quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

É preciso antecipar monitoramento e fiscalização das bets

O Globo

Inspeção contínua das apostas on-line não pode esperar até janeiro para entrar em vigor

Desde que o Congresso aprovou, no final do ano passado, a legalização das empresas que oferecem apostas on-line (em especial as esportivas), conhecidas como bets, o crescimento do mercado tem sido explosivo. De acordo com uma nota técnica do Banco Central (BC) publicada nesta semana, as transferências de dinheiro às empresas de apostas variaram de R$ 18 bilhões a R$ 21 bilhões por mês neste ano. O BC estima que 24 milhões de brasileiros apostaram no período, tanto em sites de apostas legais — tecnicamente identificadas como “de quota fixa” — quanto nos jogos de azar que permanecem ilegais — como o popular “jogo do tigrinho”. Em agosto, o valor médio apostado flutuou de R$ 100, para os mais jovens, a R$ 3 mil, para os mais velhos.

Desde o início do ano, o Ministério da Fazenda tem baixado diversas portarias destinadas a mitigar os riscos associados à proliferação das apostas, em particular o vício e o endividamento excessivo. Elas estipulam que cabe aos sites fiscalizar o comportamento dos usuários por meio de ferramentas analíticas e de métodos para avaliar o perfil dos apostadores, além de informar desde o cadastro os perigos associados à dependência dos jogos. As regras também impõem restrições à propaganda e às estratégias adotadas para atrair os clientes, protegendo menores e outros grupos vulneráveis. São medidas positivas e necessárias. Ontem algumas empresas anteciparam para outubro a entrada em vigor da proibição ao uso de cartões de crédito nas apostas, antes prevista para janeiro. E o governo pretende antecipar o bloqueio de plataformas que não estiverem registradas oficialmente. Ainda falta, porém, implementar de modo eficaz o monitoramento e a fiscalização constante dos apostadores.

E é isso o que tem gerado problemas. Enquanto persistir essa omissão, as distorções continuarão. O exemplo mais eloquente é a constatação, feita pelos técnicos do BC, de que em agosto ao menos 5 milhões de brasileiros de lares beneficiários do programa Bolsa Família, ou 17% dos cadastrados, enviaram R$ 3 bilhões às bets. Mais da metade apostou mais de R$ 100 — o benefício médio recebido naquele mês foi R$ 681. Trata-se de um desvirtuamento do propósito do programa, destinado a garantir condições de subsistência aos miseráveis — e de mais uma prova da perda de foco daquele que já foi exemplo de política social de sucesso.

Nos países que legalizaram as apostas on-line, tem havido um debate robusto sobre como lidar com seus efeitos negativos. É importante destacar que os apostadores problemáticos representam uma minoria, que pode ser facilmente identificada e monitorada por meio dos mecanismos estabelecidos na regulamentação. Uma vez diagnosticados, os casos de transtornos psíquicos associados ao jogo devem ser objeto de acompanhamento médico. Obviamente, os indivíduos afetados por eles devem ser proibidos de apostar.

Ao mesmo tempo, tem sido inegável o efeito positivo trazido pela arrecadação de impostos com uma atividade que antes permanecia nas sombras. Nos Estados Unidos, estima-se que as empresas de apostas faturem US$ 14,3 bilhões neste ano, com 11% da população usando aplicativos para jogar. Na União Europeia, o faturamento apenas das apostas esportivas é avaliado em US$ 11,7 bilhões. No Reino Unido e na Austrália, US$ 4,5 bilhões.

Diversos países têm adotado restrições à publicidade para tentar coibir o jogo compulsivo. No Brasil, desde o início do ano — antes, portanto, da regulamentação da Fazenda —, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) estabeleceu regras para os anúncios das bets. O Conar tem longo histórico de sucesso na autorregulação publicitária, justamente para defender os consumidores de abusos. Suas regras para a publicidade de apostas revelam sensatez.

