Folha de S. Paulo
Habituar-se ao crime é anomalia, senão
mutação nas formas de associação estabelecidas
O fato de 61 candidatos em 44 cidades
do país portarem tornozeleiras eletrônicas e terem mandados de
prisão em aberto é sintoma de uma mutação nas relações sociais em que a
criminalidade passa por novas inflexões de natureza moral. O crime, parece,
começa a ganhar legitimidade. Não só entre nós: nos EUA, vários estados têm
leis que descriminalizam furtos de baixo valor. Em Nova York, o comércio já
tranca vitrines.
Lá, tenta-se evitar a superlotação das
prisões por ladrões de bens considerados essenciais, aqui o fenômeno pertence à
mafialização da vida social. Algo começa a ferir o princípio do Estado liberal,
cujo modelo francês é o "État-gendarme", Estado mínimo, restrito às
funções de Exército, Justiça e polícia, portanto, de manutenção inflexível do
status-quo burguês. A prática sempre velou para que a Justiça visasse com
prioridade as classes subalternas.
A fúria contra quem rouba um simples pão é tipificada no clássico "Os Miseráveis", de Victor Hugo, sobre a perseguição implacável de Jean Valjean pelo inspetor Javert. Desdobra-se na consciência em um ânimo punitivo com visão geralmente toldada para os grandes criminosos, porém, muito aguçada para os menores, que afetam em cheio a vida privada.
Em princípio, não existe um
"État-bandit", mas autoridades sempre compactuaram com criminosos. Às
vezes, em busca de equilíbrio na violência pública, outras, por motivos
escusos. Disso é ilustrativa a história da máfia americana, que registra pactos
secretos com figuras dos Poderes. Ou a da russa, que ajudou a montar a
cleptocracia de Putin, o homem mais rico do mundo, um Don Corleone
de quilate global.
A flexibilização da repressão antifurto nos
EUA contempla o descompasso entre a macroeconomia e a vida concreta, preços
altíssimos. Não é o caso do Brasil, onde em data recente um juiz do Supremo
manteve a pena da mulher que havia furtado um tubo de pasta de dente. Admirador
de Javert, talvez. Mas aqui se trata mesmo da infiltração do crime em todas as
instâncias dos Poderes: ministros suspeitos, bancadas parlamentares
cancerígenas. E segurança interna ameaçada por máfias nacionais, como PCC e
Comando Vermelho.
O Rio é vitrine do descontrole: massacres,
tiroteios diários, drones de guerra. Expropria-se celular, carro, moto (39 por
dia) e o bronze da memória da cidade. Roubam-se desde macacos do Jardim
Botânico até britadeira de operário em construção na rua.
Mafialização é o fenômeno, que contamina
moralmente a cidadania nacional. Não só infiltração no Estado, porém, em estado
nascente, anestesia coletiva para absorção psicossocial e banalização do
delito. De insensibilidade à violência, até a tomada de cargos públicos por
malfeitores. Governabilidade virou álibi para pacto com o crime. A própria
linguagem dos políticos lembra o jargão do submundo.
Toda sociabilidade tem caracterizações
psíquicas inerentes às regulações morais das instituições. Habituar-se ao crime
é anomalia, senão mutação nas formas de associação estabelecidas. Na ausência
de uma política antitética à mafialização pode estar sendo gestado um
Estado-bandido. Daí o sábio temor de Oscar Niemayer: "Hoje eu vejo,
tristemente, que Brasília nunca
deveria ter sido projetada em forma de avião, mas sim de camburão".
O crime é a única atividade organizada no país. E o bandido do colarinho branco perdeu a vergonha de colocar capuz e empunhar arma. Parece até se orgulhar disso.
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