O Globo
Nada do que houve rasga bandeira alguma, a
luta antirracista e a luta feminista continuam vigorosas, necessárias e
promissoras
Doloroso e inevitável. O caso Silvio Almeida precisa ser encarado por mais difícil que seja. É preciso entender alguns pontos incontornáveis: primeiro, a vítima é a mulher que foi assediada — as mulheres— não há relativização possível. Segundo, é difícil falar. Qualquer mulher que, em algum momento, sofreu a mesma violência conhece o peso de levar a público detalhes da história que viveu. Terceiro, nada do que houve rasga bandeira alguma, a luta antirracista e a luta feminista continuam vigorosas, necessárias e promissoras. Por fim, a única reação do governo Lula era demitir o ministro dos Direitos Humanos, dado que recaía sobre ele suspeição de ter ferido direitos humanos.
É trágico que o homem acusado seja o autor de
um livro icônico sobre o racismo estrutural. Mas há também o machismo
estrutural que mesmo homens pretos praticam. É complexo, mas não rasga
bandeiras ditas identitárias, mas que são igualitárias. A carga que recai sobre
o chamado “identitarismo” faz parte do mesmo ataque sofrido no século passado
pelo “feminismo”. Nada há de errado em buscar a igualdade de tratamento, exigir
respeito e entender-se como mulher, pessoa preta ou homoafetiva. Aceitar-se,
buscar seus iguais, lutar por igualdade de tratamento e oportunidades, rejeitar
as palavras e expressões ofensivas, são atitudes que fazem parte da grande luta
da humanidade por civilização. E, portanto, não são bandeiras apenas dos grupos
discriminados, devem ser de todos os que querem construir uma sociedade
democrática, igualitária e justa.
No caso que vivemos agora no Brasil, uma
fratura acontece no meio do grande movimento de pessoas afetadas por longa
desigualdade, os negros e as mulheres. É triste, causa conflito entre grupos,
divide o movimento, mas as bandeiras permanecem porque são amplas,
civilizatórias e não estão encarnadas em pessoa alguma. O enredo não poderia
ser mais cruel. O ministro negro, agora ex-ministro, dos direitos humanos
suspeito de ferir direitos humanos da ministra da igualdade racial, que também
é da comunidade das pessoas pretas. Quando o assédio é praticado por um homem
branco, não atinge todo o grupo de homens brancos. Foi só o presidente da
Caixa. Da mesma forma, o que houve agora deveria se restringir ao comportamento
da pessoa acusada. O risco é reforçar o estigma que tão violentamente pesa
sobre os homens negros.
É preciso esclarecer os fatos, mas não
submeter as pessoas que denunciaram a uma exigência de “materialidade” como se
uma voz, várias vozes, não fossem o suficiente. A mulher, ao longo da história,
enfrentou a descrença ao acusar o assediador homem. O movimento Me Too nasceu
exatamente da necessidade de somar depoimentos de mulheres para que a primeira
que fale não fique sozinha exposta ao processo de destruição da sua
credibilidade. Ao longo da história, mulheres que denunciaram abusos foram
tratadas com descrédito, com desmoralização e ofensas. Muitas viveram a
terrível situação de ter que enfrentar acusações pelas dores que sofreram. O
“ela consentiu”, “por que não falou antes?”, “onde estão as provas?” já foram
lançadas contra muitas mulheres no passado.
Se o presidente Lula acertou ao demitir o
ministro dos Direitos Humanos um dia depois da primeira notícia que saiu no
site Metrópoles, na coluna de Guilherme Amado, é estarrecedor que isso não
tenha sido esclarecido antes. Os rumores que, hoje se sabe, já circulavam no
governo deveriam ter sido objeto de imediata investigação interna.
Esse caso ficará conosco por bastante tempo,
porque é complexo, cheio de matizes e os adversários das duas causas, do
antirracismo e do feminismo, tentarão confundir e se aproveitar. O oportunismo
já deu suas caras nas manifestações de duas mulheres que pertencem a uma
corrente política, Damares Alves e Carla Zambelli, cujo líder sempre exibiu com
orgulho falas racistas ou misóginas. Mas piores são as interpretações de
formadores de opinião que estão se perdendo nos meandros desse labirinto.
O antirracismo e o feminismo seguem juntos
como movimentos poderosos para curar as exclusões que nos vitimam há séculos.
Esse momento exigirá de cada pessoa lucidez para separar o que é fundamental em
casos assim. O primeiro ponto é sempre entender que a vítima é a vítima, para
evitar a repetição dos erros do passado em que a vítima, com o tempo, foi
considerada a pessoa culpada pela violência que sofreu. O Brasil tem um longo
histórico dessa distorção.
A homofobia de Bolsonaro quase nunca é citada,muito estranho!
ResponderExcluir