segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto** - Perguntas e conjecturas sobre assédio e subpolítica: Lete...Eris...Poseidon *

Permitam-me tentar falar sobre o que considero haver de política, implicado na situação crítica que envolve, nos últimos dias, o agora ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, a ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, a ONG Me Too Brasil, a primeira-dama Janja da Sllva e o governo federal.

O propósito de falar em política, quando o tema da trama é assédio sexual, justifica-se, como é óbvio, porque o acusado, no momento da acusação e do possível delito, era um ministro, assim como é ministra uma das virtuais acusadoras. Claro (não precisaria dizer, mas no ambiente atual, é preciso) que não subestimo as histórias pessoais, nem as questões de gênero, muito menos o crime, se cometido, ainda mais pelo papel público do seu presumido agente. E também não acho que política é mais importante do que isso, ou aquilo. Só penso que em nome disso ou daquilo não se deve fechar olhos, ouvidos e mentes também para o que ocorre com a política, quando ela se entrelaça com temas tais. Principalmente se passam a ser objeto de uma subpolítica, crente de que “tudo é pequena política”.

Penso que precisamos de um grau minimamente satisfatório de qualidade na política para termos condições de empreender ações em torno de causas sociais, econômicas, culturais ou existenciais, inclusive as da igualdade de gênero e de raça. Uma política que cheira mal atrapalha tudo isso. E nesse caso, o cheiro é de um vale-tudo sufocante, que olfatos ativos e sensíveis não conseguem racionalizar.

Portanto, solidariedade a todas as mulheres vítimas de abusos sexuais ou morais! Rejeição e punição justa e equilibrada a abusos e abusadores! Mas não vejo, por enquanto, como incluir, nesse último rol, a pessoa que está sendo acusada, sem risco de cometer uma arbitrariedade. Pode ser que esse risco de arbitrariedade evapore em poucos dias, ou horas, diante de uma profusão de relatos. Nem por isso serão apagados os efeitos negativos já produzidos, sobre a ética pública, por esse mais novo episódio de linchamento moral.  Posto isso, peço licença para meter uma colher nessa lama, digo, nessa trama. 

O subtema ligado a esse caso que, a meu ver, mais interessa à vida pública brasileira não é a culpa ou a inocência de Silvio Almeida. Como não somos adivinhos, ao seu tempo, uma ou outra emergirá, embora depois dos fatos políticos consumados. Nada a fazer quanto a isso. O realismo mostra que a política tem pressa em tomar decisões quando quer, embora possa adiá-las indefinidamente, quando for o caso. Esse querer ou não querer agir rápido não é, contudo, numa democracia, escolha arbitrária dos políticos. O que decide a velocidade das decisões é a exposição pública do problema e a dramaticidade que ele sugere. Assédio é uma acusação que, vindo a público, traz a urgência consigo. Justamente por isso, os pontos mais merecedores de discussão, a meu ver, são o método incivil (procurei uma palavra branda) que marcou o processo da denúncia e o forte cheiro de armação que dele exala.

Sobre o primeiro ponto, não sei se algum ser vivente seria capaz de "se defender bem" diante da velocidade e do tom inapelável do veredicto instantâneo emitido pelos tribunais morais da mídia em rede, com seus habituais efeitos também instantâneos. Nessas condições, o que se poderia esperar do ex-ministro Silvio Almeida, a não ser resposta improvisada ou confissão compulsória? Atitude olímpica? Racionalidade abstrata?  Qualidade do argumento? Eficácia de contraprovas diante de provas não apresentadas? Mesmo após os relatos, há, ainda, apenas denúncias. Mas como parece ter assinalado, sem meias palavras (digo parece, porque não li), uma jornalista, certamente não uma voz solitária, a que Pedro Dória interpelou no seu preciso e corajoso vídeo de 07.09: o ex-ministro precisaria "provar" sua inocência!!!  A acusação contundente dispensou-se da descrição. Ao acusado cabe adivinhar.

Continuo ancorado no princípio de que acusação, mesmo no plural, não é prova. Pensar que qualquer crime deve, em tese, ser denunciado, é tranquilo. Do mesmo modo, considerar assédio sexual como crime grave. Mas aceitar que alguém possa ser condenado em público antes de haver provas, não é nada tranquilo. E foi isso o que aconteceu. A questão, repito, não é crer, ou não, na inocência do acusado. O que a meu ver deve preocupar democratas é que numa sociedade complexa e plural possa se admitir que haja juízo público unânime (e ainda mais automático, instantâneo) sobre a culpa de alguém e sobre a qualificação do delito. Mais preocupante ainda que se festeje essa hipótese como um sinal de virtude.

