“Em outros tempos, o Céu estava tão próximo da Terra que bastaria estender a mão para colher um pedaço do Firmamento e se alimentar com ele”. (De uma lenda mursi, da África Negra)
“É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”. (José Saramago)
I
Tenho para mim que o Brasil precisa
urgentemente de um projeto de nação, de uma opção democrática ao que vem se
desenrolando sob os nossos olhos desde a redemocratização, em 1985, e que
acabou nos frustrando em alguma medida. Sair do fim do túnel, antes que seja
tarde demais. Eis o que implica, a meu ver, trilhar por um espaço de
convergência. Este foi o campo encarnado pela chapa JK - Jango em 1955, que um
militar legalista como o Marechal Teixeira Lott defendeu com coragem exemplar.
E também foi o campo das Reformas de Base e do ministro San Tiago Dantas no
início da década de 60. Ou ainda de Tancredo Neves e seu Colégio Eleitoral, de
Itamar Franco e seu Plano Real e, também, de Eduardo Campos, morto tão
prematuramente.
Ou seja, chegou o momento de superar essa polarização que assola o país. Não existe autoritarismo de direita ou autoritarismo de esquerda. O que existe é autoritarismo. Não existe corrupção de direita ou corrupção de esquerda. O que existe é corrupção. E a corrupção está para a economia como a tortura para a política: ela mata, tenho reiterado isso. A linha de demarcação política se dá entre Civilização e Barbárie.
Dos enormes desafios que o Campo Democrático
tem pela frente – os quais passam tanto pela compreensão de que um novo mundo
do trabalho vem se formando diante de nós quanto pela ampliação das lutas pela
cidadania, sem esquecer dos compromissos a assumir com a defesa do meio
ambiente –, a incorporação definitiva da Democracia ao ideário progressista
talvez seja aquele de maior complexidade.
A prática tem demonstrado que alguns setores
são mais democráticos no plano político; outros, no terreno social e econômico.
Mas há um chão democrático comum, o chão do Humanismo também, integrado pela
defesa da Ética, da Justiça Social e pela formação de uma ampla frente
política. Não faz o menor sentido manter um corte entre Justiça Social e
Democracia. A luta é longa e só pode ser conduzida de forma consensual. Em
tempo: por Humanismo eu entendo uma sociedade não fraturada, sem exploração,
alienação e opressão de nenhum tipo. Somente assim o homem se reencontra ou se
reconcilia com ele mesmo. Ou seja, defendendo os valores da Civilização contra
a Barbárie, justamente.
Retomo aqui uma linha de raciocínio que venho
trilhando há tempos. O papel das forças democráticas ou do Campo Democrático
implica a defesa intransigente dos interesses da população, o que significa o
reconhecimento sem arestas das instituições da República. Um país não se compõe
apenas de bandeira e hino.
Tem povo dentro dele. A redução da política à
lógica do chamado "nós contra eles" conduz a considerar os
atores sociais como inimigos e não adversários. Nunca é demais lembrar que o
próprio da atividade política é a negociação: a destruição ou a eliminação do
outro pertence ao raciocínio e ao domínio dos marginais.
O nosso país só avançou também pela via
negociada, por intermédio da política. Entre a revolução – pondo abaixo o
aparelho de Estado – e a conciliação – que faz tábua rasa das transformações
sociais –, podemos verificar a existência de uma saída que passa pelo acordo
político. Aí está a nossa História para comprovar isso, em seus grandes
momentos: a Independência negociada, a Abolição pactuada, a transição para a
Democracia em 1985. Isso não significa que não houve lutas. Elas foram muitas,
inclusive armadas. Significa apenas que aconteceu uma convergência para uma via
negociada. As lutas todas convergiram para esse caminho. Daí a negociação. Nem
o Estado pode frear as mudanças, ou teve forças suficientes para isso, nem a
sociedade conseguiu mudar tudo de chofre, o que tampouco é muito comum na
História dos países em geral.
