quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Incúria fiscal deteriora cenário econômico futuro

O Globo

Mercado dá sinais de ter perdido a confiança nas promessas de responsabilidade com contas públicas

A ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC), divulgada nesta terça-feira, não poderia ter sido mais explícita ao confirmar a pressão da política fiscal expansionista nos juros. Foi essa uma das razões para o Copom ter elevado a taxa básica, a Selic, em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano, na primeira alta desde agosto de 2022. No mercado, a percepção de que a responsabilidade fiscal é uma incerteza tem contaminado as expectativas.

Um termômetro disso são os juros futuros — indicador que mede a confiança dos agentes financeiros na perspectiva de estabilidade. Eles têm subido, assim como o dólar. Para definir o relaxamento no controle de gastos e o crescimento das despesas fora da meta, ao mesmo tempo que persiste o compromisso declarado do governo com os objetivos traçados pelo novo arcabouço, analistas cunharam a feliz expressão “matemágica fiscal”.

Graças à incúria do governo, o cenário provável para o futuro próximo mistura pressão sobre a inflação, juros mais altos e queda no crescimento econômico. A revisão do Orçamento de 2024 feita no quarto bimestre e anunciada na semana passada reforçou a sensação de descompromisso. Tudo somado, a contenção de despesas caiu de R$ 15 bilhões em julho para R$ 13,3 bilhões. O governo zerou o valor do contingenciamento, alegando maior arrecadação. Levando em conta a crise de credibilidade que atinge a política fiscal, foi uma decisão temerária. Com o crescimento das despesas obrigatórias, o valor dos bloqueios aumentou R$ 2,1 bilhões, mas ficou abaixo da necessidade de corte de R$ 5 bilhões, segundo as expectativas. Ao digerir a revisão, analistas sentiram um gosto amargo.

O presidente do BC, Roberto Campos Neto, afirmou haver exagero na reação do mercado sobre os efeitos da política fiscal. Pode até ser. Mas isso não exime o governo. Não foram duas nem três as intervenções do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em favor de mais gastos. Em declarações públicas, a confusão premeditada entre os conceitos de despesa e investimento é uma constante. Não falta criatividade para tentar driblar as regras fiscais e destinar recursos a programas caros ao governo. A retirada de projetos e programas do cálculo fiscal é tática recorrente. Aconteceu com o Pé-de-Meia no início do ano e voltou a ocorrer com as mudanças previstas em Projeto de Lei para o auxílio-gás. E novamente nas despesas destinadas a combater os incêndios. Não admira que, mesmo mirando o limite inferior da meta fiscal, a equipe econômica não passe confiança sobre suas decisões. Como reconheceu Campos Neto, o mercado parece estar com “dúvidas em relação à transparência dos números fiscais”. Não é para menos.

Respeitar os limites orçamentários é base de toda boa política econômica. As tentativas de escapar dessa realidade acabam, cedo ou tarde, criando problemas. Gastos extras aquecem a demanda artificialmente, forçam o aumento do custo do dinheiro, limitam o crédito, elevam os temores sobre a sustentabilidade da dívida pública, afetam negativamente a taxa de câmbio, jogam os juros futuros para cima e inibem os investimentos necessários para alavancar o crescimento. Prudência e uma meta fiscal mais ambiciosa estão ao alcance do governo. Basta cumprir as promessas de responsabilidade com as contas públicas.

STF deve assegurar com ressalvas direito de recusar tratamento médico

O Globo

Negativa a transfusões pode ser aceitável, mas é preciso resguardar interesses coletivos e de menores

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deverá retomar hoje o julgamento sobre o direito de recusar tratamento médico com base em crenças religiosas ou pessoais. Os casos em julgamento decidirão se dois pacientes cuja religião não permite transfusão de sangue — são testemunhas de Jeová — podem pleitear que o poder público custeie cirurgias e outros tratamentos sem o procedimento. A decisão terá repercussão geral e deverá ser seguida em todo o país.