Estabelecem que anúncios devem se destinar exclusivamente ao público adulto, sem estímulos ao exagero ou ao jogo irresponsável. Não podem prometer ganhos certos, fáceis ou elevados, nem associar apostas ao sucesso, sugeri-las como alternativa ao emprego ou promovê-las como meio de recuperar valores financeiros. Também devem respeitar os princípios da discriminação clara dos anunciantes responsáveis, identificar-se como destinados ao público adulto e conter cláusulas de advertência sobre os riscos associados às apostas. Desde que essas regras estão em vigor, a esmagadora maioria das reclamações registradas no Conar se refere a conteúdos veiculados pelas plataformas digitais na internet, e não a anúncios nos veículos e meios de comunicação tradicionais.

O fundamental, tanto na regulamentação publicitária quanto na financeira, é com o tempo avaliar os efeitos das regras e, se for o caso, torná-las mais rigorosas para que o mercado possa funcionar dentro de limites aceitáveis em que as apostas sejam uma diversão, e não um vício. Qualquer proposta que vise à proibição pura e simples será irrealista. As bets cresceram fortemente no período em que não eram permitidas. E continuarão crescendo se proibidas, sem regulamentação nenhuma. Não foi à toa que Estados Unidos e países da Europa decidiram permiti-las e regulamentá-las. O que os dados divulgados pelo BC nesta semana demonstram é a necessidade urgente de entrar em vigor a regulamentação que ainda falta. É essencial implementar quanto antes o monitoramento e a fiscalização, para que haja maior garantia de segurança e de saúde no mercado de apostas.

Pacote de US$ 250 bi da China é insuficiente para deter deflação

Valor Econômico

Riscos de deflação exigirão mais estímulos do governo chinês, que reluta em medidas horizontais com medo de novas bolhas serem criadas, ao lado da grave quebradeira do setor imobiliário

O Banco do Povo da China, o BC chinês, lançou um pacote vigoroso de medidas para acelerar a resolução da crise do setor imobiliário e garantir que a economia cresça os 5% estabelecidos como meta pelo governo. Foram ao menos US$ 257 bilhões para ampliar a liquidez da economia, com redução dos compulsórios dos bancos e empréstimos baratos para compra e recompra de ações, além da redução dos juros das hipotecas e da entrada para aquisição do segundo imóvel. Será preciso bem mais que isso, no entanto, porque a China corre o risco maior de mergulhar em um arriscado processo de deflação. Como o Fundo Monetário Internacional advertiu no início do ano, o país enfrenta o seu mais longo período de pressões deflacionárias já registrado. Em rara aparição, o presidente do BC, Pan Gonsheng, mostrou consciência do risco, ao falar das medidas lançadas: “Precisamos promover uma recuperação moderada dos preços”, disse.

O estouro da bolha imobiliária, cujos efeitos estão presentes há quatro anos, mostrou semelhanças com o longo período de estagnação e deflação no Japão e, também com origem no setor imobiliário, com a ameaça deflacionária nos Estados Unidos e na Europa durante a grande crise financeira de 2008. Na época, o governo chinês lançou um conjunto de medidas que, inicialmente, consumiram US$ 586 bilhões. O Federal Reserve americano e o Banco Central Europeu atacaram a espiral de recessão e preços negativos ampliando a liquidez na maior injeção de recursos da história do capitalismo - o balanço do primeiro chegou a US$ 9 trilhões e o do segundo, a € 5 trilhões.

Riscos de deflação exigirão mais estímulos do governo chinês, que reluta em medidas horizontais com medo de novas bolhas serem criadas, ao lado da grave quebradeira do setor imobiliário. Parte do pacote de terça-feira busca resolver a anemia da bolsa chinesa, com US$ 120 bilhões destinados para compra e recompra de ações. O corte de 0,5 ponto nos depósitos compulsórios dos bancos liberará US$ 142,2 bilhões, mas há ceticismo quanto a sua eficácia, pois os consumidores estão retraídos e desconfiados, depois que várias incorporadoras faliram e outras se mantêm como “zumbis”, incapazes de entregar milhões de imóveis comprados e não concluídos.

