domingo, 1 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Política econômica de Lula volta a perder credibilidade

Folha de S. Paulo

Alta do dólar tem motivo mais amplo que o apontado para intervenção do BC; sem controle de gastos, juros tendem a subir

A nova escalada da cotação do dólar, que atingiu R$ 5,69 na sexta-feira (30) e recuou depois para R$ 5,61 devido à intervenção do Banco Central no mercado, é sintoma de mais um rodada de perda de credibilidade da política econômica.

O BC vendeu US$ 1,5 bilhão à vista, montante anunciado na noite anterior para fazer frente a uma saída pontual de recursos —uma prática que, em momentos assim, nada tem de anormal.

Entretanto, com a insistência da cotação em subir durante a manhã, acabou vendendo mais, o equivalente a US$ 765 milhões em contratos de swap cambial, um tipo de contrato que dá aos compradores proteção ante uma alta da moeda americana.

Não foi apenas o dólar que voltou a assustar. Juros de mercado também dispararam, já incorporando aumento de ao menos 1,5 ponto percentual, para 12% ao ano, da taxa Selic nos próximos meses. Juros de prazos mais longos também continuaram a subir.

A razão de fundo da desconfiança, como sempre, são as contas públicas em descontrole. A economia em ritmo relativamente forte até impulsiona a arrecadação de impostos, mas os gastos públicos crescem ainda mais. Nos últimos 12 meses, a despesa aumentou cerca de 15% acima da inflação, recorde na série histórica.

Como resultado da conduta irresponsável que emana do Planalto e de seu núcleo político, as finanças públicas tiveram em junho novo déficit histórico. Em 12 meses, o rombo ficou em R$ 257,7 bilhões, sem os juros, e R$ 1,128 trilhão (exorbitantes 10,1% do Produto Interno Bruto), incluindo os encargos da dívida.

Apesar da retórica para incautos, nota-se que quem mais beneficiou rentistas nos últimos anos foram administrações petistas.

O resultado é a rápida elevação da dívida, de 4,1 pontos percentuais neste ano, para 78,5% do PIB. Neste ritmo, já não se pode descartar que o endividamento venha a superar os piores momentos da pandemia de Covid-19 até o final do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O governo insiste em buscar mais receitas, mas tem sido rechaçado pelo Congresso. Passa da hora de enfrentar seriamente os gastos. Promessas de controles pontuais, como o pente-fino em programas sociais, não bastarão. Será preciso avançar em medidas estruturais, mas até aqui o Planalto não mostra intento de seguir nessa direção.

O expansionismo fiscal é parte da explicação para o crescimento mais acelerado da economia e da demanda, além do potencial, o que tem elevado a inflação para mais de 4%, em trajetória de distanciamento das metas.

É daí que vem a justificativa, a esta altura correta, para o aumento da Selic, em desalinho ao que se espera no exterior.

O ambiente se torna mais incerto com a perspectiva de troca de comando em um BC que precisa ajustar sua comunicação. A confusão permeia todo o governo, que parece à deriva em meio às tempestades que ajuda a criar.

Drama da cracolândia exige ação multidisciplinar

Folha de S. Paulo

Insistir na ênfase das operações policiais, como fazem governo Tarcísio e prefeitura de Nunes, equivale a enxugar gelo

Quem quer que tente enxugar gelo perceberá, em pouco tempo, a inutilidade da iniciativa: o pano até absorve gotas já formadas, mas não impede que a água continue migrando do estado sólido para o líquido. Algo assim ocorre com a cracolândia, no centro de São Paulo.

A diferença é que o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a prefeitura sob Ricardo Nunes (MDB) parecem não entender que, quando dão ênfase quase exclusiva à abordagem policial, podem até obter alguns resultados, mas não impedem a o ciclo de crime, deterioração urbana e degradação humana.

Faz pouco mais de dois anos que uma megaoperação mirou o tráfico de drogas na praça Princesa Isabel, onde à época se localizava o fluxo de usuários. Houve prisões e apreensões. Os dependentes químicos, por sua vez, espalharam-se pelas ruas adjacentes e outras áreas da capital.