Os relatores, ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, defenderam que indivíduos devem ter direito a recusar o tratamento com base em crenças religiosas, desde que a decisão seja tomada de modo livre e que tenham sido informados das consequências médicas — em casos extremos, a falta de transfusão em emergências pode acarretar a morte. “Os pacientes devem ter o direito de fazer escolhas de acordo com suas opiniões e valores, independentemente de quanto possam parecer irracionais, imprudentes e ilógicas aos outros”, escreveu Mendes.

Barroso afirmou que, havendo tratamento alternativo à transfusão — como técnicas para reduzir perda de sangue, estimular a produção de células sanguíneas e gerenciar fluidos do corpo —, ele deve ser assegurado pelo Estado. Os ministros Flávio DinoCristiano Zanin e André Mendonça, embora tenham acompanhado os relatores, sugeriram que Barroso incluísse uma ressalva: a recusa só poderia ser manifestada em nome do próprio paciente, mas não em relação a filhos menores de idade. A sugestão foi acatada. Foi a decisão correta. Não faz sentido a saúde de crianças correr risco maior em razão das crenças dos pais.

Isso, porém, não encerra a questão. É certo que, como princípio, cada indivíduo deve ter a liberdade de decidir o que é feito em seu próprio corpo. Mas há situações com impacto coletivo e custo para toda a sociedade. É o caso da recusa a tratamento para doenças contagiosas ou, para usar um exemplo recente de enorme alcance durante a pandemia, a tomar vacina. Nessas situações, em nome da saúde pública, deve prevalecer o interesse comum. O Estado deve dispor de meios razoáveis para coibir tais riscos e não deve acatar qualquer recusa. O melhor guia para avaliar os impactos coletivos é a ciência.

Também é fundamental que, nas situações em que a recusa a tratamento seja permitida, os pacientes tenham sido informados formalmente dos perigos que ela acarreta e isentem a equipe médica pelas consequências de adotar um tratamento alternativo, que não necessariamente é o mais adequado ou mais recomendado cientificamente.

Vários tribunais internacionais já julgaram casos semelhantes aos que o STF enfrenta. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou recentemente a Espanha a indenizar uma paciente submetida a transfusão contra sua vontade. Ao reafirmar os princípios da liberdade religiosa e da autonomia sobre o próprio corpo, ressalvando casos que envolvem interesse coletivo ou de menores, os ministros tomarão uma decisão compatível com o que se espera de uma democracia liberal.

Plano sobre agrotóxicos precisa de ordem e rigor científico

Valor Econômico

A questão dos agrotóxicos é das mais relevantes, por envolver a segurança alimentar da população

Um embate que já dura 25 anos entre ruralistas e ambientalistas em torno da redução do uso de agrotóxicos volta a emergir, e o presidente Lula foi chamado a intermediar a discussão. Lula reclamou recentemente que 80% dos produtos proibidos na Alemanha podem ser vendidos no Brasil, “como se fôssemos uma republiqueta de bananas”. Um relatório divulgado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no fim do ano passado informou que um em cada quatro alimentos de origem vegetal no país apresentou resíduos de agrotóxicos proibidos ou acima do limite permitido. Foram examinadas amostras de amendoim, batata, brócolis, café em pó, laranja, feijão, farinha de mandioca, maracujá, morango, pimentão, quiabo, repolho e farinha de trigo.

Ainda que os defensivos, como os ruralistas o denominam, tenham tido um papel fundamental para a expansão da produção agrícola, o avanço do conhecimento científico revelou os malefícios de seu uso descontrolado, como ocorre no Brasil: chegam a matar seus usuários, causam doenças graves e mutações genéticas, contaminam rios e lençóis freáticos e destroem a natureza.

Uma das primeiras iniciativas para contê-los e discipliná-los surgiu em 2013 no governo de Dilma Rousseff, com o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que tinha como pano de fundo a disputa pela sucessão presidencial de 2014, quando a hoje ministra Marina Silva era candidata. O Planapo buscava incentivar a produção e a distribuição de insumos orgânicos e de base agroecológica, fomentar a conservação, o manejo e o uso sustentável dos recursos naturais, facilitar o acesso do consumidor a informações relacionadas a esses produtos, e ainda incentivar a agricultura familiar.