O BC reduziu uma das principais taxas de juros, a de recompra reversa, de 1,75% para 1,5%. Especificamente para o setor imobiliário, os juros das hipotecas foram cortados em 0,5 ponto percentual e a entrada para a compra do segundo imóvel caiu de 25% para 15%. Até o fim do ano, acenou o BC, as reservas obrigatórias poderão recuar de novo, em 0,25 a 0,5 ponto.

Em torno da crise do setor imobiliário gravitam outros riscos, nos quais ela tem influência. As empresas estão muito alavancadas e devem o equivalente a 122% do PIB do país, de US$ 18 trilhões. A dívida total do setor não financeiro é de 306% do PIB. A dívida pública deve fechar o ano em 91,8% do PIB, pelas estimativas do FMI. Os governos locais, que vendiam terrenos e financiavam construções pelas incorporadoras, viram suas finanças minguar e os ativos recebidos em garantia perder valor. No meio das transações, parte do sistema financeiro também sofreu perigosa desvalorização dos ativos.

Para incentivar a economia, o governo recorreu mais uma vez aos investimentos, provocando superoferta de produtos ao lado do aumento da capacidade ociosa das fábricas, como ocorre no setor automobilístico, de maquinário elétrico, computadores e eletrônicos. Em consequência, os preços aos produtores caem há 22 meses consecutivos e a inflação anual da China, em agosto, foi de 0,6%. O consumo das famílias cresce pouco - depois de evoluírem 10,1% em 2023, as vendas do varejo avançam hoje 2,1% (em 12 meses até agosto). Mesmo com o consumo fraquejando, a China manteve no ano passado uma das maiores taxas de investimento do mundo (42,1% do PIB), aumentando a capacidade da indústria, que tem impulsionado muito as exportações. Barreiras comerciais levantadas em vários países, inclusive no Brasil, mostram o limite do sucesso dessa estratégia.

Para se livrar da crise imobiliária, que põe em xeque o futuro da economia, o governo tem usado medidas que o FMI recomenda que sejam intensificadas. Para as incorporadoras que sejam inviáveis, as empresas de seguro terminam os projetos incompletos ou ressarcem os investidores que pagaram parte ou todo o imóvel. Para as que têm viabilidade, parte da produção seria financiada oficialmente e adquirida como moradia social. Outro instrumento é financiar em melhores condições as empresas que se mantêm saudáveis e liquidar as que não têm saída. Segundo o FMI, metade das incorporadoras tem problema de solvência e pode não sobreviver, e outras 15% têm problemas de liquidez, ou seja, capital de giro, por exemplo, para tocar seus negócios e pagar despesas operacionais.

A China deve atingir sua meta de crescimento de 5% e, se falhar, será por muito pouco. O verdadeiro perigo está na deflação, que exigirá medidas de apoio à economia muito mais amplas, de apoio ao consumidor e à renda das famílias. O pacote mais forte de estímulo agora significa que outros mais vigorosos e necessários podem estar por vir.

Apostas sem controle avançam entre os mais vulneráveis

Folha de S. Paulo

Beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bi com bets em agosto; urge restringir publicidade e elevar tributação

Análise do Banco Central mostra que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em bets pelo Pix em agosto, o que representa 20% do total repassado pelo programa federal naquele mês. No total, os brasileiros transferiram R$ 21,1 bilhões desse modo a apostas online no período.

O montante real é provavelmente maior, pois o BC não considerou pagamentos realizados com cartões de crédito e débito.

O dado é assustador, dado que os beneficiários do Bolsa Família provêm dos estratos mais pobres do país, e os valores direcionados às bets podem agravar ainda mais a vulnerabilidade social dessa população.

