O Globo
Quando o coach encontra a candidatura
antissistema, temos a tempestade perfeita
Coach é, em estado de dicionário, o indivíduo
que conduz os cavalos numa carruagem. Para os que ainda pensam com os próprios
neurônios e se expressam em língua pátria — sem o insight de que é
preciso mentoring para dar um empowerment no reframe do mindset e
entrar no flow —, essa palavra não é mais que o bom e velho
“cocheiro” do tempo dos nossos bisavós. A diferença é que o cocheiro de antes
efetivamente levava as pessoas do ponto onde estavam para o lugar onde queriam
estar — valendo-se, para isso, da exploração de uma criatura irracional na qual
se colocavam antolhos, que entrava na história contra a sua vontade. Já o coach
de agora...
A manipulação da boa-fé alheia remonta à serpente no Paraíso — anterior, portanto, ao surgimento da Humanidade. Passou pelo cavalo de Troia, por Zeus fingindo ser touro e cisne em suas investidas eróticas, por Labão entregando a Jacó a filha mais velha em vez de a mais nova, pela venda de terrenos na Lua, a caça aos marajás, pelo estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, pela cloroquina etc.
Todo dia saem de casa um malandro e um
otário; quando os dois se encontram, nascem um esquema de pirâmide, uma terapia
alternativa, uma dieta milagrosa, um novo culto religioso, a herança milionária
de um príncipe nigeriano, um curso de coaching quântico — ou uma
candidatura antissistema.
“Sistema” é o bicho-papão de quem amadureceu
o suficiente para se convencer da inexistência do monstro embaixo da cama, mas
não o bastante para deixar de enxergá-lo nas instituições e nas relações
sociais. Rabo, chifres e garras estão mal disfarçados nos suspeitos de sempre:
políticos, banqueiros, multinacionais, homens brancos heterossexuais (o tal
sistema patriarcal). Quando o coach encontra a candidatura antissistema, temos
a tempestade perfeita.
Ainda mais se ele for do tipo que vende
técnicas infalíveis para nocautear tubarão (como se sabe,
#somostodossurfistaspernambucanos): basta esmurrar o focinho do bicho — e, se
ele comer sua mão, dê um murro com a outra. (Para saber o que fazer caso ele coma
também a outra mão, adquira o módulo avançado.) O mesmo coach que, graças ao
skill set, adquiriu o dom de detectar falha em turbina de helicóptero (problema
também muito comum no nosso cotidiano), de serenar pilotos em pânico (“Calma,
cara, faz o seu melhor; qualquer coisa eu tô aqui...”) e, com esses
superpoderes, quer entrar para a política — e mudar “o Sistema”.
Sua estratégia era mandar para o espaço
aquele blá-blá-blá de accountability, leadership, mindfulness e actionable
steps e investir na “maior baixaria de todos os tempos”. Desestabilizar os
adversários sem o uso de argumentos — apenas com pejorativos do tipo
“bananinha” e “arregão”. Caracterizar propostas alheias como “palhaçada”.
Questionar a hombridade de uns e a masculinidade de outros. Só não contava com
a astúcia do acaso e explosiva mistura de um sujeito de pavio curto com uma
cadeira ao alcance da mão. Aí a valentia ante a fera fictícia e o sangue-frio
diante da turbina em pane deram lugar à maca, à máscara de oxigênio, à camisola
hospitalar e à pulseirinha verde a denunciar a encenação.
O coach parece fora de combate, e a política
volta a ser aquele lugar dominado pelo “Sistema”, em que promessas infactíveis
sejam renovadas a cada eleição. E a cadeira possa mais que o tubarão.
O primeiro parágrafo foi o suficiente para fechar a conta.
ResponderExcluir😏😏😏
O colunista poderia ter incluído no segundo parágrafo o estelionato eleitoral do segundo mandato de FHC, que teve inflação inferior a 2% em 1998 antes da eleição e 20% em 1999 no primeiro ano do novo mandato, também com gigantesca diferença no dólar e em outras políticas econômicas em cada ano destes. Mas lembrar isto iria contra sua ideologia... Melhor reforçar os velhos preconceitos...
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