Fazia parte do Planapo o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), elaborado em 2014, com 153 iniciativas na primeira versão, entre as quais substituir agrotóxicos considerados ultraperigosos, retirar os subsídios a esses produtos e introduzir uma taxação progressiva. Mas ele não chegou a entrar em vigor porque a então ministra da Agricultura, Katia Abreu, era contra.

A oposição a esse tipo de proposta ganhou cada vez mais espaço. Em novembro de 2023, perto do fim do primeiro ano do governo Lula 3, o Congresso aprovou a Lei dos Agrotóxicos - apelidada de PL do Veneno pelos críticos e de PL dos Defensivos pelos seus defensores, entre eles o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que chegou a se licenciar do cargo para reassumir o posto no Senado e votar a favor da lei. A nova legislação, originada do Projeto de Lei 1.459, transformado em Lei 14.785 após 24 anos de tramitação, busca agilizar a aprovação de licenças e de registro de novos defensivos em até dois anos em comparação com os até dez anos então vigentes.

Um dos pontos mais controversos da nova lei é a mudança de responsabilidades entre os órgãos do governo para aprovação dos agrotóxicos. Anteriormente, ela era dividida entre a Agricultura, a Anvisa e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A Agricultura passou a decidir a liberação dos defensivos agrícolas, relegando a Anvisa e o Ibama a segundo plano, de apoio técnico.

O texto segmenta os agrotóxicos em “pesticidas” e “produtos de controle ambiental”, divisão que não existia. Como era previsível, os pesticidas ficaram sob a alçada do Ministério da Agricultura; e os de controle ambiental, com o Ibama, reduzindo o papel do Ministério da Saúde e da Anvisa.

Em agosto passado, PT, Psol e Rede protocolaram, ao lado da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a nova lei. A petição argumenta que a lei “viola princípios constitucionais norteadores da administração pública, como legalidade e eficiência, e direitos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

Mas o principal sinal de que o embate continua é a discussão em torno da tentativa de setores do governo de ressuscitar a dupla Planapo e Pronara, apesar da oposição da Agricultura, dos ruralistas e da indústria de defensivos. O relançamento do Planapo já foi adiado quatro vezes. O Pronara pretende reduzir o uso dos produtos de maior toxidade e risco ao ambiente e ampliar investimentos em bioinsumos.

O presidente Lula recebeu uma carta com críticas ao comportamento da Agricultura e chamou reunião entre as partes. Na versão do governo, o encontro terminou em consenso, e o novo Planapo, com o Pronara, deverá ser publicado em breve. O problema da contaminação por defensivos é sério e é preciso controlá-los com rigor. Legislativo, Judiciário e Executivo fizeram um pacto em prol do ambiente, e é hora de ativá-lo. A questão dos agrotóxicos é das mais relevantes, por envolver a segurança alimentar da população. Há que colocar ordem e rigor científico na algazarra em que se tornou a aprovação a toque de caixa e sem critérios de produtos proibidos nos países desenvolvidos e vendidos sem controle no Brasil.

Diplomacia precisa se concentrar na crise do clima

Folha de S. Paulo

Discurso equilibrado de Lula na ONU indica caminho proveitoso, com menos atenção à ideologia derrotada de Celso Amorim

Quando assumiu o seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) julgou que o mundo continuava a obedecer aos vetores da primeira década do século 21, que permitiram uma fugidia exposição internacional relativamente favorável de países com as características do Brasil.

Com a imodéstia que lhe é peculiar, o chefe do governo brasileiro pôs-se a perambular pelo planeta, ao lado de seu assessor para assuntos ideológicos Celso Amorim, com a firme convicção de que era um iluminado destinado a desfazer os mais graves impasses geopolíticos. Deu com os burros n’água reiteradamente.

Agora, perto de concluir a primeira metade de sua terceira administração, Lula parece ter captado parte das transformações da arena global, ou ao menos se acomodou ao statu quo pela via dolorosa da tentativa e do erro.