Alguns meses depois, contudo, voltaram a se fixar em um único ponto, desta vez na rua dos Gusmões, entre a avenida Rio Branco e a rua dos Protestantes. É lá que agora estão as deprimentes cenas de consumo de crack a céu aberto, às quais se somam o acúmulo de lixo nas vias e o aumento de furtos e roubos no entorno.

A movimentação, de um lado, revela os limites das ações policiais; dispersões provocadas à força apenas deslocam as pessoas para lá e para cá. De outro lado, ela também mostra o poderio do banditismo na cidade.

Investigações da Polícia Civil detectaram um padrão: o fluxo de usuários fica sempre perto de hotéis clandestinos mantidos por pessoas ligadas à facção Primeiro Comando da Capital (PCC).

Tais hospedarias têm, entre outras, as funções de esconderijo de drogas e ponto de encontro de traficantes. Dezenas delas foram identificadas, lacradas, emparedadas. Mas novas logo surgem, às vezes ao lado das anteriores.

Para piorar, a elaboração de mandados judiciais para agir nesses estabelecimentos é quase inviável, porque eles sempre mudam de endereço e de gerência.

Não que esses esforços sejam inúteis —não são. Deve-se combater o crime organizado com vigor, e o trabalho de inteligência policial é preferível à brutalidade que, infelizmente, costuma-se empregar com mais frequência.

Ocorre que, assim como o pano não evitará o derretimento do gelo, a polícia, sozinha, não resolverá o problema humano e urbano da cracolândia. É imperativo adotar uma ação multidisciplinar, em que a segurança se integre a programas de saúde, moradia e geração de renda —tudo de forma contínua e a longo prazo.

É isto a esquerda brasileira?

O Estado de S. Paulo

Enquanto esquerda ganha terreno no mundo pois se modernizou, no Brasil esquerdistas hostilizam o Ocidente, celebram ditadores e se preocupam mais com pronomes do que com os pobres

Em que pese o pânico moral com a “ascensão da extrema direita”, a esquerda governa em centros decisivos de poder. Na América Latina, com exceção de meia dúzia de países, o mapa é vermelho. Por inércia, velhos quadros populistas dominam. O Chile elegeu um jovem avesso a autoritarismos, mas resolutamente progressista. Na Espanha governam os socialistas; na Alemanha, os social-democratas; nos EUA, os democratas. Após derrotas humilhantes, os trabalhistas britânicos expurgaram seus radicais e varreram as urnas. Na França, as esquerdas reverteram a vitória iminente da direita dura. Seja lá quais forem as vicissitudes desses partidos, o fato é que suas propostas foram suficientemente consistentes com os ideais progressistas de justiça social para cativar os eleitores.

E no Brasil? Nessa semana, enquanto fazia apologias a estatais e reciclava subterfúgios retóricos para contemporizar as atrocidades do companheiro Nicolás Maduro, Lula encontrou tempo para ouvir o hino nacional em linguagem neutra no comício de seu candidato em São Paulo. É isto a esquerda no Brasil? Estatismo em economia, autoritarismo e antiocidentalismo em geopolítica e identitarismo na cultura?

Há poucas coisas mais reacionárias do que a política econômica do PT – uma gororoba nacional-desenvolvimentista saudosa da ditadura Vargas e indistinguível do espírito da ditadura militar. Lula insiste em cozinhar a receita que, no trevoso governo de Dilma Rousseff, precipitou a maior recessão da Nova República, que colheu o País sem o boom das commodities e com as contas públicas sufocadas por gastos mais engessados e ineficientes e por uma trajetória da dívida inflacionária. Na geopolítica, por sua vez, a simpatia lulopetista é com o que há de mais hostil à democracia e aos direitos humanos: China, Rússia, Cuba, Venezuela, os terroristas do Hamas e os aiatolás misóginos e homofóbicos iranianos.

