domingo, 1 de setembro de 2024

Dorrit Harazim - Rascunhos

O Globo

Ex-presidente, hoje, é um ser acuado por seus delírios e medos e, por isso mesmo, perigoso

‘Um ser que continua a mudar é um ser que continua a viver’, sustentava a escritora Virginia Woolf em suas infatigáveis, doloridas reflexões sobre a identidade e a natureza humana. Todos sabemos como é difícil alimentar a coragem de descartar ideias que vestimos como segundas peles. A própria noção que cada um faz de si se sustenta no frágil conceito de continuidade. Vivemos numa cultura cujos mitos de heroísmo e martírio valorizam consistência a qualquer custo — esquecendo que somos moldados pelo que queremos, e o que queremos é passível de mudanças à medida que vivemos. O aclamado psicanalista britânico Adam Phillips — editor da obra de Freud na coleção Clássicos da Penguin — dedicou um livro inteiro (“Sobre desistir”, 2024) a nossa perene dificuldade em aceitar chamados novos que exigem renúncias. E são renúncias muitas vezes amargas, cantadas em verso e prosa há milênios, em todas as formas de linguagem. Exceto na política.

Kamala Harris não deve ter pensado em “Hamlet”, nem em Virginia Woolf, Kafka ou Adam Phillips, quando aceitou ser inquirida numa primeira entrevista como candidata à Casa Branca na quinta-feira. Ela havia conseguido atravessar três anos e meio como vice-presidente de Joe Biden praticamente sem se expor, abaixo do radar da mídia. Nas poucas vezes em que falou sem teleprompter nem roteiro conhecido, saiu-se mal. Ungida a esperança do Partido Democrata para derrotar Donald Trump no lugar de Biden, nem sequer precisou se submeter à exaustiva temporada de eleições primárias partidárias, quando abundam cascas de banana. Agora, faltam apenas 66 dias para a votação de 5 de novembro, as primeiras cédulas em papel já estão prontas para despacho pelo correio. Passou a ser imperativo Kamala deixar-se testar fora da zona de controle, explicitar suas mudanças de posição e esclarecer como pretende comandar o país.

A entrevista foi conduzida pela veterana Dana Bash, da CNN, e gravada numa tristonha cafeteria de Savannah, Georgia, um dos estados-pêndulos cruciais nesta eleição. Kamala levou a tiracolo seu ainda quase desconhecido companheiro de chapa, Tim Walz, e pareceu encolhida em comparação com sua apresentação solar e contagiante da semana anterior, na convenção em Chicago. Começou mal:

— Qual será seu primeiro ato presidencial, se eleita? — perguntou Bash.

— Bem, há uma variedade de coisas. Deixe-me dizer, antes de mais nada, que uma de minhas principais prioridades é fazer o que for possível para ajudar e fortalecer a classe média — tentou a candidata. 

A jornalista repetiu a pergunta. Kamala novamente evadiu-se com frases como “uma economia de oportunidades”.

Poderia ter sido um desastre irreparável para os 27 minutos seguintes da entrevista. Foi ruim, sim — mais por não ter rendido nenhuma manchete de jornal —, mas nada abissal. Pior para a biografia é prometer de forma tonitruante, como fez Barack Obama, que fecharia a prisão militar de Guantánamo no primeiro dia na Presidência, e não conseguir em oito anos de governo. Ou responder com cinismo estudado, como fez Donald Trump, que seria “ditador no primeiro dia” de seu segundo mandato. Para exterminar os vermes do país. “Mas só no primeiro dia”, esclareceu dias depois à Fox News.

De resto, a entrevista de Kamala seguiu um curso já cunhado na mídia americana como “radicalmente morno, ou normal”. O refrão mais vezes empregado pela vice-presidente foi “meus valores não mudaram”, para tentar explicar o inexplicável. Opositora no passado da extração de gás de xisto pelo método de fracking, de perfurações de grande profundidade, ela hoje afirma ser possível “fazer crescer a próspera economia de energia limpa sem proibir a prática de fracking”, muito cara aos eleitores da Pensilvânia, estado-pêndulo mais cobiçado pelos dois candidatos.

Outras posições progressistas de Kamala no passado precisarão de respostas mais sólidas se ela quiser nocautear Donald Trump no aguardado debate presidencial de 10 de setembro. Em tempos normais, a entrevista dela seria perfeitamente esquecível, enquanto qualquer discurso de campanha do ex-presidente Trump é que deveria causar pânico geral. No de quinta-feira, ele misturou paixão por bacon com moinhos de vento e Al Capone com a próxima guerra nuclear. Dias antes, questionara a identidade racial da adversária e compartilhara repulsiva postagem sugerindo que as carreiras de Kamala Harris e Hillary Clinton deviam muito à prática de sexo oral.

Donald Trump, hoje, é um ser acuado por seus delírios e medos e, por isso mesmo, perigoso. É vítima de suas certezas, esse supremo estreitamento da mente humana. Parece não saber que somos meros rascunhos — rascunhos que continuamente se tomam pela história final.

 

 

 

 

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