Afinal, o líder petista não conseguiu nem sequer afiançar eleições limpas na Venezuela, vizinho do norte, depois de toda a bajulação à ditadura de Nicolás Maduro. Vive às turras também com o vizinho do sul, a Argentina, e nesse caso muito em razão da irascibilidade de Javier Milei.

Quem tem um desempenho sofrível como esse nas linhas fronteiriças não deveria se atrever a resolver conflitos no Oriente Médio e no leste da Europa. Melhor cuidar da casa, que não vai bem.

O discurso de Lula na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas reflete esse ajuste algo sutil, mas perceptível, de ênfase.

A não ser pela omissão do descalabro humanitário e político na Venezuela, a intervenção do presidente brasileiro foi equilibrada quando abordou as guerras e mazelas globais, homenageando a melhor tradição do Itamaraty.

Criticou o terrorismo do Hamas e a reação desproporcional de Israel. Condenou a invasão russa do território ucraniano e recomendou saída diplomática.

Foram preâmbulos para o tema em que o Brasil tem de fato potencial para fazer diferença no jogo internacional, que é o enfrentamento da crise climática e a aceleração da transição para a economia de baixo carbono.

Lula fez bem em não fugir das responsabilidades pelo combate a emergências como os incêndios florestais que agora dizimam porções da fauna e da flora nacionais e empesteiam o ar respirado por dezenas de milhões de cidadãos.

Seu governo tem o que mostrar na redução do desmate amazônico e no combate a atividades degradantes do ambiente como o garimpo ilegal. Já o arremedo de plano de transição energética apresentado em agosto deixa a desejar. Trata-se, na verdade, de um programa de incentivo ao gás natural, um combustível fóssil.

De todo modo, é muito melhor que a diplomacia brasileira e presidencial se concentre no tema da transição verde, classificado corretamente por Lula na ONU de "celeiro de oportunidades".

Do saco de ideias ultrapassadas cultivadas por Amorim e os radicais do PT não vai sair um tostão furado para o futuro do país.

Marçal só oferece arruaça ao eleitor

Folha de S. Paulo

Desnorteado e com alta rejeição em pesquisas, candidato protagoniza outro episódio de violência que avilta pleito em SP

Na disputa pela prefeitura paulistana, Pablo Marçal (PRTB) não ofereceu aos eleitores mais do que habilidades de arruaceiro juvenil. Ao menos enquanto subia nas pesquisas, entretanto, acreditava saber o que estava fazendo.

Em declaração de raro cinismo, no final de agosto, disse que seu comportamento deplorável em debates e sabatinas era necessário para chamar a atenção dos votantes: "No processo eleitoral, me perdoe, você tem de ser um idiota. Infelizmente a nossa mentalidade gosta disso".

Ao que parece, o autointitulado ex-coach não conhece tão bem quanto imagina a índole do eleitorado. Neste setembro, o Datafolha o mostra empacado nas intenções de voto e mais distante dos líderes Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL), enquanto sua taxa de rejeição atinge patamares proibitivos para um hipotético segundo turno.

O revés trouxe à tona um Marçal desnorteado, juntando momentos patéticos às suas habituais demonstrações de boçalidade. Tentou o papel de vítima quando, após uma série de provocações, tomou uma cadeirada de outro candidato dado a bravatas e bate-bocas, José Luiz Datena (PSDB). Não funcionou.

Seria flagrado depois admitindo, em conversa com apoiadores, que armou uma cena ao deixar o embate em uma ambulância, como se estivesse gravemente ferido. Mais ridículo foi comparar o episódio com os atentados sofridos por Jair Bolsonaro (PL) e o americano Donald Trump.

O passo seguinte foi um canhestro ensaio de moderação e humildade. Pediu perdão aos eleitores paulistanos pelo baixo nível da campanha e prometeu mostrar sua versão de "governante" a partir dali. Tampouco se sustentou a contrição fingida de quem gastou toda a campanha com provocações e calúnias dirigidas aos adversários.