Não há tantas revoluções francesa ou russa
assim pelo mundo. O Brasil avança dessa forma, essa a especificidade nacional
brasileira, a meu ver. Resumindo, a nossa via de transformação social desemboca
na negociação. "Negociar para mudar", escreveu certa vez o
extraordinário estrategista político Giocondo Dias.
II
A mediocridade e a perversidade podem ser
significativas e andar de mãos dadas. Já vivemos esse drama durante a ascensão
do fascismo na Europa. Durante muitos anos, deixamos, entre nós também, que
aventureiros e demais integrantes de toda uma escória, à maneira das hordas
fascistas, posassem de defensores do povo. Muitas vezes eles não representam
coisa alguma, a não ser eles mesmos. Adolf Hitler empalmou o poder na Alemanha
com base, em boa medida, no chamado lumpesinato ou nos setores marginalizados da
população. Fez a ponte entre o capital monopolista em formação e a escória
social. A mistura de crise econômica com insegurança pública, com a consequente
expansão do crime organizado, é totalmente explosiva e pode resultar, como na
própria Alemanha nazista, na tomada do poder pelos representantes da barbárie.
Organizações criminosas começam a empalmar
outra vez, o Estado. Há uma espécie de burguesia do crime entre nós. O exemplo
do Haiti de hoje é altamente representativo dessa tendência, assim como o do
Equador.
No Brasil, os assassinatos representam quatro
vezes a média mundial. Na Jamaica, dez vezes mais. É terrível isso. Parece não
haver fundo do poço. Um dos sintomas mais agudos do desmoronamento presente em
uma parte da sociedade é dado pelo avanço da irracionalidade, um dos traços
principais, senão o principal, do próprio nazi-fascismo. E há sérios riscos de
avanços de uma espécie de Estado Teocrático no mundo. Ainda no exterior,
figuras como Marine Le Pen, Viktor Orbán, Nicolás Maduro, Donald Trump, os fundamentalistas
do Irã e do Afeganistão e afins apostam na construção de uma espécie de novo
Eixo no mundo, tendo a Democracia como inimiga mortal.
Temos que entender que a Democracia é uma
totalidade, possuindo ao mesmo tempo uma dimensão social, econômica, política,
ambiental, cultural e educacional. Daí não podermos nos limitar mais à defesa
da Democracia institucional. Evidentemente, esta defesa continua sendo
fundamental, mas, a rigor, é preciso ir além dela. Ou seja, a ideia da Frente
Ampla, formulada na batalha contra o fascismo, precisa ser aplicada ou
estendida agora a todos os setores da vida. E não só: a Democracia é uma
conquista da Humanidade, do processo civilizatório. Um patrimônio de todos.
Nesse sentido, ela não pertence a uma classe determinada ou sequer a uma
determinada região. Se eu assimilei algo de minhas conversas com Armênio Guedes
durante décadas de convívio com ele, foi isso. O próprio liberalismo surgiu na
Inglaterra do século XVII, bem antes da formação da burguesia. Sua função era
afirmar o indivíduo diante dos desmandos do Estado absolutista.
E é necessário compreender, de uma vez por
todas, que a contradição não se dá entre Estado e Mercado e, isto sim, entre
capital e interesse social. E que a socialização tem que se dar pela própria
sociedade e não pelo Estado forçosamente. Essas são correções inevitáveis,
alterando certos rumos.