Se o negacionismo econômico e geopolítico da esquerda se manifesta num passadismo decrépito, o negacionismo cultural se manifesta na perseguição frenética de um sonho utópico que para a esmagadora maioria da população é um pesadelo distópico, em que filhos e filhas são criados como “filhes”. Além do lado caricato, há o autoritário: quem não se conforma às agendas das militâncias racialistas, feministas ou LGBT é “racista”, “sexista” ou “homofóbico”, passível de ser cancelado ou criminalizado. Ainda que com métodos irrealistas ou truculentos, a velha esquerda tinha um ideal universal: distribuir o capital às classes trabalhadoras, independentemente de raça, gênero, credo ou orientação sexual. A velha esquerda se preocupava com os pobres; a nova, com pronomes.

O negacionismo é tal que o PT ignora suas próprias pesquisas. Eleitores de classes médias e baixas ouvidos pela sua fundação, a Perseu Abramo, declararam que os principais conflitos na sociedade não são entre ricos e pobres, capital e trabalho (para não falar em homens e mulheres, héteros e LGBTs), mas entre o Estado e seus cidadãos, entre a sociedade e seus governantes. A maioria é favorável a um Estado mais enxuto e amigável à iniciativa privada, valoriza a meritocracia e entende que as crises éticas da sociedade resultam menos de vícios “estruturais” do que de desvios individuais, a serem sanados, antes de tudo, pela família.

E a direita? Ela tem suas próprias patologias. Criaturas e criadores do caos, como Jair Bolsonaro ou Pablo Marçal, sequestraram anseios difusos contra o Estado patrimonialista e paternalista e a favor da família, da igualdade de oportunidades, da livre-iniciativa, do mérito pessoal e da produtividade econômica. Mas as perversões da direita, longe de justificarem as da esquerda, só aumentam sua responsabilidade de saná-las.

Esquerda e direita são os pulmões com os quais respiram as democracias. Quando um deles ou os dois estão doentes, todo o corpo agoniza. Do mesmo modo que precisa de uma direita democrática, o Brasil precisa de uma esquerda responsável, que abandone o receituário ideológico da luta de classes e que aceite o fato de que sem respeito às leis elementares da economia não é possível fazer avançar ações enérgicas em favor do almejado bem-estar coletivo.

O preço de se juntar a Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro se rende ao fenômeno Marçal e dá sinais de que pode abandonar Nunes, apesar dos compromissos partidários – para os quais, como se sabe, o ex-presidente nunca deu a mínima

A folha corrida de Jair Bolsonaro não deixa dúvidas sobre sua relação parasitária com os inúmeros partidos pelos quais passou ao longo de sua carreira política. Hoje, o ex-presidente, que por décadas pulou de legenda em legenda sem ligar a mínima para nenhuma delas, confirma que lealdade e compromissos partidários não são mesmo seu forte. Bobo é quem acreditou que eram.

Assim, não é surpresa que Bolsonaro esteja dando sinais cada vez mais claros de que pode abandonar a qualquer momento o apoio à candidatura à reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB). O fato de que o partido de Bolsonaro, o PL, integra a coligação de Nunes e de que o vice na chapa do prefeito não só é do PL, como foi imposto pelo ex-presidente não parece ser importante a esta altura. Bolsonaro jamais titubeou na hora de lançar seus “aliados” ao mar quando o navio ameaça afundar.

A ameaça, no caso, é a onda do enfant terrible Pablo Marçal, que se diz bolsonarista, mas que, a cada dia, demonstra não depender de Bolsonaro para tomar votos do eleitorado que o ex-presidente julgava cativo. Primeiro, o clã Bolsonaro tentou enxotar Marçal com um peteleco, tratando-o como um oportunista insolente. Não funcionou: Marçal cresceu nas pesquisas, e justamente entre eleitores bolsonaristas. Do alto dessa pilha potencial de votos, o indigitado se sentiu à vontade para demonstrar seu desprezo pelos Bolsonaros, a ponto de xingar de “retardado” e “estúpido” Carlos Bolsonaro, outrora conhecido como o “pitbull da família”. Como um chihuahua, Carlos engoliu o choro, conversou com Marçal para reparar a relação e ainda saiu dizendo que o candidato do PRTB é “muito educado e bacana”. O cheiro da derrota opera milagres.