Pois na segunda-feira (23) Marçal estava de volta a seu elemento —desta vez, com agravantes.

Sucessivos ataques retóricos a Ricardo Nunes o levaram a ser expulso de um debate promovido pelo grupo de internet Flow, que já caminhava para o encerramento. Ato contínuo, Nahuel Medina, assessor de Marçal, desferiu um soco em Duda Lima, marqueteiro do prefeito emedebista.

Trata-se de mais um episódio a aviltar a maior série de debates já vista num pleito paulistano. A presença do candidato do PRTB, dada a insignificância da sigla, nem se faz obrigatória nos eventos —ela se justifica pelo interesse jornalístico. É apenas deplorável que Marçal use desse modo a chance de se dirigir ao eleitor.

Um santo do pau oco na ONU

O Estado de S. Paulo

Brasil poderia ter legitimidade para influenciar rumos da ordem internacional. Mas sem coerência não há credibilidade. Lula passa lição de moral na ONU sem fazer a lição de casa no Brasil

Pela nona vez, o presidente Lula da Silva subiu à tribuna da Assembleia Geral da ONU para recitar seu papel de cobrador. A lista de queixas tem de tudo: um tratado contra pandemias; menos gastos militares; paz no Oriente Médio, Europa e África; aceleração da descarbonização; menos fome, desigualdade, desemprego e violência; juros amistosos para países pobres; equidade de gênero; e reformas na ONU que garantam mais representatividade às nações em desenvolvimento. Tudo muito razoável e condizente com uma cúpula que se presta mais a ser uma vitrine de aspirações que um fórum de resoluções. Mas, como insistia Henry Kissinger, a capacidade de influência geopolítica de um país depende de uma combinação equilibrada de dois ingredientes: poder e legitimidade. O problema é que Lula não tem nem uma coisa nem outra.

Poder, o Brasil nunca teve. Mas construiu uma reputação diplomática, com princípios constitucionais sólidos materializados pelos quadros técnicos e pragmáticos do Itamaraty. Foi essa credibilidade, por sinal, que conferiu ao País a prerrogativa de inaugurar todos os anos a Assembleia Geral. Munido dela, o Brasil poderia exercer ao menos o poder de persuadir outras nações e mediar seus conflitos. Mas não há credibilidade sem coerência.

Lula se queixou de que “o uso da força, sem amparo no Direito Internacional, está se tornando regra”. Ao mesmo tempo, contudo, engendra com a China um “plano de paz” que premia a Rússia, que violou o direito internacional ao invadir a Ucrânia, um país soberano, e ali comete atrocidades sistemáticas contra civis, como denunciado em corajosa carta aberta subscrita por dezenas de diplomatas latino-americanos, entre os quais os brasileiros Rubens Ricupero e Celso Lafer.

A Rússia, aliás, nem sequer foi nomeada no discurso de Lula, como em geral não são nomeados, nas notas do Itamaraty sob o comando espúrio de Celso Amorim, o Hamas ou o Hezbollah. Quando o Hezbollah, por exemplo, bombardeou um campo de futebol matando várias crianças, o governo lamentou simplesmente “um ataque”, sem autoria. Quando Israel revida, multiplicam-se as recriminações e adjetivos.

Em um discurso anterior, Lula se queixou de que a ONU perdeu “vitalidade”, que seus órgãos carecem de “autoridade” e “meios de implementação”, que sua legitimidade “encolhe a cada vez que aplica duplos padrões ou se omite diante de atrocidades”. Poderia estar falando de si mesmo.