Há a propriedade formal e a propriedade
informal. No papel, uma empresa pode ser estatizada, mas não necessariamente
pública: o caráter público é dado pela gestão da empresa, que precisa ser
transparente para dizer o mínimo. Uma estatal quase sempre é uma propriedade
coletiva dos capitalistas. Ainda mais na fase do Capitalismo Monopolista de
Estado. Na outra ponta, uma empresa privada ou uma entidade privada pode
perfeitamente ter uma função pública e esse é o caso de inúmeras ONGs. E uma
determinada empresa estatal pode sofrer o pior tipo de privatização que existe,
qual seja, a gestão fraudulenta ou corrupta por parte de um partido político;
um órgão privado, por sinal. Nem estatal é sinônimo de público, nem privado é
sinônimo de capitalismo. As burocracias partidárias defendem muitas vezes uma
estatal não por serem públicas exatamente, mas por se revelarem passíveis de um
controle político-administrativo quase absoluto, abrindo as comportas da
corrupção. Basta pensar no loteamento de cargos. Em outros termos: há uma via
jurídica para o acesso à propriedade como também há uma via política. E isso
explica muita coisa. Mais: o mercado é um dado da economia. Somente quando o
capital de fato o domina é que estamos diante de uma realidade capitalista.
Havia mercado na Grécia antiga, mas não havia capitalismo. Eu conversava muito
com o saudoso Milton Coelho da Graça a respeito disso e com ele aprendi lições
valiosas. Uma delas? A economia é para o Homem.
O trabalho por conta própria, o empreendedorismo social e as cooperativas de trabalhadores abrem novos espaços, ditando aspectos diferenciados para a atividade econômica. Afinal, a esmagadora maioria da população vive do suor de seu rosto. Marx chegou a escrever que a luta dos trabalhadores tinha por objetivo restabelecer "a propriedade individual fundada sobre sobre as conquistas mesmo da era capitalista", vendo assim o trabalhador como um detentor pessoal das suas condições de trabalho. Não havia outra forma de quem trabalha se tornar dono dos frutos gerados por sua atividade.
III
Não há mais muito tempo a perder. Urge
organizar um novo projeto político e um novo operador político.
Aprendi isso com uma dessas figuras
extraordinárias que tive a honra de conhecer no decorrer da vida, o camponês
Hilário Pinha, líder da revolta de Porecatu, no Paraná, no final da década de
40 do século passado.
Agrupamentos políticos do Campo Democrático,
associações sindicais e de classe profissional, componentes dos setores
artísticos e da intelectualidade, grupos de ambientalistas, defensores da
cidadania, dos direitos da mulher e das minorias, associações de artesãos, além
de fazedores de cultura em geral, decididamente a lista é tão longa e diversa
quanto a própria sociedade, eu diria até.
Precisamos, em meio a essa crise sem
precedentes dos nossos ideais de Justiça Social e de Democracia, agarrar a
realidade pelos cabelos e recuperar os laços que ainda nos ligam à cultura
libertária. Não estamos mais na fase da organização da indústria sob bases mais
artesanais, dando origem ao movimento anarquista, sua expressão política. Como
tampouco estamos mais na época do chamado chão da fábrica, do trabalho fabril
tradicional, dando origem aos movimentos capitaneados pelas II e III
internacionais de trabalhadores, respectivamente social-democrata e comunista,
suas expressões políticas também. Hoje, estamos diante de um processo de outro
tipo, com a entrada em cena da automação, da robótica e da inteligência
artificial. Que política armar a partir daí é o x da questão. Esse é o ponto de
partida. Vamos concentrar esforços nisso. Como o Estado já não emprega como
antes e a indústria passa por um processo de automação cada vez mais acentuado
(no momento, para que se tenha uma ideia, apenas 10% do parque industrial
recorre à inteligência artificial), os trabalhadores tendem a investir nas
atividades por conta própria, até como forma de atravessar esse período de
mudanças. A sobrevivência está na ordem do dia. Eis o que angustia as pessoas.