Quando se tira da ilegalidade um produto que gera externalidades negativas, a primeira preocupação dos reguladores deve ser a de evitar explosão do consumo. Isso vale para apostas, drogas e outros comportamentos de risco.

Foi justamente o que os reguladores brasileiros não fizeram. O efeito mais notável da legalização foi a invasão dos meios de comunicação por publicidade de bets —e de um tipo particularmente perverso, insinuando que o serviço é um caminho certo para a ascensão econômica.

Na realidade, contudo, ocorre o contrário. Bancas de apostas só conseguem pagar prêmios e auferir lucros porque a esmagadora maioria dos jogadores perde.

Não se trata, por óbvio, de voltar ao statu quo anterior. O fracasso da guerra às drogas mostra que o proibicionismo é uma política pública fracassada. No entanto é possível —e imprescindível— endurecer a regulação.

A providência mais urgente é restringir severamente a publicidade, ação prevista pela Constituição e aplicada há décadas em relação ao tabaco e ao álcool.

A exemplo dos alertas em maços de cigarro, também é possível obrigar as bets a exibir em seus sites e aplicativos uma página introdutória que explique aos apostadores que suas chances reais de ganhar dinheiro ali são ínfimas.

Isso, é claro, sem prejuízo de outras medidas adotadas em diversos países que se mostraram capazes de reduzir o fardo do jogo, tanto em seus aspectos sanitários quanto econômicos.

Não menos importante é a questão dos impostos. As bets são hoje tributadas em só 12% —e os jogadores ainda pagam 15% sobre o valor dos prêmios. É pouco, dadas as consequências negativas da atividade. Seria o caso de rever para cima essas alíquotas.

Há situações em que impostos muito altos empurram o negócio para o mercado ilegal, mas esse não parece ser o caso do jogo.

A operação depende de transferências monetárias eletrônicas sobre as quais o BC tem grande controle —não se pode fazer Pix para o exterior e poucos têm acesso a cartões de crédito internacionais ou bitcoins.

A melhor política, de fato, não é a proibição das bets. Mas o poder público precisa aperfeiçoar a regulação para modular as externalidades, em prol principalmente da população mais vulnerável.

Renda per capita revela um decênio perdido no país

Folha de S. Paulo

Só em 2024 Brasil deve superar o PIB por habitante de 2013; grande parte do atraso resultou do intervencionismo estatal

Para um país de renda média como o Brasil, o normal deveria ser enriquecer ao menos um pouco a cada ano, à medida que se ampliam a infraestrutura e a capacidade de produção de trabalhadores e empresas —com recuos aqui e ali, o que é normal, mas numa tendência clara de progresso.

É triste constatar, pois, que somente neste 2024 o país deve enfim ultrapassar o patamar de Produto Interno Bruto per capita —vale dizer, a renda média por habitante, medida mais comum de bem-estar material em comparações internacionais— registrado em 2013, de acordo com cálculos reportados pela Folha.

Isso ocorrerá caso a atividade econômica tenha expansão de 2,5% ou mais neste ano, o que parece muito provável. Nesse cenário, o PIB per capita chegaria a dezembro acima dos R$ 51,83 mil de 11 anos atrás (em valores corrigidos, na série do pesquisador Claudio Considera, da FGV).

Dito de outra maneira, o Brasil deixa para trás uma decênio inteiro de empobrecimento, retrocesso inconcebível numa sociedade que ainda precisa lidar com uma desigualdade vexatória na distribuição da riqueza.

Pior, grande parte desse atraso no desenvolvimento foi gestado aqui mesmo —mais especificamente, com a recessão devastadora de 2014-16, resultante da tentativa do governo Dilma Rousseff (PT) de impulsionar o PIB por meio de gasto público e intervencionismo estatal.

Com as contas do Tesouro Nacional em frangalhos, prejuízos bilionários nas estatais, inflação, juros e desemprego em alta, a renda per capita havia recuado a R$ 47,49 mil em 2016.

