CartaCapital
O debate na TV Cultura me fez lembrar as
“peladas” nos campos de Piratininga, onde as desavenças eram resolvidas no
braço
Nos anos 50 e 60, São Paulo de Piratininga se
transmutava de capital da província para metrópole. Terminou por seguir os
descaminhos da megalópole cosmopolita periférica. Dizem que suas formas –
feias, desconjuntadas, híbridas – são o avesso da urbanidade e do urbanismo.
Os desleixos e mau jeitos da urbe não foram
contemplados nos debates que ora antecedem à escolha do prefeito da cidade. A
cadeirada de José Luiz
Datena em Pablo Marçal apontou
para a replicação das formas feias, desconjuntadas e perversas que nos esperam.
Minha nostalgia paulistana encontra o olhar do menino adolescente, fanático pelo dito esporte bretão. Esse olhar via São Paulo como um imenso campo de futebol, interrompido por impertinentes avenidas e arranha-céus. Jogava-se futebol nas ruas, nos becos, nos terrenos baldios, nos quintais, em todos os cantos. No vale que iria receber a Avenida 23 de Maio, entre a Liberdade e o Paraíso, assistia, nos fins de semana, sentado nos barrancos, a bola dos adultos correr solta. Nos dias úteis, a molecada cabulava aula e se juntava nos terrões que simulavam campos de futebol. Os gazeteiros ora celebravam os gols marcados, ora se estapeavam por conta de faltas controvertidas. Socos e pontapés eram desferidos com lealdade e até mesmo com amizade. Tudo acabava bem, descontadas as fraturas de crânio e de nariz.
Quem jogou bola na várzea de São Paulo não
precisa estudar Durkheim, Max Weber, Hannah Arendt ou Wilhelm Reich para
identificar as gentes que sustentam as tropelias e ignorâncias agressivas do
aventureiro Pablo Marçal. Escrevo gentes para significar um modo de ser, uma
forma de sociabilidade definida a partir de uma rede de relações que enformam
as subjetividades, suas palavras, seus gestos e sestros.
Nos meus tempos, nos campos de Piratininga,
quase sempre as desavenças eram resolvidas no braço. Tiros e facadas, em doses
moderadas. Quando o pau quebrava, os visitantes, minoritários, escapavam para
os caminhões – já preparados para a fuga – com o uniforme de jogo. Os trajes e
os pertences, quando não uma parte da grana do mês, eram abandonados no
vestiário ou local assemelhado. No jogo de volta, os valentões viravam cagões.
Os temerários que aceitavam apitar os jogos
sofriam os espancamentos de praxe, quando não eram expulsos por jogadores do
time local, insatisfeitos com a arbitragem. (Não por acaso, a tigrada
bolsonarista se aventurou a fechar o Congresso e invadir o Supremo Tribunal
Federal). Nos vestiários, preconceitos de toda a ordem corriam à solta. A
rejeição do outro era a bandagem que remediava a sensação de inferioridade dos
peladeiros socialmente desfavorecidos e os impedia de avaliar as verdadeiras
razões de seus percalços e fracassos.
Filósofos, sociólogos e psicanalistas já
arriscaram a pele no desvendamento desse fenômeno psicossocial, o narcisismo
dos ressentidos e fracassados. Figuras como Pablo Marçal surgem de um processo
de formação das personalidades que, em sua espiral de difusão, contamina
camadas inteiras de indivíduos que vivem nas sociedades de massas competitivas.
No livro Immediacy or The Style of Too Late Capitalism, Anna Kornbluh cuida
das variantes ideológicas do imediatismo de massas. Essas variantes incluem os
“opiniáticos virulentos, cultores do carisma, o absolutismo niilista e anarquia
em êxtase. Sua política evita organizações e instituições em favor do
horizontalismo orgânico, levantes aleatórios e autonomia local; seus adeptos
simulam recusar as instâncias do poder enquanto celebram a onipresença do poder
e exibem as rapsódias da imutabilidade da dominação…”
Marçal representa um tipo de indivíduo que
persegue o sucesso, mas só alcança o fracasso
Neste momento de angústias e descalabros
comportamentais é importante sublinhar que o desatinado Marçal foi escolhido
para representar um tipo de indivíduo que persegue obsessivamente o sucesso,
mas só alcança o fracasso. A respeito dessa turma, Umberto Eco tratou dos novos
meios de comunicação – as redes sociais – e o rebaixamento intelectual dos
indivíduos massificados. “Deram voz aos idiotas de aldeia.” Entre tantos
idiotas há que ressaltar o desempenho da matilha de influencers dispostos a
espalhar suas ignorâncias e preconceitos. Idiotas espertalhões.
Cantava o rapper Ice-T, “não odeie o jogador,
odeie o jogo”. É assim que o sistema funciona. A relação entre os meios de
comunicação e a sociedade de massas foi examinada competentemente por muita
gente boa, como Theodor Adorno e Marshall McLuhan. O meio é a mensagem, ensinou
McLuhan, ao tratar da formação das consciências nas sociedades de massas em que
a informação é comandada pelos meios de comunicação. A tradução foi ajustada
para facilitar a compreensão. “A mídia nos afeta completamente. Afeta nossa estrutura
conceitual nas dimensões pessoais, políticas, econômicas, estéticas,
psicológicas, morais, éticas e sociais. Não deixa nenhuma parte intocada,
inalterada. O meio é a mensagem. Qualquer compreensão da mudança social e
cultural é impossível sem um conhecimento da forma como a mídia funciona.”
A partir desse parágrafo, para evitar as
armadilhas do narcisismo, vou socorrer minhas limitações com as sabedorias do
livro de Debora Cook, A Indústria da Cultura Revisitada. Cook argumenta que
Adorno, ao investigar as origens psicossociais do nazismo, concluiu que tanto o
nazismo quanto a indústria cultural trabalham em um nível psicológico profundo,
reforçando o narcisismo que ele alegou ser sintomático nos indivíduos que
habitam os escaninhos do capitalismo avançado. Sem autonomia suficiente do ego,
os narcisistas são virtualmente indefesos contra as técnicas carregadas da
libido da indústria cultural.
Como o historiador Alan Bullock observou em relação ao nazismo, demagogos como Hitler “visavam apelar não para o racional, mas para as faculdades emocionais, aqueles ‘interesses afetivos’, contra os quais (como Freud apontou) estudantes da natureza humana e filósofos há muito reconheceram que os argumentos lógicos eram impotentes. Como esses demagogos, a indústria cultural coloca em jogo não apenas emoções, mas instintos irracionais e muitas vezes autodestrutivos, minando o pensamento racional e o interesse racional. Embora eles não sejam a causa direta do ego fraco dos narcisistas, o nazismo e as mercadorias culturais exploram essa fragilidade e frustram a capacidade de resistir à repressão, ao oferecer satisfações suficientes para aplacar os indivíduos fracos e ressentidos que habitam os desvãos do capitalismo de massas. A teoria dos impulsos de Freud forneceu a Adorno a base para sua teoria da indústria cultural.
Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.
Parabéns pela divulgação !
ResponderExcluirExcelente texto.
👏🏻👏🏻👏🏻
Sim, muito interessante e bem argumentado!
ResponderExcluirConcordo, muito bom mesmo. Retrato fiel do que enxergamos por toda parte.
ResponderExcluirMuito bom,quem sabe,sabe!
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