O que a sua diplomacia “ativa e altiva” diz sobre as atrocidades na Venezuela? Lula denuncia a omissão internacional no Haiti, mas recusou diversos pedidos de apoio a uma força de paz. Queixou-se das sanções que penalizam os cidadãos de Cuba, mas não disse meia palavra sobre a ditadura que os penaliza muito mais, há décadas. Queixou-se da negligência com o clima, enquanto subsidia combustíveis fósseis e as florestas brasileiras queimam. Propagandeou o Brasil como “celeiro de oportunidades” e exigiu recursos, mas não cria condições para recebê-los, como o mercado de carbono ou agências regulatórias independentes. Queixou-se da falta de oportunidades às mulheres, mas não foi capaz de indicar nenhuma para a Suprema Corte. Queixou-se da “década perdida” dos países latino-americanos, como se os governos do PT não tivessem nada a ver com isso. De passagem por Nova York, por sinal, Lula aproveitou para pedir às agências de risco que restaurem a nota de crédito do Brasil – enquanto maquina subterfúgios para driblar seu próprio arcabouço fiscal.

Eis a diplomacia “ativa e altiva” de Lula, uma diplomacia ativista, calcada em ressentimentos, incoerências, indignações seletivas e aspirações vazias, e subalterna a potentados autocráticos. Se ao menos fizesse sua lição de casa – nas questões fiscais e ambientais ou nos conflitos latino-americanos –, Lula poderia dar lição de moral. Mas, como disse o jornal esquerdista francês Libération, frustrado com suas ambivalências em relação à agressão à Ucrânia, Lula é um “falso amigo”. Os brasileiros mais solertes já sabem há tempos que ele é um falso estadista.

Quando a foto é boa, mas o filme é ruim

O Estado de S. Paulo

Fazenda se queixa do tom das críticas à política fiscal, mas não se pode condenar quem esteja reticente quando, em meio à necessidade de congelamento de despesas, governo libera recursos

A equipe econômica está incomodada com o tom das críticas sobre a política fiscal do governo Lula da Silva. O secretário executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, disse ver certa irracionalidade nessas análises que, para ele, ignoram a realidade, dado que a meta, segundo ele, será cumprida sem qualquer tipo de criatividade ou artifício. “O fato é que o fiscal se recuperou e tem superado as expectativas”, afirmou, em entrevista sobre o relatório de receitas e despesas do quarto bimestre deste ano.

Parte das respostas que o governo busca, casualmente, está no próprio relatório. Na sexta-feira, todos esperavam que houvesse contenção adicional de despesas, uma vez que os gastos obrigatórios têm crescido em ritmo mais forte do que o esperado e as receitas não têm correspondido às expectativas do Executivo.

O governo até bloqueou R$ 2,1 bilhões, mas, de maneira surpreendente, reverteu o contingenciamento de R$ 3,8 bilhões anunciado em julho e, na prática, conseguiu liberar R$ 1,7 bilhão em gastos. Assim, o esforço para o congelamento de despesas caiu de R$ 15 bilhões para R$ 13,3 bilhões entre o terceiro e o quarto bimestres.

Na sexta-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reclamou da reação intempestiva do mercado e pediu que os analistas aguardassem as explicações sobre o relatório na semana seguinte. Mas a entrevista, como esperado, não trouxe um quadro diferente do que se desenhava.

Para começar, ficou ainda mais claro que o governo mira no piso da meta fiscal, o que já é bastante controverso por si só, já que as bandas superior e inferior da meta fiscal servem para acomodar imprevistos. Embora a meta seja de déficit zero, o limite inferior é de R$ 28,8 bilhões.

O Executivo diz que entregará um déficit de R$ 28,3 bilhões. Mas o governo ainda poderá excluir, do cálculo da meta, R$ 40,5 bilhões em despesas para o enfrentamento das enchentes no Rio Grande do Sul, para o combate a queimadas em boa parte do País e para o pagamento de valores retroativos ao Judiciário e ao Ministério Público.

Se esses gastos fossem contabilizados, o governo teria de congelar outras despesas de mesmo valor. Como não serão, isso significa que poderá registrar um déficit de até R$ 68,8 bilhões e ainda assim dizer que a meta de déficit zero foi cumprida. Somente essa longa explicação já seria motivo suficiente para despertar a desconfiança de analistas sobre a meta. Mas ainda há mais razões para manter reticência.

O governo atendeu à recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU) e reduziu de R$ 37,7 bilhões para R$ 847 milhões a expectativa de arrecadação com a retomada do voto de qualidade nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Era o mínimo, já que a arrecadação efetiva até julho foi de apenas R$ 83,35 milhões, segundo a Corte de Contas.

