisóstomo, conseguiu em eficácia e acabamento. A tarefa de destranscendentalizar Marx, de emancipá-lo de seu visgo místico, metafísico, escatológico, apocalíptico é a de levar um outro Marx a sério, um Marx que o próprio Marx tratou de suprassumir na dialética de sua carreira.

O Avesso de Marx é uma obra para a cultura letrada no Brasil, é sobre os fundamentos epistemológicos e normativos que nós, herdeiros do século de Marx, manejamos. O imaginário marxista trocado em miúdo nos dias de hoje meio que tem tomado a figura do proletariado como um identitário avant la lettre e as identidades fragmentárias e “oprimidas” como as portadoras do Bem, violadas pelas estruturas, essas, no fundo, capitalistas, ou, como ironiza o autor, “capetalistas”. Aprendemos sobre isso na última conversa, quando o autor esboça a agenda antagônica a esse patrimônio marxiano e afirma no pormenor suas diferenças com Marx e com o marxismo. Mas paro por aqui, com a esperança de que esse introito a uma sequência rica e prazerosa de conversas possa precipitar o leitor à mesma decifração de Marx que eu me permiti ao lê-lo, então, pelo avesso.

*Professor de Filosofia do IFBA

Nenhum comentário:

Postar um comentário