quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Prisão de bicheiro traz oportunidade contra o crime

O Globo

Desta vez, Justiça não deveria impedir que Rogério Andrade fique preso e que sua quadrilha seja desbaratada

A prisão do bicheiro Rogério Andrade, na manhã desta terça-feira no Rio de Janeiro, representa um passo importante no enfrentamento à máfia dos jogos de azar que há anos, graças à leniência das autoridades, protagoniza uma guerra sangrenta pela disputa de território na cidade. Sobrinho do conhecido bicheiro Castor de Andrade, que morreu em 1997, Rogério é acusado de ser o mandante do assassinato do também contraventor Fernando Iggnácio (genro de Castor) em novembro de 2020. Na decisão judicial , Rogério é citado como chefe de um grupo criminoso “voltado para a prática de diversos crimes”, entre os quais homicídio, corrupção, contravenção e lavagem de dinheiro.

O assassinato de Iggnácio foi motivado, segundo o MP, pela disputa pelo controle da exploração de jogo do bicho, videopôquer e máquinas de caça-níquel. Rogério e mais cinco foram denunciados por homicídio triplamente qualificado. O crime é apenas uma parte visível da guerra sem fim travada pelos contraventores. Em 1998, Paulo Roberto de Andrade, filho de Castor, fora assassinado na Barra da Tijuca com um segurança. Iggnácio assumiu seus pontos de jogo. Noutro episódio sangrento, em abril de 2010 o filho de Rogério morreu em atentado.

Está certa a Justiça em determinar que ele vá para um presídio federal de segurança máxima, com Regime Disciplinar Diferenciado, mais restritivo. A própria decisão judicial ressalta que Rogério tem contatos na área de segurança. Há muito são conhecidas as relações promíscuas entre contraventores e policiais. Ficou famosa a frase de Castor durante o estouro de sua fortaleza em março de 1994: “Que polícia é esta?”. A operação era tocada por um grupo restrito de promotores e PMs do Serviço Reservado que não constavam da “folha de pagamento” do bicho. A histórica operação, em que foi apreendida uma lista detalhando propinas pagas a políticos e agentes públicos, escancarou o modo de agir da contravenção, mantido até hoje.

A despeito de a operação contra Rogério se chamar Último Ato, não se sabe quanto tempo ficará preso. O prende-solta se tornou rotina na vida dele — e diz muito sobre os labirintos da Justiça brasileira e a incapacidade dos investigadores de produzir provas robustas que levem à condenação. Em março de 2021, o MP já denunciara Rogério pela morte de Iggnácio. Mas, em fevereiro de 2022, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal trancou a ação. Os ministros entenderam que a denúncia não descrevia o modo de participação de Rogério como mandante do assassinato. Desta vez, a Justiça não deveria impedir que ele seja punido e sua quadrilha desbaratada.

Impressiona que contraventores com extensa ficha criminal mantenham vida social agitada, sob o olhar complacente de autoridades e da sociedade. Rogério é patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, uma das mais populares do Rio. Sua mulher, Fabíola Andrade, desfila como madrinha de bateria da agremiação. Nos desfiles, contraventores se esbaldam em camarotes do Sambódromo, por vezes frequentados por autoridades e figuras do meio jurídico.

Independentemente das batalhas jurídicas que costumam cercar esses casos, MP e polícia não podem baixar a guarda. As autoridades precisam fechar o cerco contra essa máfia que comete os crimes mais brutais, depois vai se divertir no Sambódromo.

É positivo acordo para indenizar vítimas da tragédia de Mariana

O Globo

Desfecho da negociação não supre todas as perdas, mas traz reparação e compensações necessárias

Próximo de completar nove anos, o maior desastre ecológico da História brasileira enfim é objeto de um acordo razoável. A mineradora Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, sócias na Samarco, fecharam na semana passada um entendimento segundo o qual desembolsarão R$ 132 bilhões, além dos R$ 38 bilhões já desembolsados, para compensar os danos provocados pela ruptura da Barragem do Fundão, em Mariana (MG).

O desastre, em 5 de novembro de 2015, liberou 43,7 milhões de m³ de lama, volume comparável ao do Pão de Açúcar. O rio de lama contaminada por rejeitos de mineração matou 19 pessoas, atingiu a Bacia do Rio Doce e, depois de percorrer 670 quilômetros, chegou ao mar no Espírito Santo. A população ribeirinha foi atingida, incluindo comunidades de pescadores, que tiveram de parar de trabalhar. Ao todo foram afetados 49 municípios — 38 mineiros e 11 capixabas.

