sábado, 7 de setembro de 2024

Carlos Alberto Sardenberg - Danos colaterais

O Globo

Decisão deixou 22 milhões de brasileiros sem acesso a uma plataforma em que tinham liberdade para falar o que quisessem

De um colega:

— E agora, sem Twitter, como a gente vai derrubar o técnico? Como criticar as séries? Como falar mal do trânsito e dos políticos?

Piada à parte, a suspensão do X deixou 22 milhões de brasileiros sem acesso a uma plataforma em que tinham liberdade para falar o que quisessem. Verdade que se fala muita bobagem, cretinice, coisas de péssimo gosto. Verdade também que há baixaria da pior espécie. Mas também foi no X que tomei conhecimento de bons artigos, belos argumentos, sacadas divertidas, polêmicas inteligentes. Verdade também que o X aceita manifestações antidemocráticas e foi amplamente usado na tentativa do golpe bolsonarista.

Colocando tudo na balança — pelo menos na minha visão —, tem mais porcaria que coisa boa. Mas e daí? Acontece nas conversas por aí, também em outras plataformas. Dos 22 milhões de usuários do X, quantos seriam criminosos ou “supostos criminosos”? Dito de outra maneira: “quase” 22 milhões de brasileiros inocentes que foram apanhados nessa história. Como chegamos a esse ponto?

No plano imediato, todos sabem a resposta. Alexandre de Moraes suspendeu o X porque o dono, Elon Musk, se recusa a nomear um representante legal no Brasil. Não pode, ponto. Mas tem muita história antes disso que envolve algo essencial. Tempos atrás, publiquei um livrinho intitulado “Neoliberal, não. Liberal”, pela Editora Globo. São ensaios variados, a partir de colunas no jornal. É como me considero: liberal. E, para um liberal, o valor essencial é a liberdade de expressão.

Corolário: não pode haver censura prévia.

Não precisam me dizer que liberdade supõe responsabilidade ao praticá-la. Todo mundo é responsável pelo que diz e pelo que faz. Claro que ninguém pode gritar fogo numa sala de cinema lotada. Mas também não se pode proibir que falem dentro do cinema. Liberdade e democracia supõem riscos, que devem ser controlados.

 

Como? Em princípio, é simples, para um liberal, claro. Se o cidadão comete um crime no discurso ou nos atos, tem de ser punido por isso — para isso existe a Justiça independente. Para apurar, investigar, processar e sentenciar. Isto mesmo: primeiro a liberdade, depois a punição, se o crime for devidamente provado. E a Justiça tem de ser pública, transparente e a tempo. O que inibe o criminoso é a certeza de que será apanhado e punido. Os menores índices de criminalidade ocorrem justamente nos países onde a polícia e a Justiça mais resolvem os crimes.

Portanto o inquérito presidido por Alexandre de Moraes ofende o liberalismo. Não é aceitável que um único juiz investigue e decida, em sigilo, sem dar ciência sequer a seus pares, que certos cidadãos não podem falar nas redes. Sim, ele obteve apoio unânime, na Primeira Turma do STF, à decisão de suspender o X. E foi só. Não colocou na mesa de seus pares outras duas decisões inaceitáveis para um liberal: bloquear as contas da Starlink e ameaçar com multa absurda o brasileiro que tentar acessar o X via VPN.

O principal acionista da Starlink é o mesmo Musk, mas se trata de empresa diferente, para público brasileiro diferente, com outros acionistas que não têm nada a ver com o X. E ameaçar com multa quem tentar acessar o X é coisa de regime arbitrário. O que vai fazer o STF: criar um sistema para vigiar o acesso de todos os brasileiros às redes sociais? Não, o processo de banimento das redes tem de ser aberto, transparente, dando aos alvos, de qualquer lado, o direito de se defender nos foros apropriados. O que não é possível quando tudo ocorre em sigilo.

Musk não é liberal, nem democrata. Como diz a revista The Economist, ele “processa judicialmente aqueles com quem não concorda, proíbe palavras de que não gosta em sua plataforma e é cordial com Vladimir Putin, cujo instrumento preferido de moderação de conteúdo é o Novichok”, um veneno fatal. Cabe processo? Que se processe. Mas ninguém é obrigado a abrir conta no X ou em qualquer outra plataforma.

Sei que há muitas outras questões envolvendo as redes e as big techs. Mas os diversos problemas são usados para justificar a censura prévia, e secreta, daqui a pouco batendo na imprensa.

 

Um comentário:

  1. A plataforma X não foi suspensa no país por seus defeitos ou problemas, mas porque seu único PROPRIETÁRIO se recusa a seguir as LEIS brasileiras!

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