Folha de S. Paulo
Se uma minoria nas democracias avançadas tem
preferências políticas radicais, por que apenas nos EUA ela já chegou ao poder?
O debate sobre o modelo institucional
americano sofreu inflexão notável nas duas últimas décadas: as instituições
políticas passaram a ser pensadas em chave negativa. Durante muito tempo o
desenho institucional americano emulava, para muitos, o britânico como modelo
ideal. A crítica limitava-se a apontar sua incompletude: o desenho era
exemplar, mas fora insuficientemente implementado no Sul do país.
"Tyranny of the Minority" (2023), de autoria de Levitsky e Ziblatt, é o último exemplo dessa crítica revisionista. Há poucos argumentos que já não estejam discutidos por Robert Dahl no clássico instantâneo "How democratic is the american constitution?", ou Levinson e Balkin, em "Democracy and dysfunction".
Aqui as novidades são duas. A primeira é um
questionamento: se uma minoria (20 a 25% do eleitorado) nas democracias
avançadas tem preferências políticas associadas à direita radical, por que
apenas nos Estados
Unidos ela já chegou ao poder? A resposta: as instituições. A
combinação de regra eleitoral distrital, baixo comparecimento às urnas (pouco
mais de 50%) e partidarismo forte (mais de 90% dos eleitores registrados dos
partidos votam no escolhido em suas primárias) permite que uma minoria
partidária hipermilitante chegue à Presidência.
Esta possibilidade é magnificada pelo colégio
eleitoral permitindo que um candidato minoritário no voto popular seja eleito,
o que já aconteceu cinco vezes, desde 1824. As fontes das distorções são
conhecidas. Escrevi
coluna sobre o tema aqui. A primeira é que o número de delegados em
cada estado é igual a soma do número de deputados na câmara dos representantes
e de senadores, favorecendo estados menores. A segunda é que o candidato
vitorioso nos estados leva todos os delegados (com apenas duas exceções), e não
de forma proporcional.
Outra distorção é que o Congresso
hiper-representa estados menores e rurais. O bicameralismo implica assim em
poder de veto da minoria sobre a maioria. E mais: no Senado, a prática do
filibuster (o obstrutor) implica quórum de 60% para aprovação de leis (e não
50%).
Caso ocorra obstrução, ela só poderá ser
superada por esse quorum hipermajoritário. Por isso, quase mil propostas para
derrubar o colégio eleitoral foram derrotadas embora contassem com a aprovação
de maiorias de cerca de 80% do eleitorado.
Outras supostas disfunções seriam a Suprema
Corte, que estaria atuando como um ponto de veto sobre preferências
majoritárias, e uma Constituição cujas dificuldades de emenda são quase
intransponíveis.
A segunda novidade do livro é o argumento que
certa hegemonia republicana desde Reagan (1981-1989) —quando o controle dos
democratas sobre o Congresso foi rompido— estaria ameaçada pela mudança
sócio-demográfica devido sobretudo à imigração.
O espectro da maioria branca tornar-se
minoria teria produzido a radicalização antidemocrática da qual Trump seria
expressão. Os múltiplos pontos institucionais de veto estariam travando a
mudança. Mas aqui há muito mais em jogo do que os autores examinam.
Democracia americana entre aspas,diga-se.
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