Levando em conta as características inéditas do desastre, sua dimensão e a abrangência do entendimento a que se chegou na Justiça, foi positivo o desfecho das negociações que envolveram, além de Vale e BHP, os governos federal, de Minas e Espírito Santo, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e diversas organizações e entidades civis ligadas ao meio ambiente. Como toda reparação, o resultado não trará de volta tudo o que foi perdido. Mas é um desfecho à altura de capítulo tão doloroso.

Por meio da Fundação Renova, criada em 2016 como parte de um termo de ajuste de conduta firmado com União, governos estaduais e organismos ambientais, Vale e BHP já destinaram R$ 38 bilhões a 415 mil pessoas, incluindo comunidades indígenas e quilombolas. A estimativa é que, agora, com a extinção da fundação, 300 mil famílias sejam beneficiadas por mais R$ 32 bilhões, transferidos diretamente pela Samarco num prazo de dois anos. A indenização por pessoa é estimada em R$ 35 mil, ante média de R$ 18 mil em casos semelhantes. Para pescadores e agricultores prejudicados, serão destinados R$ 95 mil. Os R$ 100 bilhões restantes serão repassados durante 20 anos ao BNDES, com o objetivo de financiar a recuperação ambiental e projetos apresentados por comunidades locais. Estão previstos recursos para aumentar o custeio da rede do SUS na Bacia do Rio Doce.

Com o acordo, ficam extintas no Brasil 181 ações civis públicas, incluindo as por danos morais e danos coletivos. Mas persiste uma ação de reparação impetrada em Londres contra a BHP pelo escritório Pogust Goodhead, em nome de 620 mil atingidos pelo rompimento da barragem. O escritório é especializado em processos relacionados ao direito ambiental e direitos humanos movidos contra grandes conglomerados, e o caso é considerado um dos maiores na Justiça britânica. O julgamento começou na semana passada. O acordo fechado no Brasil, com aval de tantas instâncias públicas e a adesão de tantos afetados, será um trunfo da BHP. Como não será possível às vítimas receber duas indenizações — e a brasileira está assegurada —, o processo britânico tende a se esvaziar.

Terras-raras são trunfo do Brasil na disputa geopolítica

Valor Econômico

Governo e setor privado no Brasil precisam se mobilizar para capturar uma fatia dos investimentos futuros

O Brasil tem uma carta relevante para jogar na sua relação com os países ricos do Ocidente. Com a tensão crescente entre EUA e China, Washington vem buscando desenvolver uma cadeia própria de produção de minerais estratégicos. As reservas brasileiras de terras-raras constituem ativo importante, e o Brasil pode se tornar parceiro preferencial.

As terras-raras são um conjunto de 17 elementos químicos com algumas propriedades particulares, como magnetismo intenso. São essenciais em aplicações como super-ímãs, motores de veículos elétricos, HD de computadores e catalisadores químicos. No setor de defesa, são utilizadas na fabricação de aviões, submarinos, mísseis, drones e lasers, entre outros.

A China tem as maiores reservas comprovadas de terras-raras, com cerca de 44 milhões de toneladas, segundo os dados mais recentes do Serviço Geológico dos EUA (USGS). Em seguida vêm Vietnã (22 milhões), Brasil (21 milhões), Rússia (10 milhões) e Índia (6,9 milhões). As reservas brasileiras podem ser ainda maiores, pois houve pouca prospecção na Amazônia. Quase tudo o que se conhece está em areias no litoral ou perto de vulcões extintos, como em MG e GO.

Os EUA detêm apenas 1,8 milhão de toneladas. Nenhum país da Europa ocidental tem reservas significativas. Assim, dos cinco países com as maiores reservas, o Brasil é certamente o único aliado confiável dos EUA. É também o único fora da Ásia, e a proximidade é uma segurança adicional.

Além de ter as maiores reservas, a China domina a produção mundial de terras-raras. Das 350 mil toneladas produzidas em 2023, segundo o USGS, a China respondeu por 240 mil (quase 70%), seguida por EUA (43 mil), Mianmar (38 mil), Austrália (18 mil) e Tailândia (7,1 mil). O Brasil produziu apenas 80 toneladas. Ou seja, as reservas brasileiras são praticamente inexploradas.

