sábado, 21 de setembro de 2024

Oscar Vilhena Vieira - Regime facultativo de direitos

Folha de S. Paulo

Diversos ministros do STF estão entre os principais responsáveis pela difusão da ideia de que o respeito aos direitos do trabalhador é voluntário

Pablo Marçal tem feito da carteira de trabalho uma arma de sua campanha para Prefeitura de São Paulo. Quando perguntado sobre o fato de algumas de suas empresas não terem nenhum empregado com carteira assinada, respondeu sem cerimônia: "a maior parte é terceirizada, pois a gente mexe com muita tecnologia". Como se a economia digital não estivesse subordinada às regras da Constituição.

A resposta fala não apenas dos princípios do controvertido candidato, ou da falta deles, mas reflete também uma percepção, cada vez mais generalizada, de que o regime dos direitos fundamentais do trabalhador, tal como estabelecido pelo artigo 7º da Constituição Federal, tornou-se facultativo. Respeita quem quiser.

Entre os principais responsáveis pela difusão dessa ideia de que o respeito à Constituição é voluntário, encontram-se, paradoxalmente, diversos ministros do Supremo Tribunal Federal.

O fato é que nos últimos anos temos testemunhado um crescente desacordo entre ministros do Supremo Tribunal Federal e magistrados trabalhistas, em torno de novas formas de contratação de mão de obra. No centro da controvérsia estão questões como terceirização, contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas e, mais recentemente, do trabalho no âmbito da economia digital, além da própria competência da Justiça do Trabalho.

Embora o Supremo Tribunal Federal venha reconhecendo diversas formas de contratação de trabalho, deixou claro na ADPF 324 e no tema de repercussão geral 725 que esses contratos não podem ser utilizados para encobrir fraudulentamente autênticas relações de emprego, em que haja subordinação, pessoalidade, constância e onerosidade.

Na prática, entretanto, inúmeros ministros têm proferido decisões monocráticas, em sede de reclamações constitucionais, afastando da Justiça do Trabalho a tarefa de verificar, a partir dos fatos narrados no processo, a ocorrência de fraudes contratuais.

O próprio ministro Alexandre de Moraes, empenhadíssimo em impedir que as redes sociais e plataformas se transformem em uma terra sem lei, parece confortável que as relações de trabalho no âmbito da economia digital ocorram à margem da Constituição e fora do alcance da Justiça do Trabalho (Reclamação constitucional 59795/MG).

As mudanças tecnológicas e econômicas devem evidentemente vir acompanhadas de reformas que atualizem a legislação trabalhista. Não podemos ignorar que numa economia globalizada e altamente competitiva os modelos institucionais que regulam o mercado de trabalho são relevantes para o desempenho da economia e, consequentemente, para a prosperidade dos trabalhadores.

Não cabe ao Supremo Tribunal Federal, no entanto, promover essas reformas, ainda mais quando suas decisões se encontram em conflito com cláusulas pétreas da própria Constituição.

Ao transformar os direitos fundamentais do trabalhador em um regime facultativo e ao afastar a Justiça do Trabalho de sua missão constitucional, o Supremo estará não apenas premiando o oportunismo dos que desrespeitam a lei, como também colocando em risco uma série de conquistas civilizatórias do trabalhador, indispensáveis à manutenção da coesão social e da própria estabilidade democrática.

 

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