Tais perdas, no entanto, serão compensadas por receitas extraordinárias, como o pagamento de dividendos por empresas estatais, e pela expectativa de empoçamento do Orçamento. Ou seja, o governo conta com a “bondade” das empresas públicas e com a ineficiência do gasto público para cumprir a meta.

Esse “otimismo” do lado das receitas se contrapõe à dura realidade do lado das despesas. A projeção de economia com a revisão de gastos previdenciários, cuja aposta inicial era de até R$ 10 bilhões, foi reduzida para R$ 9 bilhões e, agora, para R$ 6,8 bilhões.

O vice-presidente Geraldo Alckmin é outro integrante do governo que não compreendeu a reação do mercado. Para ele, houve apenas um “pequeno descontingenciamento” motivado pelo crescimento da arrecadação e do Produto Interno Bruto (PIB), sem ameaçar o arcabouço fiscal.

O que o governo não parece entender é que cumprir a meta fiscal requer medidas duras e estruturais, muito diferentes das que têm sido adotadas. De nada adianta alardear ter cumprido o objetivo se a dívida bruta continuar a avançar na proporção do PIB, dado que a necessidade de estabilizar a trajetória do endividamento foi a razão pela qual a meta fiscal foi criada. Nesse caso, uma boa fotografia não salva um filme ruim.

O risco de ‘clonar’ o IBGE

O Estado de S. Paulo

Crise aberta por Márcio Pochmann com a criação do IBGE+ ameaça a imagem do instituto

O presidente do IBGE, Márcio Pochmann, decidiu “clonar” o instituto criando a Fundação IBGE+, uma entidade de direito privado para, segundo disse em nota, reduzir a “dependência” do instituto do orçamento público, captando recursos extras. Fez isso em julho, mas comunicou aos funcionários dois meses depois, sem entrar em detalhes, pela intranet, e acendeu o estopim de uma grave crise institucional no IBGE.

O objeto da nova instituição, chamada pelos servidores de “IBGE Paralelo”, ainda não está muito claro, tampouco a forma como vai captar dinheiro. Na nota, publicada depois de protestos dos servidores, Pochmann diz que a fundação foi criada “espelhando a conformação” do instituto para receber recursos, “antes impossível” devido à limitação orçamentária. Diz também ter obtido, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a certificação do IBGE como instituto de ciência e tecnologia.

Um dos órgãos subordinados àquele ministério é a Finep, agência pública de financiamento à inovação. Pode estar aí o engenho montado para receber recursos públicos “por fora” do orçamento, o que significaria mais um drible nos limites do arcabouço fiscal. No Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2025, o IBGE receberá R$ 2,9 bilhões, segundo o sindicato nacional dos servidores do instituto, que prepara manifestação de protesto pedindo a destituição de Pochmann.

Antes do anúncio do sindicato, técnicos e gestores das duas principais diretorias do IBGE – Pesquisa e Geociências – já haviam divulgado cartas abertas denunciando a gestão autoritária de Pochmann, como informou reportagem do Estadão. Numa delas, gerentes se mostraram preocupados diante de uma administração autoritária e sem transparência; na outra, os pesquisadores alertaram sobre eventuais mudanças do estatuto do IBGE e incertezas quanto aos objetivos da criação da Fundação IBGE+.

Os servidores reclamam também de questões administrativas, como a mudança do trabalho remoto para híbrido e a transferência de endereços de unidades, mas estas cabem tão somente a negociações internas. À sociedade interessa manter para o IBGE a imagem de credibilidade e confiança à qual o principal centro de produção de dados estatísticos do País sempre fez jus. E as acusações de arbitrariedade, autoritarismo e opacidade no comando do órgão são sérias ameaças à integridade de sua reputação.

