domingo, 8 de setembro de 2024

Eliane Cantanhêde - Direitos Humanos X Igualdade

O Estado de S. Paulo

Crise atinge alma do governo e foca o direito da vítima de ser simplesmente vítima

Em 2024, as mulheres ainda lutam pelo direito de ser simplesmente vítimas, quando vítimas são, sem serem tratadas como suspeitas, acusadas, rés, jogadas contra a parede e à exposição pública para comprovar (com detalhes sórdidos) como foram abusadas, assediadas, agredidas, estupradas. Ou, pior: por que foram?

Uma pergunta que paira no ar até mesmo para mulheres assassinadas por monstros covardes. Basta!

A esfera policial e jurídica é uma, com seu tempo, as leis, regras, depoimentos, provas. A esfera política e pedagógica é outra, exigindo rapidez e contundência diante de evidências, contextos e relatos consistentes.

O ex-ministro Silvio Almeida passará pelo processo legal, com amplo direito de defesa, mas o presidente Lula não podia esperar.

Como conviver com um ministro – justamente de Direitos Humanos – acusado de assédio sexual – justamente por uma colega ministra?

Um abusador que tem poder e impunidade age durante anos, até que uma das vítimas denuncia e os relatos se acumulam sem deixar dúvidas sobre o autor e os abusos.

João de Deus, o “Bruxo de Abadiânia”, e médicos como Roger Abdelmassih, Giovanni Quintella Bezerra, Nicodemos Júnior Estanislau Morais...

Ponha-se no lugar da vítima: como denunciar um homem tratado como santo? Uma referência nacional em reprodução humana? O seu próprio médico?

Não é fácil apontar um ministro negro, especialista em Direitos Humanos, com currículo acadêmico exemplar, de um governo em que o presidente e seu partido se apoiam em bandeiras contra machismo, racismo, misoginia.

Mancha a foto do terceiro mandato, com 11 mulheres brancas, negras, indígenas, atiça a oposição e reduz a distância entre duas gestões que deveriam ser opostas.

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco teria motivação para denunciar o colega negro e criar uma crise para Lula? Se teve coragem de fazer a queixa, é porque se sentiu na obrigação de fazê-lo, em nome das mulheres, da civilidade e do próprio governo. E já surgem relatos de assédio contra Sílvio Almeida, desde os seus tempos de USP.

Na primeira entrevista depois de levar um tiro do marido, ficar paraplégica e se tornar um ícone na luta contra a violência à mulher, Maria da Penha ouviu do repórter:

“Afinal, o que a senhora fez para merecer esse tiro?” A mulher não conquistou o direito de ser simplesmente vítima...

 

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