O cálculo de Bolsonaro parece claro: o ex-presidente não pode ser batido em São Paulo nem pelo candidato apoiado pelo PT nem pelo candidato que ameaça destroná-lo na extrema direita. A capital paulista é vista por Bolsonaro como a joia da eleição em sua guerra particular contra o lulopetismo. Uma vitória aqui ajudaria a robustecer a sensação de que o bolsonarismo está mais forte do que nunca, parte do esforço para criar as condições políticas para tentar reverter sua inelegibilidade. Ademais, a família Bolsonaro tem planos para eleger mais um dos representantes da prole para o Senado em 2026.

Marçal bagunçou o tabuleiro do bolsonarismo. Desde já, mesmo que não ganhe em São Paulo, o aventureiro parece já se preparar para se lançar à Presidência da República, concorrendo abertamente contra o próprio Bolsonaro ou com algum de seus prepostos. A Prefeitura paulistana é pouco para o fanfarrão, e isso, é claro, deixa as hostes bolsonaristas em polvorosa. No entanto, dado que a estratégia de neutralizar Marçal não funcionou, aparentemente Bolsonaro escolheu manter aberta a hipótese, cada vez menos remota, de se humilhar e emprestar seu apoio a esse candidato, deixando Ricardo Nunes na chuva.

É verdade que o atual prefeito nunca foi exatamente um bolsonarista de manual, e hesitou bastante antes de aceitar o apoio do ex-presidente, ciente da enorme rejeição dos paulistanos a Bolsonaro. O reflexo dessa vacilação pôde ser visto no início da campanha de Nunes na TV, em que o ex-presidente aparece por uns poucos segundos, enquanto Guilherme Boulos, candidato do PSOL, dedicou todo o seu programa a uma conversa com o presidente Lula da Silva e a primeira-dama Janja. Isso mostra quem está mais à vontade com seus padrinhos.

Ainda assim, Nunes parece intuir que não pode abrir mão do apoio de Bolsonaro, ainda mais diante da sangria de votos para Marçal. A esta altura, porém, já não é possível dizer se Bolsonaro mais ajuda do que atrapalha, porque, afinal, o ex-presidente está muito mais empenhado em preservar seus interesses pessoais do que em ajudar o prefeito a se eleger. Azar de quem acreditou que Bolsonaro fosse um padrinho confiável. Como bem sabem aqueles que um dia se juntaram a ele e depois foram sumariamente descartados – de Gustavo Bebianno a Sérgio Moro –, a palavra de Bolsonaro não vale nada.

Supremo censor federal

O Estado de S. Paulo

STF arremata pacote de arbitrariedades no caso de Filipe Martins com censura a veículo de imprensa

O festival de abusos antidemocráticos cometidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em nome da democracia não para. Pela caneta, como sempre, de Alexandre de Moraes, a Corte proibiu a Folha de S.Paulo de entrevistar Filipe Martins, ex-assessor de Jair Bolsonaro. Trata-se, obviamente, de censura prévia – mais uma.

O apetite censório do STF é insaciável. Já em 2019, Moraes impôs censura a uma reportagem da revista Crusoé que revelava o codinome do ministro Dias Toffoli nos arquivos da Odebrecht. Recentemente, impôs a remoção de publicações em que a ex-mulher do deputado Arthur Lira acusava ameaças de agressão. Nos dois casos houve recuo, mas nenhuma consternação.