Seguiu-se um período de difíceis reformas econômicas e ajustes orçamentários, durante o qual a expansão da atividade pouco superou a da população. Em 2020, o choque global da pandemia de Covid-19 voltou a derrubar o PIB por habitante, agora para R$ 46,73 mil.

Só a partir daí houve retomada digna de nota, mas ainda assim frágil, porque mais uma vez ampara na escalada insustentável da despesa do governo. O Banco Central já voltou a subir os juros para conter a inflação; cedo ou tarde será preciso frear os gastos.

O nível de renda brasileiro está longe de ser digno de comemoração. No ano passado, ele equivalia a 30% da média dos países ricos, segundo as estimativas do Fundo Monetário Nacional (FMI). Em 2013, eram 36%.

O país não deveria apostar em atalhos ilusórios. É preciso buscar o caminho do crescimento duradouro, ainda que à custa de sacrifícios imediatos.

Transferência de renda às avessas

O Estado de S. Paulo

BC calcula que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família deram R$ 3 bi via Pix para as ‘bets’ em agosto. Trata-se de uma tragédia social que governo e sociedade não podem ignorar

O Banco Central (BC) divulgou uma nota técnica na terça-feira passada que traz um dado ainda mais chocante sobre a presença cada vez mais perniciosa das chamadas “bets” na vida dos brasileiros. De acordo com a autoridade monetária, em agosto, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família – cerca de 20% do total de atendidos pelo programa social – deram R$ 3 bilhões para as plataformas de apostas online apenas por meio de transferências via Pix. Como se vê, trata-se de um eficientíssimo programa de transferência de renda, só que às avessas, ou seja, de gente muito pobre para gente muito rica.

Governo e sociedade estão diante de uma tragédia social de múltiplos desdobramentos para os cidadãos e para o País como um todo. Os danos causados pela jogatina à saúde mental e financeira dos apostadores e suas famílias estão sobejamente demonstrados. E aqui se está tratando do segmento mais vulnerável dos brasileiros, daqueles que dependem diretamente da ação do Estado para ter até o que comer. Parte da renda que deveria, idealmente, ser destinada à compra de meios de subsistência tem sido perdida em decorrência do estímulo a uma esperança vã de ganhos financeiros que, na esmagadora maioria dos casos, jamais se concretizam.

São os mais pobres, por óbvio, os mais suscetíveis a sucumbir à tentação do dinheiro “fácil e rápido”. Para agravar essa tendência, as empresas de apostas online investem rios de dinheiro em campanhas publicitárias das quais, hoje, é praticamente impossível escapar. Todos os dias, os cidadãos são bombardeados por propagandas de “bets” da hora em que acordam até a hora em que vão dormir – e propagandas não raro protagonizadas por personalidades bastante populares que decerto não apostam e, ademais, não perdem o sono preocupadas com a natureza nociva do “produto” que estão vendendo ao público.

Mesmo correndo o risco de ver a análise ser interpretada como uma extrapolação de seu escopo original de trabalho, o BC, em boa hora, destacou na nota técnica que “é razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira”. De fato, os jogos de azar, como as apostas em “bets”, são frequentemente apresentados como uma oportunidade para “mudança de vida” de forma rápida e sem esforço, oferecendo aos apostadores promessas ilusórias de ganho fácil. Para indivíduos que vivem na pobreza – sobretudo na pobreza extrema –, esse apelo é ainda mais sedutor.

Em nome do melhor interesse público, qual seja, o bem-estar geral dos brasileiros, em especial os mais desvalidos, não se pode simplesmente ignorar o grave problema do avanço das “bets” no País sob qualquer pretexto. Muito menos sob a cínica e cruel desculpa veiculada pelos defensores da jogatina segundo a qual a regulação das apostas online geraria uma arrecadação que pode se converter em investimentos em áreas mais nobres da administração pública. Acredita nessa patranha quem quer. Economistas consultados pelo Estadão/Broadcast estimam que o montante a ser arrecadado com a eventual regulação das “bets” em 2025 deve ficar entre R$ 2 bilhões e R$ 10 bilhões – uma ninharia em face de um Orçamento da União que prevê uma receita primária total de R$ 2,7 trilhões.

