Praticado por uma metodologia inusual, o livro é uma sequência de conversas. Método e estilo são cuidadosamente entretecidos como para convidar o leitor a um bate-papo, e para refazer o convite à proporção que a narrativa avança e se adensa. Tendo se cercado de um imenso volume de referências, em seis idiomas, e as apresentado e articulado por toda a redação, especialmente em notas de rodapé, o autor não poupa o leitor da responsabilidade acadêmica com a qual está acostumado a tratar em seus escritos, sem com isso abrir mão da clareza, da didática e da coloquialidade espontâneas, próprias de quem quer se fazer entendido. As “conversas filosóficas para uma filosofia com futuro” – eis o subtítulo do trabalho – são antecedidas por dois textos introdutórios em que são anunciados o diagnóstico sobre a obra marxiana e uma agenda de tratamento da filosofia que a suporta. O diagnóstico é quanto ao caráter metafísico do pensamento de Marx, a agenda é a da orientação para destranscendentalizá-lo.
Crisóstomo evidencia que o jovem Marx (que
escrevia em 1842) deixava escapar que sua sensibilidade pelos vulneráveis,
excluídos e oprimidos tinha um fundo transcendente e, no limite, místico, que
encontraria sublimação no mito do Humanus, poetizado em Mistérios, de
Goethe. Sumariamente, o mito anuncia uma ideia da humanidade como uma
comunidade amalgamada pela união do verdadeiro humano com o verdadeiro divino,
o elo da caridade com o amor. Mas essa homogeneidade não seria um dado, seria
uma potência, um projeto de futuro: uma conciliação apresentada como a “meta
final, histórica, de toda cultura e religião anteriores”. Crisóstomo insinua
que Marx foi atraído pela força hipnótica desse mito em sua juventude, razão
pela qual esboçou os rumos de sua obra para perseguir o objetivo primaz de
instauração da comunidade unitária na sociedade humana, elevando-a “à redenção,
por via das diversas religiões dos diversos povos, coroadas elas todas no
Cristianismo como religião do Deus-Homem, bem entendido, esotericamente
traduzido” (p.15). Teria sido isso o que despertou o vigoroso humanismo que ele
travestiu de ciência com um materialismo próprio e cheio de consequências,
inclusive a da aposta normativa irrestrita e irreversível no Comunismo. Haveria
aí um compromisso cripto-religioso. Apesar do verniz científico, a sina
deflagrada pelo mito do Humanos teria feito Marx sucumbir a uma
teleologia imanentista que comportaria um moralismo cristão secularizado e
disfarçado de História universal. Assim interpretando, Crisóstomo propõe
destranscendentalizar um Marx que se orgulhou de ter imantentizado o
Cristianismo.
A primeira conversa envolve os temas do
cristianismo, do homem, da essência, do materialismo. É a reconstrução do
diálogo entre Marx e Ludwig Feuerbach. O empirismo sensualista de Feuerbach é
injustamente criticado por Marx, como um ponto-de-vista insuficientemente
materialista e inadvertidamente individualista. Fazendo justiça ao autor
de A Essência do Cristianismo, Crisóstomo escreve: “Se, conforme
Feuerbach, pode-se de algum modo dizer ainda que os indivíduos ‘têm’ relações,
em Marx as relações (sociais, de classe) ‘têm’ os indivíduos, que são ‘postos’
pelas mesmas, ou seja, pelas circunstâncias materiais e pela História” (p. 71).
Do detalhado exercício de leitura e comentário aplicado sobre as Teses d
Feuerbach, somos levados a concluir, tanto sobre quais são as reais
qualidades de Marx, a defesa de uma materialismo prático-sensível, quanto sobre
as fraquezas que enodoaram toda a sua obra posterior e que bizarramente serão
tomadas, nolens volens, como virtude por seus epígonos no pensamento e na
política: o transcendentalismo, o necessitarismo, o determinismo, uma
epistemologia do real como invertido etc.
Se a primeira conversa é dedicada a esmiuçar
a interlocução entre Marx e Feuerbach, a segunda vai à matriz filosófica de
tudo: Hegel. O debate aqui é sobre as noções de substância e autoconsciência,
objetividade e subjetividade. Crisóstomo explora a leitura que Marx fez de
Hegel e a que Hegel fez de Espinosa, para mostrar que o horizonte do
materialismo histórico marxiano é sobremaneira visado pelas polidas lentes de
um substancialismo espinosista, aquele para o qual há “o primado da natureza
exterior” (p. 106). Mas não só isso. Em sua Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel, Marx reconheceu que o sistema hegeliano torna o Estado a
manifestação substantiva do Homem, o que para ele é um vaticínio, além de uma
falsificação. Marx ataca a substancialidade do Estado para, por negação, propor
sua antítese, como destruição. A substância do humano não estaria no complexo
de instituições e relações de produção vigentes, estaria em seu futuro. E seu
futuro é para onde a História o levará: ao Comunismo. Não é uma questão de
“se”, mas de “quando”; não é uma questão de filosofia, mas de ciência.