Mais acintosos são os bloqueios de perfis sociais, expedidos de ofício, sem fundamentação e com multas draconianas no âmbito dos intermináveis, elásticos e sigilosos inquéritos sobre fake news e milícias digitais. Ao abrigo deles, por sinal, Moraes censurou críticas de empresas de tecnologia ao Projeto de Lei das Fake News. Nas eleições de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral, sob a presidência de Moraes, censurou previamente um documentário sobre o atentado a Bolsonaro e ordenou remoção de posts que apontavam o apoio de Lula ao ditador nicaraguense Daniel Ortega, entre outros.

Martins, suspeito de ter participado de uma trama de golpe de Estado, foi recentemente solto após seis meses de prisão flagrantemente ilegal. O ordenamento jurídico prevê a prisão preventiva em casos excepcionalíssimos, como garantia da ordem pública e econômica ou riscos à instrução criminal ou à aplicação da lei penal. Nenhum desses requisitos foi comprovado. A prisão foi decretada com base numa notícia imprecisa do portal Metrópoles, segundo a qual Martins teria deixado o Brasil em dezembro. O próprio veículo admitiu o erro.

Martins não precisaria provar sua inocência, mas provou, com documentação exaustiva. A Procuradoria-Geral da República recomendou a soltura em março, mas foi ignorada. Só em agosto Moraes a determinou, mas, ainda assim, com medidas restritivas, também sem fundamento, entre elas a proibição de publicar em redes sociais. Agora, Martins foi proibido de conceder entrevista. A inacreditável justificativa é de que isso violaria uma das medidas cautelares, a de não se comunicar com outros investigados na suposta trama golpista. Acaso Martins mandaria mensagens cifradas para eles?

Martins nem sequer deveria estar sob a jurisdição do STF, já que não tem prerrogativa de foro. Mas o mais estupefaciente é que ele não só não foi condenado por nenhum crime, como nem sequer é acusado: simplesmente não há denúncia.

Em 2019, no mesmo dia em que Moraes determinou a censura da Crusoé, o STF revogou uma decisão que impedia Lula da Silva, à época preso, de conceder entrevista, sob a justificativa de que isso era censura prévia. Lula fora condenado em duas instâncias. Mas para Martins, que nem sequer é réu, vale a lei da mordaça. Ou seja, a Corte não só comete abusos antidemocráticos em nome da defesa da democracia, mas estes abusos são ad hoc, típicos de tribunais de exceção. Às favas a Constituição e as leis. O que vale agora é o que passa pela cabeça de Alexandre de Moraes.

Urgência climática exige ações imediatas

O Globo

Temperatura, nível do mar, secas e enchentes superam previsões. Mas há oportunidade para evitar pior cenário

A Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu na semana passada um alerta mundial sobre a elevação dos mares, atualmente no ritmo mais alto dos últimos três milênios. Entre 1901 e 1971, os oceanos subiram 13 milímetros por ano. De 2014 para cá, a média anual foi de 48 milímetros. As áreas costeiras suscetíveis à subida do nível do mar respondem por 14% do PIB global e concentram parte considerável da infraestrutura e da herança cultural do planeta. “Em todo o mundo, cerca de 1 bilhão de pessoas vivem em zonas costeiras ameaçadas pela expansão dos nossos oceanos. No entanto, embora alguma subida do nível do mar seja inevitável, sua escala, ritmo e impacto não são. Isso depende de nossas decisões”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres.

Duas cidades brasileiras são citadas como exemplo no relatório “Mares em elevação num mundo em aquecimento”, publicado pela ONU com as projeções mais recentes para a alta no nível do mar: Rio e São João da Barra, no Litoral Norte Fluminense. Entre 1990 e 2020, o mar subiu 13 centímetros em ambas. Mantidos os níveis atuais de emissão de gases de efeito estufa, Rio e Atafona, distrito de São João da Barra, registrarão avanço de mais 16 centímetros até 2050. O aumento é preocupante não apenas por afetar as áreas litorâneas, mas porque também amplia o perigo de tempestades, marés e ondas. Tais riscos comprovam a urgência de reduzir a emissão dos gases e, ao mesmo tempo, tomar medidas para mitigar as consequências do aquecimento do planeta.

