O Globo
É importante que beneficiários não sejam
estigmatizados, criminalizados ou prejudicados
O Banco Central (BC), a pedido do
senador Omar Aziz (PSD-AM),
produziu estudo preliminar sobre o mercado de apostas on-line
e jogos de azar no Brasil que é ouro puro. Técnicos de diferentes áreas da
autoridade monetária analisaram transferências via Pix para empresas do
setor e descobriram volume de R$ 18 bilhões a R$ 21 bilhões depositados a cada
mês por brasileiros pessoas físicas. Identificaram 24 milhões de apostadores, 5
milhões deles beneficiários do Bolsa Família, entre titulares e familiares.
Ativaram, assim, uma onda de desconfiança que o levantamento não foi capaz de
comprovar.
Nas três páginas do estudo, o BC afirma que 17% dos cadastrados no programa oficial de transferência de renda em fins de 2023 apostaram em bets. Somente em agosto, afirma o relatório, enviaram R$ 3 bilhões via Pix a empresas de jogos. Embora o texto não afirme isso, muita gente entendeu que um quinto dos recursos destinados mensalmente pelo governo ao programa tenha ido parar em apostas, em vez de cobrir despesas de subsistência das famílias abaixo da linha da pobreza. Por precipitada, é conclusão equivocada.
Em setembro, o Ministério do Desenvolvimento
Social (MDS) destinou R$ 14,1 bilhões a 20,7 milhões de famílias. O benefício
médio foi de R$ 684,27; 83,5% dos responsáveis pelos lares são mulheres. No
documento endereçado ao senador Aziz, o BC informa a mediana, não a média de
recursos destinados pelos beneficiários do Bolsa Família às bets. Em média (R$
3 bilhões divididos por 5 milhões de pessoas) seriam R$ 600, quase o valor
integral do repasse mensal. Já a mediana foi de R$ 100.
A mediana é uma conta que estabelece uma
espécie de fronteira entre um conjunto de dados. Se o valor de cada aposta for
agrupado numa fila imaginária, a mediana seria o número a dividir a primeira da
segunda metade. O BC calculou em R$ 100 a mediana dos recursos destinados a
apostas por beneficiários do Bolsa Família. Significa que metade dessas pessoas
transferiu até R$ 100; a outra metade, mais que isso.
Até aqui, o BC ainda não é capaz de responder
se o dinheiro destinado às bets saiu, de fato, do valor depositado pelo
programa ou de outra fonte de renda dos beneficiários. Também não dá para
cravar, até aqui, se foram eles mesmos que jogaram ou se seus CPFs foram usados
por criminosos em operações indevidas para lavagem de dinheiro. Não é incomum
ver dados de beneficiários de programas sociais em registros de imóveis,
empresas e até doações eleitorais. Muitas vezes, sem que eles saibam. É
importante que não sejam estigmatizados, criminalizados ou prejudicados por ser
vítimas de vício ou do crime.
A Secretaria Nacional de Renda de Cidadania
(Senarc), responsável pelo Bolsa Família no MDS, solicitou informações
adicionais ao BC. O ministro Wellington Dias respondeu que, a pedido do
presidente Lula, trabalha com as pastas da Fazenda e da Saúde para melhorar as
regras que inibem o uso de dinheiro da área social em jogos. Fernando
Haddad, titular da Fazenda, disse que, em janeiro, quando a
regulamentação do mercado de apostas entrar em vigor, todos os CPFs serão
monitorados. No início de outubro, empresas e sites irregulares sairão do ar. O
governo já acionou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
O BC, no estudo, identificou arrecadação de
recursos para loterias da Caixa e transferências via Pix a empresas de apostas
já registradas (520 CNPJs) e outras 56 que não se identificam com o código de
atividade das bets, mas operam no segmento. Este último grupo recebeu, apenas
em agosto, R$ 20,8 bilhões, mais de dez vezes o valor arrecadado pelas loterias
(R$ 1,9 bi) e quase 70 vezes o volume de Pix das empresas de jogos e apostas
corretamente classificadas (R$ 300 milhões).
Essa meia centena de empresas foi
identificada a partir do cruzamento de informações de nomes-fantasia na
internet com operações típicas de apostas, entre as quais número de transações,
tíquete médio e concentração de transferências em horários específicos,
provavelmente de partidas de futebol. É forma eficiente de monitorar tentativas
de lavagem de dinheiro por meio de um mercado em via de regulamentação.
Operações atípicas podem ser detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf), ligado ao BC, e reportadas à Receita Federal para
investigação.
As conclusões do BC estão em linha com
pesquisas e levantamentos que se multiplicaram nos últimos meses sobre o
mercado das bets. Os apostadores são, predominantemente, homens, jovens, das
classes C,D e E. Costumam jogar novamente parte ou todo o prêmio apurado. Já
perderam dinheiro com apostas; tiraram dinheiro de outras despesas para jogar;
reduziram gastos com lazer, entretenimento, roupas e até serviços essenciais
para apostar. Muitos encaram a aventura como ofício, por acreditarem entender
de futebol; outros como alternativa de investimento financeiro. A epidemia das
bets é mazela gravíssima no Brasil, porque ameaça, de uma vez, saúde
financeira, física, emocional. Não pode ser usada para demonizar política
social, nem os que dela dependem.
Qualquer vício é muito triste!
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