Adiante, a terceira conversa explora uma
certa antropologia filosófica e uma filosofia da história que dariam o
combustível para que Marx avançasse com uma tese teleológica voltada para
realizar a essência comunitária do Homem. Num sofisticado movimento de idas e
vindas em obras diferentes do filósofo, Crisóstomo mostra o que muda e o que
permanece ao longo de toda a carreira de Marx; e, sem dúvida, o objetivo
normativo da implementação do Comunismo é a pedra de toque, seu significado
para o todo da obra marxiana é inequívoco: “[P]odemos entender, portanto, que o
Comunismo de Marx é finalmente a instauração do Homem (do homem ideal ou do
Ideal Comunista de homem), isto é, do homem plenamente social, comunitário, que
serão resultado e o coroamento da História” (p. 133)
Pouco a pouco, vamos vendo o cenário
desenhado pelo legado marxista na cultura ocidental contemporânea. É quando o
materialismo torna-se moral e a política, religião. Crisóstomo revela como esse
engodo, que viria a soprr a atual onda identitária, já estava contido em Marx e
em seu parceiro e cúmplice, Friedrich Engels. Vários parágrafos da quarta
conversa são dedicados à leitura de Engels sobre Feuerbach. Eles conduzem ao
corolário de que aos olhos da dupla, a moral só se torna concreta – e,
portanto, pós-feuerbachiana e pós-kantiana – com a concepção materialista da
história, pois que o roteiro de postulados apodíticos e os contornos
apocalípticos do discurso criam o horizonte inultrapassável do Capitalismo como
Mal e do Comunismo como Bem. Essa clivagem é o sumo de uma política praticada
como fé: “Com a concepção materialista da história, temos uma coisa prática,
uma ‘religião politica’, ou uma ‘política religiosa’, temos a política da
realização do Ideal, do Comunismo – de um ‘Reino de Deus na Terra’, se se
quiser” (p. 165).
À guisa de excurso, a quinta conversa é uma
exploração sintética e enciclopédica, porém igualmente crítica, da noção de
corpo transpessoal. O tema é atravessado por imagens religiosas e escatológicas
e, antes de Marx, foi amanhado por gente como Rousseau (a “vontade geral”) e
Hobbes (a “Pessoa” que é unidade de “Homem” e “Deus”). Mas em Marx a
sintomática pretensão à objetividade é traduzida na superação do Estado. O
corpo transpessoal, um Corpo político, de que fala Crisóstomo ao eviscerar
Marx, é o da humanidade que impõe a si a independência dessa forma transitória
de institucionalidade, o Estado.
Enquanto filósofo, Crisóstomo não esconde o
que aprendeu com Marx e o que dele legou. Investe em uma pauta que Marx não
quis investir, porém não ignorou. No fundo, o Avesso é um grande
elogio ao autor de O Capital, apesar de parecer o contrário. E não
propriamente pelo Capital, mas por insights dispersos e abandonados por
Marx. A tese de que o real é atividade sensível, que Crisóstomo veio a
desenvolver em seu sofisticado A World of Our Own, foi uma luz que Marx
lançou na filosofia contemporânea, em termos tais que nem o pragmatismo,
segundo Crisóstomo, conseguiu em eficácia e acabamento. A tarefa de
destranscendentalizar Marx, de emancipá-lo de seu visgo místico, metafísico,
escatológico, apocalíptico é a de levar um outro Marx a sério, um Marx que o
próprio Marx tratou de suprassumir na dialética de sua carreira.
O Avesso de Marx é uma obra para a
cultura letrada no Brasil, é sobre os fundamentos epistemológicos e normativos
que nós, herdeiros do século de Marx, manejamos. O imaginário marxista trocado
em miúdo nos dias de hoje meio que tem tomado a figura do proletariado como um
identitário avant la lettre e as identidades fragmentárias e
“oprimidas” como as portadoras do Bem, violadas pelas estruturas, essas, no
fundo, capitalistas, ou, como ironiza o autor, “capetalistas”. Aprendemos sobre
isso na última conversa, quando o autor esboça a agenda antagônica a esse
patrimônio marxiano e afirma no pormenor suas diferenças com Marx e com o
marxismo. Mas paro por aqui, com a esperança de que esse introito a uma
sequência rica e prazerosa de conversas possa precipitar o leitor à mesma
decifração de Marx que eu me permiti ao lê-lo, então, pelo avesso.
*Professor de Filosofia do IFBA
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