Quem reduzir isso a uma simples vontade de empreender, em função de um espírito
capitalista que se apossou repentinamente dos trabalhadores, vai se isolar
totalmente das massas. A ideologia tem pouco que ver com isso: trata-se de luta
pelo pão de cada dia; cada vez mais complicada. Não podemos deixar mais essa
bandeira nas mãos dos oportunistas. Nesse sentido, seria interessante
examinarmos a experiência de microcrédito de Muhammad Yunus, de Bangladesh. No
Brasil, um dos poucos homens públicos a chamar a atenção para isso foi
Cristovam Buarque. O afastamento de muitos setores ditos progressistas da
realidade popular impede por vezes a compreensão disso. Hoje é mais comum um
filiado a um partido político do campo progressista se aboletar em um gabinete
parlamentar qualquer do que participar de algum movimento social. O próprio
marxismo, antes vigoroso no interior de alguns partidos, com formulação
própria, hoje se refugiou quase por completo na Universidade. Vigora nesses
nossos ásperos tempos um marxismo de cátedra, desvinculado da prática. Ocorre
que o que é próprio da práxis marxista é justamente a união entre teoria e
prática. Só assim o pensamento avança de fato.
Coerência não é mesmice, já observava
Ferreira Gullar. Na época de Karl Marx e Friedrich Engels não existia a
Linguística, a Psicanálise, a Antropologia, a Ecologia, a Cibernética e a
Arqueologia, assim como a Psicologia, ainda engatinhava. De lá para cá, a
árvore do conhecimento cresceu e muito. O mundo hoje é outro.
Algumas questões permanecem, outras não. E
surgiram novos problemas. Se considerarmos que as ideias de Karl Marx e
Friedrich Engels estão ligadas às lutas de classe, é necessário ter em conta
também que elas desaparecerão com o próprio desaparecimento das classes
sociais. Nesse sentido, suas ideias compõem o formidável acervo do Humanismo
contemporâneo, uma vez que visam a repor a totalidade social e, por extensão, a
integridade do próprio Homem.
IV
Se a primeira Revolução Industrial, a que
teve início na Inglaterra em 1780, criou as bases técnicas para a superação do
modo de produção escravista ao transferir uma parte da capacidade muscular do
homem para a máquina, esta última revolução, iniciada na virada do século XX
para o atual, ao transferir uma parte da capacidade intelectual do homem para
as máquinas, lança as bases técnicas para a superação, por seu turno, do modo
de produção das mercadorias. No século XXI, alguns reagem às mutações industriais
como outros reagiram àquelas presentes na passagem do século XVIII para o
século XIX. Ambos revelaram-se reacionários, historicamente falando. A
impressão que dá é que alguns setores (curiosamente lotados na
intelectualidade, digamos assim) se comportam diante da revolução tecnológica
em curso como outrora os ludistas na Inglaterra, que quebravam as máquinas nas
fábricas, em reação à Revolução Industrial.
No passado – se formos nos ater ao período da
Revolução Russa de 1917, por exemplo – havia as condições políticas para as
mudanças, mas não existiam as condições técnicas, materiais. O próprio Vladimir
Lenin reconheceu esse fato, às vésperas da tomada do poder, ou seja, na noite
do dia 6 para o dia 7 de novembro.
Mesmo nos anos subsequentes à Revolução, o idioma de trânsito ou oficial da III Internacional era o alemão e não o russo, uma vez que os bolcheviques aguardavam a expansão da Revolução em direção ao Ocidente. Isso acabou não acontecendo devido às particularidades da luta no campo ocidental, diferente daquelas do campo oriental, predominando neste último um Estado forte e uma sociedade civil pouco desenvolvida. No chamado Ocidente era justamente o contrário: havia um Estado não tão dominante e uma sociedade civil mais atuante do que no Oriente. As duas vias, a “oriental” e a “ocidental” se chocaram. De toda maneira, a situação hoje se inverteu, em relação à Revolução de 1917 na Rússia: isto é, temos agora as condições técnicas, a base material, mas perdemos momentaneamente as condições políticas para as transformações sociais. Existe um choque incontornável, uma contradição indissolúvel, entre o capital constante (maquinário, instalações, o chamado trabalho morto) e o capital variável (grosso modo: o trabalho humano vivo, assalariado). Extrair mais-valia de um robô é um pouco difícil. O capitalismo criou uma base material que não é aplicada a ele. A automação é a base material da sociedade sem classes, tornando tecnicamente desnecessária a exploração do homem pelo homem. O modo de produção capitalista não pode ir até o fim da lógica da automação por ela ser incompatível com a extração da mais-valia. Afinal, sem salário não há capital. E como é impossível frear o desenvolvimento das forças produtivas, eis o impasse formado. Ele só será resolvido pela intervenção política.
