O Globo
Devorador de jornais, um dos maiores poetas
brasileiros usava noticiário como matéria-prima e envelheceu sem perder a
capacidade de se indignar
No início dos anos 1950, Armando Freitas
Filho surpreendeu o pai com um pedido inusitado. Queria que Carlos Lacerda
fosse seu padrinho de crisma. O fundador da Tribuna da Imprensa já havia
trocado o comunismo pelo direitismo. Tempos depois, o menino faria o caminho
inverso. “Eu o imitava em sentido contrário e passei a ler a Última Hora, de
Samuel Wainer. Meus pais conservadores não me recriminavam”, recordava.
Quando lançou o primeiro livro, “Palavra”
(1963), o jovem poeta já se identificava como militante de esquerda. No ano
seguinte, o golpe interromperia os sonhos de sua geração. “Tomei um nojo dos
militares por 21 anos”, recordou, em ensaio publicado em “Só Prosa” (2022).
Ao longo da ditadura, os poemas de Armando ecoaram o clima pesado no país. Em “Sociedade Anônima” (1970), ele desafiou a censura ao retratar a repressão: “Pressões e prisões/ pessoas perdidas protestam,/ o povo pulsa no asfalto:/ pop — população palpita e explode/ punhos de pólvora e pânico, no ar”.
Em “Corpo de Delito” (1979), misturou as
estrofes do Hino Nacional com a dor dos presos políticos: “Daqui escuto os
passos dos gigantes/ pisando, impávidos, a paisagem./ Escuto a marcha dos
colossos/ por cima dos ossos”. Em “As Paredes Têm Ouvidos” (1982), ligou o
ufanismo canarinho à brutalidade dos porões: “E salve a seleção/ salve-se quem
puder/ pois de repente/ é aquela corrente/ nos pés”.
A política não definiu a vasta obra de
Armando, mas é impossível compreendê-la sem conhecer suas ideias. Devorador de
jornais, o poeta nunca deixou de usar o noticiário como matéria-prima. Nos
últimos anos, escreveu versos engajados contra o impeachment de Dilma, a prisão
de Lula, a ascensão de Bolsonaro.
No livro “Arremate” (2020), também desabafou
sobre a violência do Rio. “Nenhuma bala é perdida./ Todas alcançam o alvo mais
imprevisto — útero/ escudo, esconderijo escuro/ onde uma criança cresce”,
escreveu, quando o menino Arthur Melo foi baleado na barriga da mãe.
O autor de “3x4” (1985) envelheceu sem jamais
perder a capacidade de indignação. Ao completar oito décadas de vida, refletiu
sobre o passar do tempo: “Fazer 80 anos é terrível./ Uma espécie de mistura/ de
alegria e tristeza/ de um beijo e de um adeus”. Ele doou seu acervo ao
Instituto Moreira Salles, onde esperava “continuar vivendo por escrito”.
Armando partiu ontem, aos 84 anos, celebrado
como um dos maiores poetas brasileiros. Carioca da Urca, deu o último suspiro
no alto da Gávea, no mesmo hospital em que morreu seu padrinho de crisma.
Belo texto do Bernardo Franco em homenagem ao extraordinario brasileiro Armando Freitas. Por meio de suas obras sempre se fará presente entre nós.
ResponderExcluirExcelente texto. Não conhecia o poeta que morreu ontem, mas seus versos destacados pelo colunista são magníficos.
ResponderExcluirEu também não conhecia o poeta - A bala ''perdida'' quando acerta alguém é porque tinha endereço certo.
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