Por anos, relatórios científicos sobre os riscos associados às mudanças no clima davam a impressão de ser exercícios teóricos, quase abstração. Mas apenas as tragédias que vivemos em 2024 até o momento já bastam para lhes conferir realidade concreta. Os gaúchos ainda se recuperam da enchente devastadora de maio. Nas regiões Centro-Oeste, Norte e Sudeste, populações são castigadas pela seca e pelo fogo avassalador. A destruição e o sofrimento demonstram o poder nefasto das mudanças climáticas.

Em manifesto divulgado na semana passada, mais de 50 expoentes dos setores produtivo e financeiro afirmam que a catástrofe no Rio Grande do Sul e o recorde de focos de incêndio no Pantanal exigem a união de esforços. O documento lembra que existem respostas capazes de resolver os problemas. A sucessão de eventos climáticos extremos e a complexidade de criar uma cooperação internacional dão a impressão equivocada de que o caos global é inexorável. Não é. O manifesto ressalta a oportunidade diante do Brasil. Se o país firmar um pacto interno em prol da natureza, impulsionará seu papel no cenário global e poderá catapultar sua liderança rumo a um futuro sustentável econômica e ambientalmente.

Os signatários do documento defendem a colaboração do setor privado com o Executivo para combater o desmatamento ilegal e recuperar áreas degradadas das florestas. Recomendam a participação do Legislativo na criação de leis para disciplinar o licenciamento ambiental e proteger os biomas. Também sugerem um Judiciário mais atuante na defesa do meio ambiente. Os empresários e executivos reconhecem ser parte insubstituível desse esforço conjunto. “Não é justo empurrar todo o ônus para o Poder Público. E não é produtivo gastar tempo apontando culpados, caçando bruxas”, afirma o documento. “Entendemos que cabe à iniciativa privada acelerar a adaptação da nossa economia à nova realidade do clima. Seja porque atuais fontes de geração de riqueza no país estão sob risco, seja porque uma mobilização de conformidade ambiental dará acesso a mais recursos e mercados.”

Como insistem em avisar os climatologistas, a hora de agir é agora. Até o final do ano passado, a temperatura média global tinha subido 1,45 °C na comparação com o período pré-industrial. Entre 1970 e 2010, o planeta ficou 0,18 °C mais quente a cada década. De 2014 para cá, a média subiu para 0,26 °C. Mantido o ritmo, em 20 anos a temperatura média atingirá a marca de 2 °C, tornando letra morta o objetivo firmado no Acordo de Paris, de 2015. Nesse cenário, as catástrofes climáticas serão mais e mais devastadoras. A capacidade da Terra de absorver calor e gases de efeito estufa, graças às florestas e aos oceanos, tem sido comprometida, segundo afirma o cientista sueco Johan Rockström, do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático, na Alemanha. O perigo, diz ele, são os pontos de inflexão, aqueles em que o sistema de resfriamento e captura de gases se transforma e passa a contribuir para a emissão de mais gases e para o próprio aquecimento global.

Qual seria esse ponto de não retorno? Rockström reconhece haver diferentes estimativas. Ressalta, porém, que as previsões são cada vez mais preocupantes à medida que os estudos avançam. As temperaturas registradas nos últimos meses no mundo todo têm superado todas as médias e desafiado as previsões mais pessimistas. Rockström defende que a saúde do planeta precisa ser recuperada, para que continue a absorver calor e emissões de carbono.“Não é utopia ou fantasia uma transição rápida para deixarmos os combustíveis fósseis”, afirmou em palestra no TED.

Evitar a distopia climática deve ser a meta da Conferência do Clima (COP30), prevista para Belém no ano que vem. O Brasil, como anfitrião, deveria dar o exemplo e apresentar um plano robusto de descarbonização. É o momento de reforçar a coalizão internacional em defesa do meio ambiente. O Brasil pode e deve assumir o papel de protagonista.

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