Quanto ao segundo ponto, o enredo que se desenrola sob nossos olhos seria considerado estranho, se o método acima mencionado não fizesse gato e sapato da capacidade das pessoas de associar e interpretar fatos trazidos a público, ainda que parcialmente.  Quem insiste, hoje em dia, nessa prática ancestral da inteligência humana corre o risco de parecer que comete delito. O raciocínio chega a parecer simplório, em seu obscurantismo: se contra fatos não há argumentos, é conduta suspeita querer formar juízos e construir hipóteses e argumentos num contexto em que, supostamente, só há "fatos". Mas teimo, ainda que por vezes em forma de perguntas, como precaução contra acusações instantâneas.

A ministra Anielle Franco é uma mulher empoderada. Não é automático entender por que ela teria precisado recorrer (se é que realmente o fez, pessoalmente, como se diz) a uma ONG internacional cujo mister é fazer denúncias públicas, dando voz e cobertura a mulheres anônimas, às quais protege no exercício do seu direito ao silêncio. Sendo uma ONG cujo trabalho é valorizado e promovido pela própria ministra, a explicação pode vir daí.  Assim como são críveis informações que circulam de que a primeira-dama do país foi uma das primeiras pessoas amigas com quem teria compartilhado a amarga experiência. Sendo ambas, pelos papéis que exercem, colaboradoras e incentivadoras relevantes da missão da ONG, fica ainda mais persuasiva a explicação sobre a razão da entrada em cena dessa última. Mas se de fato houve denúncia, pela ministra, cabe a pergunta: sendo colega, no mesmo nível, daquele a quem estaria acusando, não haveria, no âmbito do governo, vias institucionais para apurar e punir? Por que essa via só é acionada depois que Almeida foi julgado por um simulacro de opinião púbica? Não seria possível, inclusive, escolher (em entendimento com o chefe do governo) se isso se faria, a princípio, publicamente ou não? E não poderia tornar pública a denúncia, se e quando quisesse, ou pudesse, caso a opção inicial pela discrição se revelasse ineficaz, por inação de a quem recorreu? Sim, ela é mulher e, pelo que se diz, uma vítima, mas, certamente, é também uma ministra de estado.

Segundo ponto para refletir: durante esses quase dois anos de governo ficaram mais ou menos públicos desentendimentos entre os dois ministérios, em geral atribuídos a divergências entre um suposto modus operandi mais "acadêmico" de Almeida e uma "cultura de ONG" que marca o ministério de Anielle. Além disso, também, a diferenças entre grupos reportados ao âmbito do Movimento Negro (Unegro e Convergência Negra teriam ligações com Almeida, a Coalizão Negra com Aniele).

Do mesmo modo - assim meio público, meio opaco - transbordavam de bastidores para a imprensa sinais de problemas entre o agora ex-ministro e a primeira-dama. O primeiro exonerara um secretário do ministério que fora indicado pela segunda. E Almeida teria negado, em desacordo com sua colega de ministério, um financiamento importante, exatamente para a Me Too, recomendada pela primeira-dama. Em resumo, parece que Almeida quis dizer que o ministro era ele.  E parece também que não seria possível resolver essas e outras querelas pela via palaciana porque, até antes do tsunami de agora, o ministro era irremovível, pelas circunstâncias aclamatórias de sua indicação em tempos identitários. Devemos subestimar o efeito incômodo que essa condição sobranceira causava ao presidente?

Lembremos ainda, como quarto ponto, de murmúrios antigos sobre insatisfação do influente grupo Prerrogativas com a indicação de Almeida para um ministério que o grupo teria cobiçado, lá atrás. Terá o afastamento do ministro agradado também a ele, além de a Janja e à sua ministra protegida? A cogitação ganha corpo após as primeiras reações de Silvio Almeida às acusações e à sua exoneração do governo. Se houve coalizão de veto, somada ao incômodo pessoal do presidente com a aparente intocabilidade de Almeida e se a soma não bastava para a demissão do ministro, o que mais poderia acionar o gatilho? Cabem hipóteses, mas quem surgiu em cena foi a primeira-dama, logo após a Me Too.

Por fim, um abraço e um beijo. Na CNN concluiu-se, com razão, na noite da sexta-feira, 06/09, que aqueles que a ministra Anielle Franco ganhou da amiga e mentora, com direito a publicação no Instagram, constituíram o gesto decisivo da exoneração de Almeida. O presidente Lula teria assinado o ato que converteu o fato simbólico em um fato de direito. Analiticamente, aquele gesto pode ser interpretado como coroamento de uma operação que começou com a escolha da Me Too como agente deflagrador da acusação?  É o que interpreto, com uma ressalva e um complemento. 