Sob essa ótica, urge adequar o rumo da
Economia àquele do Projeto Político. Tudo indica que haverá um atrito entre as
forças produtivas, que não recuam historicamente, e as forças reprodutivas,
isto é, o número de pessoas formado no bojo da Revolução Industrial anterior,
conforme os indicadores demográficos que possuímos. Esta é outra dificuldade, e
não das menores, que temos de encarar. É provável que tenhamos que controlar ao
menos o ritmo da entrada em cena das inovações tecnológicas.
V
Cabe a nós, humanistas contemporâneos,
reinventar a Democracia, democratizando o seu sistema atual de representação.
Pois toda Democracia, até os sovietes, repousam sobre um conjunto de
representatividade, de delegação de poder. Até para melhor defendê-la das
forças autoritárias e totalitárias, é preciso atualizá-la. Ao mesmo título,
impõe-se rever a qualidade da República que temos no mundo: há verdadeiros clãs
dinásticos travando a participação das pessoas, famílias inteiras dominando a
política, e isso tanto nos países centrais quanto periféricos. É possível que
Nikita Kruschev tenha sido apeado do poder na antiga União Soviética muito
menos por sua crítica ao stalinismo (portanto correta) do que pelo fato de ter
batalhado pela rotatividade do poder, limitando a representação política a dois
mandatos. Essa era uma proposta da própria Comuna de Paris, já em 1871. Quando
nos referimos à questão republicana, não estamos nos atendo apenas a ditaduras,
já em número considerável no mundo e também submetidas a verdadeiras dinastias.
Também nos países que se reivindicam da Democracia isso também ocorre. Assim,
temos a família Gandhi na Índia, a família Ali Bhutto no Paquistão, os Kennedys
e os Bush nos Estados Unidos, a família Le Pen na França, Papa Doc e Baby Doc
no Haiti, os Battle no Uruguai, a família Frei no Chile, a família Pastrana na
Colômbia, os Ortegas na Nicarágua, os Castros em Cuba, Peron e Kirchner na
Argentina, a família de Kim-Il-Sung na Coreia do Norte, a família
Tchan-Kai-Shek em Formosa, os Sukharnos na Indonésia, a família Fujimori no
Peru. Há algo de podre também fora do Reino da Dinamarca.
Não é muito difícil constatar a ambiguidade
de certos setores se reivindicando do campo progressista quando recorrem à
doutrina nacionalista, em período marcado pela globalização, para justificar
seus equívocos e crimes. Não há como deixar de recordar aqui a frase do
escritor inglês Samuel Johnson: "o nacionalismo é o último refúgio dos
calhordas". Proferida no século XVIII, ela parece manter toda sua
atualidade. Já foi dito por um grande estrategista político do século XX:
"não pintemos o nacionalismo de vermelho". Pois uma coisa é o
projeto de nação, outra a estreiteza nacional. Torna-se imperativo, por
exemplo, inserir o Brasil e seu necessário projeto de nação no mundo
globalizado que aí está. É possível uma globalização dos povos. Não estamos
fadados a uma globalização do capital. Há contradições nesse processo todo.
Quem só enxerga a dinâmica do capital no processo de globalização no fundo não
crê em mudanças. Da parte de alguns, pode ser até uma boa desculpa para
justificar o imobilismo e a impotência, quem sabe.