O negócio das terras-raras em si é pequeno, mas está crescendo. A produção mundial dobrou nos últimos cinco anos. E provavelmente continuará aumentando, já que a demanda mundial por produtos intermediários que as têm como insumo deve continuar em alta, puxada pela transição energética.

A dependência das terras-raras chinesas é uma das maiores vulnerabilidades estratégicas do Ocidente em relação à China. Num momento em que os EUA buscam restringir o acesso de Pequim a tecnologias avançadas, como chips mais modernos, existe sempre a possibilidade de a China retaliar limitando o acesso ocidental às terras-raras. Isso em parte já ocorreu. Em 2023, Pequim proibiu a exportação de tecnologia de extração e processamento desses elementos, para dificultar a produção em outros países.

Para enfrentar essa vulnerabilidade, os EUA vêm buscando ativamente desenvolver uma cadeia de produção de terras-raras em países aliados. Junto com Alemanha, Japão, Canadá, Austrália e França, entre outros, os EUA montaram a Minerals Security Partnership, com objetivo declarado de criar uma cadeia de suprimento diversificada, segura e sustentável para minerais críticos. A oportunidade para o Brasil está em se inserir nessa cadeia ligada ao Ocidente.

Os principais obstáculos para o Brasil são dificuldades técnicas do processamento, que envolvem tecnologias que o país não domina completamente, principalmente no caso dos produtos intermediários, como os super-ímãs; os investimentos elevados; e a concorrência da China. É improvável que qualquer país consiga concorrer com os chineses em preço.

A questão da concorrência com o produto chinês, no entanto, poderá ser contornada diante da necessidade estratégica americana de assegurar o suprimento de terras-raras no longo prazo. Se os EUA quiserem diversificar em relação à China, terão de pagar um prêmio. É mais fácil negociar esse prêmio com empresas de defesa, que vendem basicamente para os governos nacionais. Mas é difícil equacionar com empresas de outros setores, como carros elétricos, computadores e geradores eólicos. Quem financiará o custo extra dessas empresas? Isso ainda não está claro. Quanto à tecnologia, parte dela é dominada por empresas ocidentais e parte terá de ser desenvolvida, o que também abre uma avenida de cooperação para que empresas e instituições brasileiras participem.

Há muitas negociações em andamento nesse sentido. Uma delas já rendeu frutos. A brasileira Mineradora Serra Verde, apoiada por capital ocidental, começou neste ano a produção comercial de concentrado de terras-raras na sua jazida em Minaçu (GO). A empresa pretende produzir 5 mil toneladas anuais, com potencial de dobrar a produção até 2030. Isso colocaria o Brasil entre os maiores produtores mundiais.

Mas essa janela de oportunidade pode não durar muito, à medida que essa nova cadeia de suprimento ligada ao Ocidente for sendo montada. A Austrália, com cerca de um quarto das reservas brasileiras, anunciou um segundo grande projeto de terras-raras. Governo e setor privado no Brasil precisam se mobilizar para capturar uma fatia dos investimentos futuros.

Um desafio é convencer os americanos de que o Brasil é e seguirá sendo um parceiro confiável do Ocidente. Nesse sentido, a retórica antiamericana de parte do governo e do PT certamente não ajuda.

Tarifa de ônibus deve ser definida sem populismo

Folha de S. Paulo

Prefeito de SP se vê pressionado sobre reajuste; cálculo deve prever sustentabilidade do sistema com equilíbrio fiscal

Bastaram apenas algumas horas para que a realidade começasse a sobrepujar a empolgação com a vitória de domingo (27). Despido do figurino de candidato, o prefeito reeleito de São PauloRicardo Nunes (MDB), teve de lidar já no dia seguinte com um tema espinhoso para qualquer gestor municipal: o valor da tarifa de ônibus.

Questionado pela imprensa, Nunes não descartou eventual reajuste na passagem a partir do ano que vem. "Em dezembro, havendo possibilidade, a minha vontade é manter. Se por acaso a gente não tiver possibilidade, aí eu vou explicar para a sociedade."

Trata-se de uma explicação que envolve bilhões de reais. Com a tarifa artificialmente mantida em R$ 4,40 desde janeiro de 2020, o subsídio repassado às empresas de ônibus para mantê-la assim vem aumentando nos últimos anos e deve consumir só em 2024 R$ 6,5 bilhões —quase metade do orçamento do transporte.