A ressalva é que um efetivo gesto de assédio, se foi cometido por Almeida, pode ter sido o elemento fático, imprescindível, na sequência, para legitimar a operação.  Parece mesmo não se tratar de um factoide tosco, até porque é difícil supor que a ministra se expusesse assim. 

O complemento é que o modo escancarado com que os elos se apresentam, sem sinal de dissimulação, também não indicam método tosco, mas que o escancaramento selado pelo beijo foi deliberado, para ostentar a influência política da primeira-dama.  É possível, sim, sentir cheiro de uma urdidura bem sucedida de pequena política subterrânea, que tirou o cargo de Almeida e jogou sua reputação na lama.

Não se pode ainda saber se já existia, antes da acusação, ou se existe agora, algum entendimento político para a ocupação do cargo. Se sim, será de um jeito que agradaria à atual ministra da Igualdade Racial e seus aliados, com a absorção do ministério que hoje ocupa pelo que ficou vago, ficando o combo nas suas mãos, como reconhecimento do protagonismo simbólico de sua múltipla condição de mulher, de negra, de irmã de uma mulher icônica e de parceira amiga da primeira-dama da República? Ou Janja da Silva estará combinada com Lula para entregar o cargo a alguém que o Prerrogativas indique?  Se não há acordo ainda e sim disputa, como Lula arbitrará? Entregará as batatas à primeira-dama? Prestigiará o Prerrogativas? Ou encontrará uma terceira solução?

Por fim, um ponto para pensar, para fora dessa luta de bastidores: se houve uma armação subpolítica e deu certo, ela ficará restrita a uma briga de cozinha, sem afetar mais amplamente a política do país? Seu efeito será só o de Lula livrar-se de um ministro indemissível para atender a alguma pressão de outros grupos pelo cargo? Parece ser um desdobramento provável. Possivelmente, o mais esperado por Lula.

Outra hipótese é o episódio ter alguma repercussão sobre a imagem pública geral do governo e do presidente no futuro político-eleitoral imediato, leia-se, a sucessão. Qual seria/será essa repercussão?

Negativa, com desgaste da imagem do governo, por conta não só do movimento negro, mas de outros setores da sociedade civil e de atitudes futuras de atores da coalizão de governo? Afinal, não faltará quem tenha dificuldade em digerir o desfecho, mesmo que agora não se possa falar quase nada, perante o veredicto acachapante dos tribunais morais. Mas, como sabemos, vingança é prato que se serve frio e desconfiança é matéria-prima de operadores da política. Nesse sentido, a conspícua influência de Janja, que sua vitória sugere, colaboraria mais para coesão ou para a fragmentação política do governo?

Ou, quem sabe positiva, no sentido de, passada a tempestade, Lula aparecer como defensor das mulheres? Essa deve ser a expectativa de Janja da Silva e talvez até do próprio Lula, abrindo espaço a um discurso que, ademais, combina com a forte exposição da imagem da primeira-dama, sabe-se lá com que objetivo político, além da nobre causa das mulheres, da vaidade pessoal ou da ambição de poder da personagem. Se essa conjectura está no radar do casal presidencial, sua confirmação está entregue ao teste do tempo, que mostrará a distância, curta ou larga, entre o desejo de bonança e a realidade.

*Lete: o rio do esquecimento; Eris: senhora da discórdia; Poseidon: deus dos mares revoltos e da bonança.

**Cientista político e professor da UFBa.

 

4 comentários:

  1. E ninguém se lembrou do menino do MEP? MAM

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  2. Anônimo9/9/24 14:27

    Muito se faz de quem pouco se espera. Diabruras urdidas na cozinha do Presidente alimentam ambições de quintal

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  3. Anônimo9/9/24 19:23

    Muito bom! Como o colunista afirma: "A acusação contundente dispensou-se da descrição. Ao acusado cabe adivinhar." Como o acusado pode se defender de algo que não foi explicitado em qualquer "denúncia"? Por que não houve queixa ou boletim de ocorrência na Polícia? Porque não houve denúncia formal nalgum canal oficial do governo? Por que uma organização esquisita como "Me Too" entrou na história e uma ministra se reporta a ela e não aos canais oficiais do governo do qual esta ministra é uma das principais figuras? As acusações se baseiam em diz-que-diz e o acusado tem que adivinhar do que é realmente acusado?

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