O Globo
População se deixou seduzir por candidatos
mais pragmáticos, que olham para suas necessidades sem superioridade
sociológica da esquerda
Raro exemplo de renovação da centro-esquerda
brasileira, o prefeito reeleito do Recife, João Campos (PSB), forneceu na
última segunda-feira, no Roda Viva,
reflexões valiosas para seu campo político a respeito do muito que deveria
mudar para responder à preocupante desconexão com o eleitorado evidenciada
pelas disputas municipais.
Um dos maiores erros que os políticos podem
cometer, disse ele, é achar que sabem tudo, que têm solução para tudo sem ouvir
o povo. Contou a história de uma obra da prefeitura que comanda para reformar
um campo de várzea que era troncho (torto), e a comunidade fez um protesto para
evitar que fosse deixado reto. Ele mandou parar a obra e ouvir todos os que
usavam o campo.
— Ganhou para ficar troncho mesmo. Você
precisa combinar com o povo — contou.
A parábola — saborosíssima, à moda das que seu pai, Eduardo Campos, que morreu em plena campanha presidencial há dez anos, adorava contar — ilustra à perfeição um dos pecados mortais da esquerda lulista: achar que tem o mapa para o coração dos mais pobres e a receita de como resolver a vida deles.
As derrotas de norte a sul do país — com o
travo amargo do resultado de São Paulo, onde um dos favoritos de Lula para
herdar seu espólio, Guilherme Boulos, obteve exatamente o mesmo resultado de
quatro anos atrás, mesmo gastando dez vezes mais — são fruto, em grande medida,
dessa soberba que não leva em conta as rápidas e profundas transformações
sociais e tecnológicas que o mundo atravessa.
O dia seguinte da eleição foi marcado, nas
hostes progressistas, aí incluídos os intelectuais que apoiaram Boulos, por
lamentos que não escondiam certo desprezo por um povo que não saberia votar
diante da escolha entre o candidato do PSOL e o prefeito reeleito, Ricardo
Nunes. Faltou sair do Instagram e ir até as periferias da cidade verificar se o
prefeito insosso e sem carisma fez, afinal, uma gestão que mudou a vida das
comunidades de alguma maneira. E, se fosse o caso, a partir da escuta,
reconhecer essas conquistas e se empenhar em aprimorá-las.
Paradoxalmente, foi a esquerda quem ficou
encastelada enquanto Nunes, um
ex-vereador sem magnetismo, construiu uma frente ampla em torno de si e
irrigou as populações mais desassistidas com obras que elas reconheceram.
Do meio para o fim da campanha, Lula, seus
ministros e candidatos passaram a admitir que não conseguiam falar com uma
parcela da classe trabalhadora. Só chegaram a esse ensaio de mea-culpa graças
ao furacão Pablo Marçal, porque vinham ignorando as evidências ao longo dos
dois últimos anos, deixando correr solta a negociação desastrosa da
regulamentação do trabalho por aplicativos pelo Ministério do Trabalho
comandado por Luiz Marinho, com nomes tão analógicos e passadistas quanto ele.
As eleições mostraram que nem só os novos
trabalhadores e os evangélicos explicam o insucesso da esquerda. Também a
população que quer segurança, educação, saúde, moradia e saneamento se cansou
de tanta teoria e de um repertório que se concentra só nos programas
assistenciais e se deixou seduzir por candidatos mais pragmáticos, que olham
para suas necessidades sem superioridade sociológica ou sem necessidade de lhes
provar que o campo reto é melhor para suas vidas que o campo troncho com que
está familiarizada.
João Campos acerta outra vez ao dizer que o
governo Lula é melhor do que a percepção que os eleitores têm dele. E no
porquê: porque, para cada acerto, o presidente implode a repercussão com uma
pauta desastrosa, como receber Nicolás Maduro com honras de estadista quando o
brasileiro acha que se trata de um ditador sanguinário.
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, faria um
serviço bem melhor se se abrisse e ouvisse vozes aliadas que reconhecem que as
coisas não vão bem enquanto há tempo de corrigir a rota. Mas a escuta, essa
qualidade básica da política exercida no caso do campinho do Recife, não parece
ser um sentido dos mais aguçados na esquerda lulista, mais preocupada em louvar
a absolvição de José Dirceu e a viver eternamente da revisão do passado do que
em olhar para a frente.
Excelente texto! A entrevista do prefeito reeleito no Roda Viva também foi excepcional. Um político novo, pouco experiente, mas sem os vícios que a maioria das raposas políticas apresenta.
ResponderExcluirPerfeito !
ResponderExcluirJá vinha simpatizando com João Campos, assim como simpatizo com Tabata Amaral. A entrevista já está engatilhada.
😎
Adorei a entrevista.
ResponderExcluirConcordo com os três acima, seja pela qualidade do texto de Vera Magalhães quanto à boa participação de João Campos, que demonstra maturidade agora inexistente em Lula & Cia.
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