O Globo
Ex-presidente, hoje, é um ser acuado por seus
delírios e medos e, por isso mesmo, perigoso
‘Um ser que continua a mudar é um ser que continua a viver’, sustentava a escritora Virginia Woolf em suas infatigáveis, doloridas reflexões sobre a identidade e a natureza humana. Todos sabemos como é difícil alimentar a coragem de descartar ideias que vestimos como segundas peles. A própria noção que cada um faz de si se sustenta no frágil conceito de continuidade. Vivemos numa cultura cujos mitos de heroísmo e martírio valorizam consistência a qualquer custo — esquecendo que somos moldados pelo que queremos, e o que queremos é passível de mudanças à medida que vivemos. O aclamado psicanalista britânico Adam Phillips — editor da obra de Freud na coleção Clássicos da Penguin — dedicou um livro inteiro (“Sobre desistir”, 2024) a nossa perene dificuldade em aceitar chamados novos que exigem renúncias. E são renúncias muitas vezes amargas, cantadas em verso e prosa há milênios, em todas as formas de linguagem. Exceto na política.
Kamala Harris não
deve ter pensado em “Hamlet”, nem em Virginia Woolf, Kafka ou Adam Phillips,
quando aceitou ser inquirida numa primeira entrevista como candidata à Casa
Branca na quinta-feira. Ela havia conseguido atravessar três anos e meio como
vice-presidente de Joe Biden praticamente
sem se expor, abaixo do radar da mídia. Nas poucas vezes em que falou sem
teleprompter nem roteiro conhecido, saiu-se mal. Ungida a esperança do Partido
Democrata para derrotar Donald Trump no
lugar de Biden, nem sequer precisou se submeter à exaustiva temporada de
eleições primárias partidárias, quando abundam cascas de banana. Agora, faltam
apenas 66 dias para a votação de 5 de novembro, as primeiras cédulas em papel
já estão prontas para despacho pelo correio. Passou a ser imperativo Kamala
deixar-se testar fora da zona de controle, explicitar suas mudanças de posição
e esclarecer como pretende comandar o país.
A entrevista foi conduzida pela veterana Dana
Bash, da CNN,
e gravada numa tristonha cafeteria de Savannah, Georgia, um dos
estados-pêndulos cruciais nesta eleição. Kamala levou a tiracolo seu ainda
quase desconhecido companheiro de chapa, Tim Walz, e pareceu encolhida em
comparação com sua apresentação solar e contagiante da semana anterior, na
convenção em Chicago.
Começou mal:
— Qual será seu primeiro ato presidencial, se
eleita? — perguntou Bash.
— Bem, há uma variedade de coisas. Deixe-me
dizer, antes de mais nada, que uma de minhas principais prioridades é fazer o
que for possível para ajudar e fortalecer a classe média — tentou a candidata.
A jornalista repetiu a pergunta. Kamala
novamente evadiu-se com frases como “uma economia de oportunidades”.
Poderia ter sido um desastre irreparável para
os 27 minutos seguintes da entrevista. Foi ruim, sim — mais por não ter rendido
nenhuma manchete de jornal —, mas nada abissal. Pior para a biografia é
prometer de forma tonitruante, como fez Barack Obama, que fecharia a prisão
militar de Guantánamo no primeiro dia na Presidência, e não conseguir em oito
anos de governo. Ou responder com cinismo estudado, como fez Donald Trump, que
seria “ditador no primeiro dia” de seu segundo mandato. Para exterminar os vermes
do país. “Mas só no primeiro dia”, esclareceu dias depois à Fox News.
De resto, a entrevista de Kamala seguiu um
curso já cunhado na mídia americana como “radicalmente morno, ou normal”. O
refrão mais vezes empregado pela vice-presidente foi “meus valores não
mudaram”, para tentar explicar o inexplicável. Opositora no passado da extração
de gás de xisto pelo método de fracking, de perfurações de grande profundidade,
ela hoje afirma ser possível “fazer crescer a próspera economia de energia
limpa sem proibir a prática de fracking”, muito cara aos eleitores da
Pensilvânia, estado-pêndulo mais cobiçado pelos dois candidatos.
Outras posições progressistas de Kamala no
passado precisarão de respostas mais sólidas se ela quiser nocautear Donald
Trump no aguardado debate presidencial de 10 de setembro. Em tempos normais, a
entrevista dela seria perfeitamente esquecível, enquanto qualquer discurso de
campanha do ex-presidente Trump é que deveria causar pânico geral. No de
quinta-feira, ele misturou paixão por bacon com moinhos de vento e Al Capone
com a próxima guerra nuclear. Dias antes, questionara a identidade racial da
adversária e compartilhara repulsiva postagem sugerindo que as carreiras de
Kamala Harris e Hillary Clinton deviam muito à prática de sexo oral.
Donald Trump, hoje, é um ser acuado por seus
delírios e medos e, por isso mesmo, perigoso. É vítima de suas certezas, esse
supremo estreitamento da mente humana. Parece não saber que somos meros
rascunhos — rascunhos que continuamente se tomam pela história final.
Vou transformar o seu rascunho em arte final...
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