Não bastasse esse drama social, algumas “bets”, como é notório, têm sido convertidas em usinas de lavagem de dinheiro ilícito no Brasil, sem falar em outros crimes que quase sempre vêm associados à exploração dos jogos de azar, como corrupção, organização criminosa e até crimes de sangue – como a guerra pela ocupação de postos de jogo do bicho e máquinas caça-níqueis. Em um país onde vivem milhões de cidadãos carentes de quase tudo para uma vida digna, definitivamente, não há lugar para a legalização dos jogos de azar, sejam quais forem as suas modalidades.

Vivêssemos em um país mais decente, a esperança dos brasileiros desvalidos por um futuro melhor haveria de vir de um Estado genuinamente preocupado com eles, não de uma armadilha que só fará aprofundar sua miséria.

Banco Central não doura a pílula

O Estado de S. Paulo

Copom classifica política fiscal do governo como expansionista e diz que percepção do mercado sobre gasto e sustentabilidade do arcabouço afeta preço de ativos, expectativas e juros

Se o governo esperava algum sinal de alívio do Banco Central (BC), a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) foi como um balde de água fria. O comunicado divulgado após a reunião realizada na semana passada, na qual os juros foram elevados em 0,25 ponto porcentual (p.p.), para 10,75% ao ano, já não havia deixado espaço para ilusões. Por meio da ata, no entanto, o BC não dourou a pílula e enviou recados ainda mais contundentes.

O principal deles diz respeito à política fiscal, classificada como “expansionista”. A gastança, somada a um mercado de trabalho robusto e à expansão do crédito às famílias, elevou o consumo, a demanda agregada e o dinamismo da atividade econômica, razão pela qual o Copom acredita que o hiato do produto tenha passado para o campo positivo.

Em outras palavras, o governo tem contribuído diretamente para fazer a economia crescer acima de sua capacidade. Crescer sem ter bases para sustentar esse desempenho gera inflação, e inflação, em se tratando de Banco Central, se combate, basicamente, com juros mais elevados.

A ata foi além. Disse, com todas as letras, que a percepção dos agentes do mercado sobre o crescimento do gasto público e a sustentabilidade do arcabouço fiscal tem causado impactos no preço dos ativos e nas expectativas e, por óbvio, sobre a política monetária. Criticar os agentes na esperança de que revejam sua perspectiva, como integrantes do governo têm feito desde a semana passada, quando o relatório de receitas e despesas do quarto bimestre foi divulgado, é inócuo.

“Uma política fiscal crível, embasada em regras previsíveis e transparência em seus resultados, em conjunto com a persecução de estratégias fiscais que sinalizem e reforcem o compromisso com o arcabouço fiscal nos próximos anos são importantes elementos para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de riscos dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”, recomendou o BC.

Para não dizer que foram apenas críticas, o Copom disse que “incorpora em seus cenários uma desaceleração no ritmo de crescimento dos gastos públicos ao longo do tempo”. E o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse haver certo “exagero” por parte do mercado financeiro na precificação dos riscos fiscais. Ao contrário do governo, no entanto, Campos Neto afirmou que não cabe ao BC julgar essa visão, mas somente compreendê-la para saber como reagir a ela.

Na ata, os diretores preferiram não indicar uma sinalização sobre os próximos passos a serem tomados pelo Copom, mas reforçaram o compromisso de fazer a inflação convergir rumo à meta, embora a tarefa esteja “mais desafiadora”. Fato é que as expectativas estão desancoradas, um “fator de desconforto comum a todos os membros do comitê”. E elas continuam a subir.