Executada a fórceps, a manobra é pouco justificável quando se observa que trens e metrôs, cujos modais são de responsabilidade estadual e complementares aos coletivos por meio das integrações, reajustaram as tarifas de R$ 4,40 para R$ 5 em janeiro.

Não há mágica nas finanças públicas: se fosse aplicada a inflação dos últimos quase quatro anos, a tarifa deveria custar hoje em torno de R$ 5,77 (31,2% a mais).

Logo, o aparente alívio no bolso dos passageiros nesse período impôs gastos fabulosos ao contribuinte paulistano. A prefeitura também poderia ter investido esses bilhões em outras áreas essenciais, como a ampliação da rede de saúde e do programa de moradias, promessas de Nunes.

A cautela do prefeito ao protelar ao máximo a decisão é, em parte, compreensível. Na capital, trata-se de tema sensibilíssimo desde junho de 2013, quando um aventado aumento de R$ 0,20 nos transportes impulsionou uma onda de protestos que depois se alastrou por todo o país.

Nunes afirma que a pressão inflacionária, de modo geral, e o preço do diesel serão determinantes para projetar o valor da passagem. O avanço inaudito das gratuidades, contudo, também deve ser posto na balança.

Em dezembro de 2023, o prefeito implementou a tarifa zero aos domingos, o que deverá provocar uma renúncia de receita de R$ 240 milhões ao ano.

Outra promessa de campanha é o "Mamãe Tarifa Zero", programa que concede isenção a cerca de 150 mil mulheres que têm filhos nas creches municipais. Se de fato levado adiante, terá impacto considerável na conta final.

As gratuidades são políticas públicas legítimas, mas devem estar restritas aos estratos mais vulneráveis da população e alinhadas à sustentabilidade do sistema.

Com um Orçamento recorde de R$ 123 bilhões para o ano que vem, quase 10% maior que o de 2024, cabe ao prefeito estabelecer prioridades à luz do equilíbrio fiscal, sem malabarismos populistas nem postergações ao sabor de conveniências eleitorais.

Mundo tem ajuste econômico difícil pela frente

Folha de S. Paulo

FMI aponta necessidade de controle global dos gastos públicos; no Brasil, desequilíbrio fiscal leva à alta dos juros

As novas projeções do Fundo Monetário Internacional para a economia mundial apontam redução adicional da inflação —de 6,7% em 2023 para 5,8% neste ano e 4,3% em 2025— num contexto de crescimento estável em patamar razoável, de 3,2% anuais neste ano e no próximo. Não houve alteração relevante desde as estimativas anteriores, de abril.

Por trás da aparente boa situação, porém, esconde-se a necessidade de delicada gestão econômica para fazer frente aos múltiplos riscos existentes.

A queda da inflação desde 2022, sem que tenha ocorrido uma recessão mundial, é um sucesso inesperado diante da sequência de choques desde a pandemia, com o inédito salto nos gastos públicos e a alta nos preços das matérias-primas em decorrência da guerra na Ucrânia.

O combate às pressões de preços se deu com um aumento sincronizado dos juros globais, que agora dá sinais de arrefecimento. Para o FMI, os próximos dois anos demandam um arranjo na direção de cortes nas taxas, de um lado, e ajuste fiscal, de outro.

Tal calibragem é difícil, pois depende de decisões orçamentárias de ampla repercussão —ainda mais num contexto mundial de instabilidade geopolítica e incertezas eleitorais.

Sobretudo nos Estados Unidos, com uma eventual vitória de Donald Trump, há risco de combinação de expansão dos gastos públicos com tarifas de importação elevadas e restrições à imigração.

O impacto dessas políticas seria mais inflação e a possível interrupção da queda dos juros no principal centro financeiro global, com consequências para todos os países na forma de alta do dólar e do custo do dinheiro.

Para o Brasil, a visão do FMI não deixa de incorporar aspectos positivos. O país teve a maior revisão positiva para o crescimento do PIBde 2,1% para 3% neste ano, entre as principais economias, uma rara boa notícia.

Contudo o descompasso entre as políticas fiscal e monetária é especialmente agudo aqui. A expansão da atividade é impulsionada pelo enorme aumento dos gastos públicos, algo insustentável ante a escalada da dívida.