Para algumas instâncias políticas ocorre, visivelmente, um atrito entre o plano nacional e a questão democrática. A História ensina; é transmissora de experiências. Vejamos o caso do governo populista de Getúlio Vargas. Ele subordina a Democracia a um propalado nacionalismo modernizador. Ocorre que a modernização desejada por ele se fazia em detrimento dos Direitos Humanos. Modernização com recurso sistemático a torturas e carta branca para a polícia política de Filinto Müller não dá. Astrojildo Pereira percebeu isso com acuidade à época, valorizando a Democracia entre nós desde os primórdios do movimento dos trabalhadores, nas primeiras décadas do século XX.
O que era o Brasil antes do Brasil? Uma área
do globo terrestre assentada economicamente em um modo de subsistência, com
populações vivendo de forma relativamente descentralizada e sem contato com as
demais áreas do mundo, praticamente, a não ser por levas migratórias
esporádicas provenientes de partes da Ásia e, provavelmente, do Pacífico. Se
formos examinar a formação do próprio Brasil, não é difícil constatar que somos
fruto da chamada globalização: a cana-de-açúcar, originária da Índia, após um
período de aclimatação na Ilha da Madeira, é transplantada para o Nordeste
brasileiro, com força de trabalho africana, em processo comandado pelo capital
comercial em expansão na Europa ocidental. Nas praças europeias, o açúcar
resultante do beneficiamento da cana passaria a ser comercializado. O início da
unificação dos continentes data, pelo menos, do século XVI. A leitura de um
autor clássico da nossa historiografia, como Nelson Werneck Sodré, permite
chegar a essa conclusão. A mudança foi tão radical por aqui que a implantação
do modo de produção escravista, porque baseado na forma de existência social da
força de trabalho escrava, implicou a própria alteração dos produtores, com a
saída de cena dos índios. Mas essa saída não se deu por uma não aceitação da escravização
por parte dos índios, o que equivaleria a dizer que os negros aceitaram essa
escravização... As razões foram outras, naturalmente. Senão vejamos. O Brasil
chega ao ano de 1600 como o maior produtor mundial de açúcar e atinge esse
patamar com considerável força de trabalho dos índios, pelo menos até
1585/1590. De um lado, Angola possuía, basicamente, o mesmo tipo de solo que o
massapê presente no Nordeste brasileiro. De outro, os portos angolanos estavam
mais próximos de Lisboa do que os do Nordeste do Brasil. Além disso, a
população já se encontrava lá. Então, qual o sentido de trazer os negros
escravizados para o Brasil? Por uma razão: o capitalismo nasceu vendendo
homens. E desta forma foi reinventada a escravidão em solo americano. E eram
esses homens escravizados que produziam o açúcar, como depois extraíam o ouro e
os diamantes e plantavam o algodão e o café. Sem a África e seus trabalhadores
não existiria o Brasil tal qual o conhecemos hoje.
VI
Retornando ao ponto de partida. Abandonamos a
noção de "reformas de estrutura" e não levamos a Democracia
aos terrenos social e econômico. Já está mais do que na hora de afastarmos do
nosso caminho os aventureiros, aqueles que não possuem programa ou um mínimo de
propostas sequer. Foi assim que o Brasil avançou nos momentos mais cruciais de
sua História.
O populismo, dito de
"direita" ou de "esquerda" é sempre um
atraso. É, por vezes, o fascismo que não ousa dizer o nome.
A partir dessa ótica, convém dizer ainda que
política não se faz com cabeça étnica – ou seja, trata-se de evitar a
racialização. E a racialização foi o que Hitler propôs, ao defender a ideia da
edificação da nação alemã sob bases raciais, fazendo da "diferença",
ou do arianismo o seu cavalo de batalha. Uma coisa é combater o racismo e lutar
por um lugar ao sol para as chamadas minorias; outra, bem distinta, colocar a
raça no centro das questões sociais. Tudo é parte da luta, mas não há luta à
parte. É preciso cautela, evitando a exacerbação disso, conforme se vê nos
últimos anos no Brasil e em outras áreas do mundo. A universalidade da condição
humana só tem a perder com um posicionamento desse tipo. Pior: a sociedade
desaparece, o denominador comum desaparece, e passa a existir somente o
indivíduo. O atrelamento da política ou da cultura à "pureza"
genética tem endereço certo: nazismo, Ku Klux Klan, por aí. Isso para não
aludir ao fato de a sociedade brasileira ser extraordinariamente mestiçada.
