O Estado de S. Paulo
Se ninguém enfrentar de verdade a questão da imigração, é provável que o estilo de Trump tenha vindo mesmo para ficar
Trump até pode perder a eleição, mas o populismo de direita veio para ficar
O grande estadista alemão Otto von Bismarck
tem a fama de ter dito que “Deus tem uma providência especial para os tolos, os
bêbados e os EUA”. Ele pode não ter dito isso de fato, mas a frase capta a
sensação que muitos em todo o mundo têm sobre a capacidade contínua dos EUA de
“surpreenderem pelo lado positivo”, nas palavras de um empresário amigo meu.
Mas ainda não está claro se o partido no governo, o Democrata, conseguirá se
beneficiar dessa boa sorte.
A mais recente evidência de sua “providência especial” é que os EUA parecem estar fazendo o impossível: derrubando a inflação rapidamente sem desencadear uma recessão profunda. Alan Blinder, ex-vice-presidente do Federal Reserve (o Banco Central americano), ressalta que, usando definições estritas, os EUA só conseguiram alcançar uma aterrissagem inegavelmente suave uma única vez nos últimos 60 anos.
AVANÇOS. Em comentários recentes, Jerome
Powell, presidente do Fed, praticamente declarou vitória, e ele merece elogios
consideráveis por ter conseguido manter o equilíbrio das políticas em um
período bastante traiçoeiro.
A economia dos EUA tem baixa inflação, baixo
desemprego, um boom no setor de manufatura e domínio de tecnologias do futuro,
como inteligência artificial e edição de genes. Até mesmo a desigualdade, que
disparou durante décadas, diminuiu recentemente. E, no entanto, esses fatores
não estão dando aos democratas a vantagem que se poderia esperar. Na maioria
das pesquisas, Donald Trump continua à frente da vice-presidente Kamala Harris
na questão de quem lidaria melhor com a economia (embora por menos do que ele
liderou o presidente Joe Biden).
Embora Kamala tenha melhorado as perspectivas
desastrosas de Biden, sua posição na corrida, tanto em nível nacional quanto
nos Estados decisivos, está atrás da posição de Hillary Clinton e de Biden
neste momento em suas corridas contra Trump. Se considerarmos que ele pode se
sair melhor do que as pesquisas indicam (o que aconteceu tanto em 2016 quanto
em 2020), a disputa continua sendo uma incógnita.
INSATISFAÇÃO. No final das contas, como já
observei antes, essa eleição não será disputada por questões econômicas. O
lembrete mais recente do clima político no mundo ocidental vem da Alemanha.
Durante muitos anos, mesmo com o aumento do
populismo de direita em outros lugares, ele não se consolidou na Alemanha. Até
o ano passado, o pequeno partido populista de direita, o Alternativa para
Alemanha (AfD), permaneceu marginalizado.
Agora, no entanto, ele parece não ser
pequeno, nem tampouco marginalizado. Ele venceu uma recente eleição estadual
alemã (a primeira de um partido de extrema direita desde a era nazista), ficou
em segundo lugar por muito pouco em outro Estado e está disputando o primeiro
lugar em um terceiro Estado. A AfD se tornou o segundo partido político mais
popular da Alemanha, depois da União Democrata Cristã (CDU), de centro-direita.
Como acontece com muitos partidos populistas
de direita, a ascensão da AfD pode ser creditada em grande parte à política de
imigração. A história é bem conhecida. Enquanto os principais partidos
políticos fizerem vista grossa para a imigração, eles correm o risco de serem
superados pela direita populista.
Na Holanda, Geert Wilders também deixou de
ser um extremista incendiário com o qual poucos se aliariam para se tornar o
principal ator político e principal nome das recentes eleições holandesas.
REAÇÃO. Existem estratégias para diminuir o
apelo da direita populista. Na Dinamarca, os partidos centristas adotaram uma
linha muito dura em relação à imigração e à assimilação – dura o suficiente
para ser criticada por muitos políticos tradicionais. Mas o resultado foi que o
populismo, que cresceu nas eleições passadas, parece estar sob controle.
A imigração nem sempre é a questão principal.
Na Polônia, o partido de centro-direita de Donald Tusk disputou sua eleição no
ano passado falando sobre o futuro da democracia e da filiação do país à União
Europeia – ambas posições populares na Polônia.
Mas, nos EUA, a imigração continua sendo uma
preocupação central. Nas pesquisas do Wall Street Journal deste ano, a
imigração estava perto do topo ou no topo das preocupações dos eleitores, tanto
em nível nacional quanto nos Estados-chave. Kamala conseguiu reduzir de forma
eficaz parte do apelo de Trump no tema, destacando que ele engavetou um projeto
de lei de proteção de fronteira rigoroso, escrito em sua maioria por
republicanos. Mas talvez ela precise fazer mais.
Muitos comentaristas argumentam que o
fenômeno Trump é um acaso, alimentado por sua celebridade e quase um culto de
seguidores. Parte disso é verdade. Mas o populismo de direita não está indo a
lugar algum. Ele está sendo alimentado por uma profunda reação contra a
abertura econômica, política e cultural das últimas décadas – e as elites
urbanas que apoiam essas tendências.
Trump até pode perder a eleição, mas o
populismo de direita veio para ficar
FUTURO. Olhe para além da Europa. Veja países
como Turquia e Índia, onde os líderes se aliaram àqueles que se opõem às elites
liberais e cosmopolitas. Observe o Partido Republicano, que agora não tem mais
lugar para pessoas como George W. Bush, Mitt Romney, Liz Cheney, Paul Ryan e
até mesmo Mitch McConnell – líderes que um dia o definiram. Trump pode vencer.
Mas, mesmo que ele perca, o populismo de direita veio para ficar.
TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Muito bom o artigo.
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