Ao contrario do que se observa nas principais regiões, no Brasil os juros estão subindo devido à renitente pressão inflacionária. Não se descarta que a taxa do Banco Central chegue a 12,5% anuais nos próximos meses.

É necessária uma correção de rumos, com controle de despesas para conter pressões inflacionárias e evitar um arrocho monetário recessivo. Adiar o inevitável exporá o país a riscos crescentes.

A vez de Dirceu no festim da impunidade

O Estado de S. Paulo

O STF continua a reescrever a história do Brasil. Agora, Gilmar Mendes livra o ‘guerreiro do povo brasileiro’ que havia sido condenado com provas robustas no escândalo do petrolão

Os “editores de um país inteiro”, como disse o ministro Dias Toffoli a propósito do Supremo Tribunal Federal (STF), não descansam em seu propósito de reescrever a história do Brasil. Na segunda-feira, o ministro Gilmar Mendes anulou todas as condenações do veteraníssimo petista José Dirceu no âmbito da Operação Lava Jato. Segundo ele, os efeitos da decisão que considerou o então juiz Sérgio Moro suspeito em processos que envolvem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se estendem a Dirceu.

Dirceu, talvez a face mais notória da era de corrupção lulopetista que começou no mensalão e terminou no petrolão, estrelou os dois escândalos. No mensalão, pegou 10 anos de prisão; no petrolão, foi condenado a 23 anos de prisão, em condenações confirmadas por duas instâncias, que reconheceram as robustas provas documentais dos crimes. Tudo isso foi desconsiderado pela canetada revisionista de Gilmar Mendes.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou contra o pedido de extensão das decisões que beneficiaram o presidente Lula: “Decerto que não se repete decisão para casos que não sejam iguais. Quando os pedidos são diferentes, não cabe repetir ou estender a decisão anterior”, diz o parecer da PGR. “As partes e os fundamentos fáticos são visivelmente distintos quando se contrasta a petição que deu origem ao Habeas Corpus n. 164.493 (que beneficiou Lula) com o pedido de extensão em exame”. Para usar a linguagem popular, cada caso é um caso. Como enfatizou a PGR, o próprio STF já decidira sobre a impossibilidade de extensão de benefício em habeas corpus distintos.

Mas nada disso importa. Os ministros responsáveis por casos relativos à Lava Jato firmaram a tese, baseada em provas obtidas por meios ilegais, de que tudo o que diz respeito à Operação, inclusive as evidências materiais dos crimes, está irremediavelmente contaminado. Nas palavras superlativas de Toffoli, tudo não passou de “uma armação fruto de um projeto de poder”, “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”.

Esse “tudo” não é pouca coisa. As confissões, delações e provas, os ativos bilionários recuperados em contas no exterior, as investigações conduzidas por promotores estrangeiros sem qualquer relação com a política nacional, todas as evidências reconhecidas em todas as instâncias judiciais do maior esquema de corrupção de quem se notícia no Brasil, tudo isso não seria mais que um delírio coletivo vivido pela população brasileira, orquestrado por Moro e a força-tarefa da Lava Jato.

O STF, que por anos validou a Operação, agora se empenha em fazer terra arrasada de seus resultados. Uma a uma são anuladas provas de acordos de leniência, multas e condenações. Até criminosos confessos são inocentados sob o argumento estapafúrdio de que teriam sofrido coação – “tortura psicológica” no “pau de arara do século 21″, segundo Toffoli. Quando o ministro André Mendonça, colega de Toffoli e Mendes, perguntou a 12 empresas com acordos de leniência se tinham sido vítimas de coação, nenhuma bancou a tese. Para piorar, as consequências desse suposto constrangimento ilegal são seletivas: os ônus dos acordos de leniência são sustados, mas os bônus – entre eles o de não sofrer persecução penal – são mantidos. A tese do “conluio” contra “guerreiros do povo brasileiro” como Dirceu e seus amigos empreiteiros é tão abstrata que atinge até processos que nada têm a ver com 13.ª Vara Federal de Curitiba, como os acordos de leniência firmados entre a J&F e o Ministério Público Federal.

Não se corrige um erro como outro. A pretexto de reparar os excessos punitivistas da Lava Jato, a orgia garantista do STF está promovendo a impunidade e desmoralizando a Corte. O silêncio de meses do colegiado sobre essas decisões monocráticas só agrava a situação.