Vamos ao que nos une e não ao que nos desune.
O sonho não acabou, mas necessita de ajustes consideráveis. Como no passado,
temos quadros competentes para recuperar o país. Ou ainda temos. A principal
característica da cultura brasileira, desde pelo menos a Conjuração Mineira,
tem sido seu poder de síntese.
Entre o nacional e o internacional. O erudito
e o popular. O conhecimento teórico e o engajamento. O entrelaçamento entre
contribuições culturais de matizes diversas. E isso se reflete no universo dos
nossos principais intelectuais, artistas, formuladores, articuladores, homens
públicos e administradores em geral.
Assim como se reflete nas lutas sociais
memoráveis do nosso povo, como que consubstanciadas nas epopeias das Missões
Guaranis, do Quilombo dos Palmares, da Conjuração Mineira. Sem esquecer jamais
a Independência de 1822, as lutas pela Abolição, a Proclamação da República, a
criação do Serviço de Proteção aos Índios, a fundação do Partido Comunista, a
Coluna Prestes, a formação da Aliança Nacional Libertadora, a organização da
Força Expedicionária Brasileira, a campanha do Petróleo é Nosso, a Campanha pela
Legalidade, a Frente Ampla, o movimento das Diretas-Já e a Constituição Cidadã
de 1988. A sociedade civil é sempre maior do que o Estado. Quem governava o
Brasil à época de Sepé Tiaraju? Ou de Zumbi dos Palmares? Ou, ainda, de
Tiradentes? De José do Patrocínio? Do Marechal Rondon? De Luiz Carlos Prestes?
Provavelmente teremos alguma dificuldade em
responder. Mas conhecemos todos esses heróis da luta pela nossa liberdade e
transformação social. O povo sabe quem reter em sua memória. Apesar de ter
ocupado um ministério durante a Independência, da qual foi o principal
artífice, José Bonifácio, outro grande brasileiro, foi preso duas vezes e
deportado do país, morrendo no isolamento em 1838.
Finalizando agora. Ninguém tem o monopólio da
verdade, da reflexão ou da honestidade política e/ou cultural. Seria muita
pretensão. O mundo é plural, sempre. A Civilização é fruto da marcha comum da
Humanidade, com o aporte das populações de todos os continentes. Não dá para
imaginar a Europa sem o Cristianismo, religião gestada no Oriente Médio, ou as
Américas sem a colonização moderna, que tanto impacto teve sobre a acumulação
primitiva de capital. De fato, como pensar a civilização humana sem trocas de todo
tipo?
A Humanidade é composta por pessoas de boa vontade, que trabalham, estudam e lutam por seus direitos. No Brasil e no resto do mundo. Como dizia Oscar Niemeyer, precisamos nos dar as mãos. Essa é a minha convicção. Daí este apelo por um entendimento entre os humanistas e democráticos, tendo por base as conquistas da própria Civilização, no que ela tem de melhor e de mais significativo: ou seja, a Justiça Social, a Ética e a Democracia.
*Historiador. Esta Carta reúne as
preocupações que venho expressando, nos últimos tempos, a respeito da crise
estrutural brasileira e suas possíveis saídas. Se aqueles que lerem este texto
acharem por bem, poderão ajudar a divulgá-lo nas redes sociais. Muito obrigado a
todos, desde já.
Posso crer nas boas intenções do autor, mas não consigo acreditar no humanismo que ele tanto exalta. Aí, estou completamente de acordo com David Ehrenfeld, e seu livro "A arrogância do humanismo". Uma boa resenha deste pode ser lida noutro blog, em: https://oracaovalente.blogspot.com/2016/08/a-arrogancia-do-humanismo-de-david.html
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