Márcio Pochmann enfrentou críticas semelhantes do corpo técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), quando presidiu o órgão durante seis anos, no segundo governo Lula e metade do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Sua gestão foi marcada por um êxodo de pesquisadores que reclamavam de pressões políticas em análises sobre o comportamento macroeconômico, o que fez com que sua indicação para o IBGE, no ano passado, fosse cercada de desconfiança.

Pochmann é um nome intimamente ligado ao lulopetismo e é difícil imaginar que esteja sob ameaça no cargo. Mas vale ressaltar que a confiabilidade do IBGE é mais importante do que o apreço de Lula a qualquer companheiro.

Lula, Oriente Médio e América Latina

Correio Braziliense

É preciso confirmar com ações aquilo que se diz no microfone. É inegociável que o Brasil tenha posicionamentos firmes sempre que preciso, inclusive sobre questões que envolvem a América Latina

O mundo assiste, nos últimos dias, a uma nova escalada de tensão no Oriente Médio. Em dois dias, mais de 500 pessoas morreram, sendo 50 menores de idade, e cerca de 1,8 mil ficaram feridas em bombardeios de aviões israelenses no Líbano. A medida se trata de uma nova ofensiva contra o Hezbollah, movimento xiita que tem ramificação na política interna libanesa e também na geopolítica, sobretudo por meio do seu braço militar. 

Os ataques de Israel são mais uma resposta da nação judaica ao 7 de outubro do ano passado. Para além da ofensiva do Hamas na Faixa de Gaza, aquele dia ficou marcado por bombardeios feitos pelo Hezbollah em territórios próximos à fronteira de Israel com o Líbano. Devendo uma resposta às milhares de famílias que foram evacuadas da região por conta dessas agressões aéreas, Jerusalém contragolpeou nesta última semana.

Dado o contexto, acerta o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando, em seu discurso feito, ontem, na abertura da 79ª Conferência das Nações Unidas, pede, mais uma vez, paz no Oriente Médio. Por um lado, o chefe da União cumpriu com seu papel de líder mundial ao ressaltar sua desaprovação contra a "ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes" em outubro de 2023. 

Por outro, acertou ainda mais ao reprovar a resposta israelense a esses ataques, classificando-a como "punição coletiva de todo o povo palestino" e direito de defesa que se transformou em "direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo".

Vale lembrar que a região sul do Líbano, onde o Hezbollah controla boa parte dos territórios xiitas, está lotada de brasileiros. É verdade que Lula não citou a presença de cidadãos sob sua responsabilidade no discurso da ONU, mas o espaço na conferência é aberto para uma discussão ampla, mais voltada à geopolítica do que aos assuntos de interesse nacional. 

Em 2006, quando outra ofensiva israelense aconteceu no Líbano, o Itamaraty fez um grande esforço para resgatar cerca de 800 brasileiros que viviam nos arredores de Beirute. Lula mostrou ontem, em seu discurso, que o seu governo se colocará novamente à disposição de brasileiros em risco, ainda que não tenha falado diretamente sobre o assunto. 

É bem verdade que o presidente não fez nada além de sua obrigação ao se posicionar contrariamente ao conflito em Beirute. Ainda assim, em momentos como o atual, nos quais as tensões geopolíticas aumentam em diferentes partes do mundo e levam a evitáveis guerras, falar o óbvio traz alguma diferença para o jogo da geopolítica. 

É preciso, agora, confirmar com ações aquilo que se diz no microfone. É inegociável que o Brasil tenha posicionamentos firmes sempre que preciso, inclusive sobre questões que envolvem a América Latina, como a eleição de Nicolás Maduro na Venezuela, alcançada com enormes indícios de fraude. 

Lula não citou os conflitos políticos atualmente em curso na América Latina. Não só ignorou a situação venezuelana, como também não tomou posição sobre a Argentina, que, sob o comando de Javier Millei, tem passado por um processo de ataques à democracia parecido com aquele tão denunciado pelo atual presidente no Brasil. Suas falas sobre o continente americano se limitaram à luta contra a fome e à estagnação econômica regional, ainda que as tensões políticas nos países vizinhos ao nosso tenham repercussões muito maiores para as famílias brasileiras.

 

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