sábado, 7 de setembro de 2024

Eduardo Affonso - 7 de Setembro

O Globo

‘De hoje em diante, nossas conexões, inclusive por VPN, estão cortadas. Nenhum link nos une mais’, seria o grito de Moraes

Era um sábado como este, há 202 anos. Um exausto Pedro de Alcântara — 24 anos incompletos, em trajes de tropeiro e debilitado por um desarranjo intestinal — ergueu-se nos estribos de uma mula baia gateada e, possivelmente sem forças para gritar ou desembainhar a espada, desabafou diante da pequena comitiva que o acompanhava na subida da Serra do Mar:

— As Cortes portuguesas querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante, nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais.

A cena, bem pouco instagramável, foi mais tarde repaginada. Pedro ganhou um imponente cavalo castanho e figurino à altura; convocou-se a Guarda de Honra para turbinar a plateia e até um carreteiro — afinal, o povo não poderia ficar de fora, ainda que tivesse de se contentar em permanecer à margem, mero espectador.

A Independência seria comemorada em 12 de outubro — dia do aniversário do agora D. Pedro I e de sua aclamação como imperador — e só alguns anos depois migrou, por motivos estratégicos, para 7 de setembro. 

Certas datas são assim mesmo — ganham (ou perdem) relevância com o tempo. O 8 de Janeiro já é celebrado no Distrito Federal como Dia da Defesa da Democracia — lembrando a vandalização da Praça dos Três Poderes por partidários do ex-presidente Bolsonaro, seduzidos pelo canto da sereia de um golpe de Estado. Talvez a efeméride se desloque, no futuro, para 30 de agosto, dia em que o ministro Alexandre de Moraes, no afã de coibir o discurso de ódio, acabou por coibir o discurso — pelo menos dos cerca de 22 milhões de brasileiros que usavam o X para expor suas opiniões, se informar e fazer negócios, não para atentar contra a Constituição.

Os excessos do ministro no seu bom combate ao golpismo e à desinformação levaram-no ao submundo da censura prévia — e, no caminho, toparam com a insolência e os valores bastante questionáveis do bilionário Elon Musk. Ainda que jurem estar do mesmo lado, o da liberdade de expressão, dois bicudos não se beijam — e é possível imaginar o ministro, às margens plácidas do Paranoá, proclamando, monocraticamente:

— As redes sociais querem mesmo afrontar-nos e desobedecem-nos. De hoje em diante, nossas conexões, inclusive por VPN, estão cortadas. Nenhum link nos une mais.

É assim, parcialmente desconectados do mundo e uns dos outros, que chegamos a mais este 7 de Setembro, estando parte do país em pânico com a possibilidade de entrega da Prefeitura de São Paulo (e, mais adiante, do Palácio do Planalto) a um coach acusado de furtos cibernéticos, falsidade ideológica, apropriação indébita eleitoral, lavagem de dinheiro, de colocar em risco a vida de 32 pessoas e de relações com o crime organizado. Esses zelosos cidadãos parecem não se dar conta de que o coach só terá a chance de arrastar milhões de paulistanos a uma aventura ainda mais insana que a do Pico dos Marins porque a opção oferecida pela esquerda é um invasor de terras; pela direita, um político anódino; pelo centro, um apresentador sensacionalista; pelos liberais, alguém que não hesita em se valer de um recurso legal, mas que impede o exercício do contraditório.

Hoje haverá manifestações lideradas, em Brasília, por um presidente democrata e ardente apoiador de ditaduras, e em São Paulo por um protoditador travestido em defensor das liberdades. Tomara que no próximo 7 de Setembro estejamos um pouco mais independentes de certo tipo de político e de certos abusos judiciais.

 

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