No mais recente Boletim Focus, a mediana do IPCA subiu de 4,35% para 4,37% em 2024, de 3,95% para 3,97% em 2025 e de 3,61% para 3,62% em 2026. Em todos os cenários, a inflação está acima do centro da meta de 3%, e isso tudo a despeito da elevação dos juros anunciada na semana passada.

Assim, o mercado reforçou as apostas sobre um aumento ainda maior da Selic na próxima reunião, nos dias 5 e 6 de novembro. Pesquisa realizada pelo Projeções Broadcast mostrou que 38 de 46 instituições passaram a esperar uma alta de 0,50 p.p. após a ata – na semana passada, um dia após a reunião, essa era a expectativa de 23 das 41 casas consultadas.

Foi a primeira vez que o Copom elevou os juros desde o início do terceiro mandato de Lula da Silva, mas, desta vez, o presidente manteve silêncio – ao menos até agora. Faz quase um mês que o governo indicou Gabriel Galípolo para o comando do BC, e embora ele ainda não tenha passado pela sabatina no Senado, nada indica que terá dificuldades na tarefa.

Mais difícil será convencer o governo sobre a necessidade de adotar uma política fiscal mais austera e sincronizada com a política monetária, que não pressione a taxa de juros neutra da economia e não aumente o custo da desinflação. De saída, Roberto Campos Neto parece já ter passado o bastão.

O dever da parcimônia

O Estado de S. Paulo

Um ministro do STF que aceita ir a uma festa num iate de um cantor em Mykonos não pensou bem

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques está indignado. No dia 3 de setembro, Marques festejou o aniversário do cantor Gusttavo Lima em um iate na ilha de Mykonos, na Grécia, na companhia dos sócios de Lima na empresa Vai de Bet, o casal André Rocha e Aislla Rocha. À época, estava em andamento a Operação Integration, que investiga lavagem de dinheiro por casas de apostas. No dia da festa, a Justiça determinou a apreensão de um avião que pertencia a outra empresa de Lima, e também a prisão de André e Aislla. A Justiça chegou a decretar a prisão de Lima alegando que ele teria ajudado o casal a fugir – depois, os três foram beneficiados com habeas corpus.

Indagado a respeito pelo jornal Valor, Marques afetou escândalo: “Cobrar de cada um de nós que saiba quem estará num aniversário ou qual dos convidados está sob investigação é surreal”. Tão acostumados estão os juízes com convites extravagantes, que o mero questionamento a respeito deles suscita irritação.

Há uma regra básica que distingue a discricionariedade entre trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos. Em seus ofícios, os primeiros podem fazer tudo o que a lei não proíbe; e os segundos, só o que a lei prevê. Analogamente, um cidadão comum pode participar das festas que quiser. Mas um juiz deve se pautar pela cautela: se não sabe quem estará lá, melhor evitar.

Não se trata de moralismo. Juízes têm direito às alegrias da vida privada. Mas, ao aceitar o serviço à Justiça, aceitam que essa vida seja regulada. A Lei da Magistratura exige uma “conduta irrepreensível na vida pública e particular”. Se nos casos concretos pode haver zonas cinzentas a propósito do que é ou não “irrepreensível”, na dúvida, convém optar pela moderação.

No direito, a forma é tão relevante quanto o conteúdo. As aparências importam. Não basta a um juiz ser imparcial, é preciso parecer. Não por acaso a judicatura é cercada de ritos, símbolos e figurinos – como a senhora vendada, a balança ou a toga preta – que representam a isonomia e a sobriedade necessárias à administração da Justiça.

A imagem do Judiciário vem se degradando na percepção popular, e uma das razões é a falta de compostura. Há muito a sociedade clama por regras que disciplinem o relacionamento dos juízes com advogados, políticos, empresários, parentes ou imprensa; que deem mais transparência às suas agendas; que limitem sua participação em eventos ou remuneração por palestras. Mas a resistência, a começar pelos ministros do STF, em adotar essas e outras regras de ética é suspeita. Como diz a sabedoria popular, quem não deve não teme.

Para preservar a independência dos juízes, a Constituição lhes outorga garantias como vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. São prerrogativas justas e necessárias para que atuem livres de qualquer vínculo ou constrangimento. Juízes têm poderes especiais porque têm deveres especiais. Mas isso significa que têm também responsabilidades especiais: a parcimônia é uma delas.

Violência política é afronta à democracia

Correio Braziliense

Ao contrário do que alguns candidatos defendem, o período eleitoral não é "tempo de guerra", mas de construção de propostas e projetos que elevem a qualidade de vida dos brasileiros

A violência política se tornou uma marca das eleições deste ano. Por decisão unânime, nesta terça-feira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou o envio de militares federais a 12 estados, a fim de garantir a segurança dos eleitores e candidatos no primeiro turno da votação, em 6 de outubro. A medida é tomada em meio a um clima de acirramento da disputa para além do plano das ideias e propostas. 

No primeiro semestre deste ano, foram registrados 187 episódios de agressões e 47 assassinatos de políticos e famílias, motivados pela disputa política, com destaque para Rio de Janeiro, Bahia e Ceará, segundo levantamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ocorrências das últimas semanas indicam que o pleito deste ano tende a ser um dos mais violentos da história. 

A ministra Cármen Lúcia, presidente TSE, cobrou da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e dos presidentes dos tribunais regionais eleitorais (TREs) prioridade e rapidez na investigação, na acusação e no julgamento dos atos que infringem o direito eleitoral. Independentemente dos atos letais, a ministra criticou e qualificou de "cenas abjetas e criminosas, que rebaixam a políticas cenas de pugilato, desrazão e notícias de crimes".

O nível dos debates e das campanhas tem se revelado baixo e agressivo entre concorrentes tanto para o cargo de prefeitos quanto para vereadores. O comportamento dos candidatos reflete o alto nível de violência que foi estimulado nos últimos tempos. Não é disso que os eleitores e a sociedade, de modo geral, necessitam, levando-se em conta os elevados índices de criminalidade que assustam os brasileiros. No universo de 195 países, o Brasil ocupa o 14º lugar, com 21,26 homicídios a cada 100 mil habitantes. 

Ao contrário do que alguns candidatos defendem, o período eleitoral não é "tempo de guerra", mas de construção de propostas e projetos que elevem a qualidade de vida dos brasileiros. Ao longo de quase três meses, os candidatos deveriam aproveitar o tempo para exibir aos eleitores planos de governo, sugestões de leis e de iniciativas compatíveis com os interesses dos que vivem nos municípios e nas capitais. 

Os desafios para prefeitos e vereadores são gigantescos, ante uma sociedade que enfrentou uma pandemia (covid-19) e, hoje, tenta restabelecer o padrão de vida. O Brasil ainda tem taxas extremamente elevadas de desigualdade social e econômica. As bordas das cidades são carentes de investimentos em infraestrutura, saneamento básico, escolas e unidades hospitalares de qualidade, moradias dignas e tantas benfeitorias que elevem o padrão de vida, sobretudo diante das mudanças climáticas que afetam, indiscriminadamente, toda sociedade. 

Nada disso é conquistado com embates, violência verbal e física entre os oponentes a cargos eletivos. Pelo contrário, são atitudes que agridem,  envergonham  e aumentam a descrença popular na política, além de serem descabidas no Estado Democrático de Direito. Pior: as reais necessidades da população tornam-se secundárias para que prevaleçam interesses e ações dissociadas das demandas coletivas. 

Em pleno século 21, o Brasil, maior país da América Latina, não pode enveredar pelo caminho do retrocesso civilizatório, como desejaram alguns  personagens da história recente. Como bem destacou a ministra Cármen Lúcia, "temos que conclamar os partidos políticos para que tomem tenência (...) Eles não podem pactuar com desatinos e cóleras expostas em cenas de vilania e desrespeito aos princípios básicos da convivência democrática".

 

 

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