Certa vez, num dos muitos convescotes promovidos por lobistas mundo afora, uma mulher perguntou a Gilmar Mendes se “o crime no Brasil compensa”. Visivelmente constrangido, o ministro respondeu: “Não sei”. A resposta que está sendo exarada pela Corte agora é bem mais assertiva.

Votar é um direito, não um dever

O Estado de S. Paulo

Fim do voto obrigatório só faria bem à democracia. Tanto mais forte ela será quanto mais depender da palavra de convencimento dos eleitores, não de uma lei anacrônica e paternalista

A abstenção na cidade de São Paulo neste segundo turno da eleição municipal foi de 31,54%, um recorde sob a vigência da Constituição de 1988. Isso corresponde a 2,94 milhões de eleitores, número que supera com folga os 2,3 milhões de votos dados pelos paulistanos ao candidato derrotado na rodada final do pleito, Guilherme Boulos (PSOL). Em nível nacional, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 29,26% dos cerca de 34 milhões de brasileiros aptos a votar no domingo passado deixaram de comparecer às seções eleitorais.

Como se vê, são números bastante expressivos, mas nada surpreendentes. A bem da verdade, nos últimos anos, a abstenção no Brasil oscilou muito próxima desse patamar de um terço do eleitorado. Em democracias consolidadas, como nos Estados Unidos e em muitos países da Europa, os porcentuais de eleitores que deixam de exercer seu direito ao voto costumam ser até maiores, tendo em vista que se trata de países em que o voto não é obrigatório como aqui. Logo, não se pode falar em “falhas” do sistema representativo nem da democracia, que, como se sabe, não se limita ao ato de votar.

Na realidade, trata-se de uma constatação bem mais singela: se é de uma democracia liberal que estamos falando, então é perfeitamente natural que alguns eleitores, de livre e espontânea vontade, decidam abster-se de votar pelas razões que julgarem convenientes.

Subjaz à obrigatoriedade do voto no Brasil a presunção de que a maioria dos eleitores, se pudesse, não sairia de casa para votar. Logo, é preciso fazê-lo ir às urnas, em nome da preservação da democracia. De fato, a democracia precisa ser diariamente preservada, mas um bom meio de fazer isso é acreditar na capacidade dos cidadãos de tomar decisões racionais. No Brasil, contudo, a sociedade é vista como hipossuficiente, razão pela qual não só o voto é obrigatório, como a Justiça Eleitoral com frequência escolhe até mesmo o que o eleitor pode ler, ver e ouvir numa campanha eleitoral.

Ora, é preciso olhar para os números de abstenção em São Paulo e no País com mais maturidade, não com choque, apreensão nem muito menos preconceitos. Em muitos casos, a abstenção é uma manifestação política tão legítima e democrática quanto sufragar um voto na urna. Nesse sentido, como apontaram diversas pesquisas de opinião, não foram poucos os paulistanos que não se sentiram inspirados – e, portanto, motivados a votar – pelas candidaturas do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e de seu adversário.

Ademais, não se pode perder de vista outros dois fatores que podem ter contribuído para esse registro recorde de abstenção – que, provavelmente, indica uma tendência. O primeiro, mais óbvio, é a extrema facilidade que os eleitores têm para justificar sua ausência ou para quitar sua obrigação eleitoral em dinheiro, por meio de uma multa de valor irrisório. O voto é obrigatório no Brasil apenas do ponto de vista formal. O segundo é o envelhecimento da população brasileira, o que fará aumentar cada vez mais o número de cidadãos que, embora sejam aptos a votar, não são mais obrigados por lei a fazê-lo.

É lícito inferir que o desencanto com as candidaturas apresentadas tenha sido, de fato, o maior fator motivador para esse registro recorde de abstenções. Apenas na capital paulista, somando a abstenção aos votos brancos e nulos, nada menos que 42% dos eleitores não votaram nem em Nunes nem em Boulos no segundo turno. Mas, a rigor, isso não tem a menor importância para a saúde da democracia no País. Obviamente, é mais que desejável que os partidos políticos se aproximem mais dos cidadãos e de suas angústias e anseios. Mas sempre haverá os que optarão por manifestar sua vontade política por meio do silêncio. E não se pode recriminar os que assim se manifestam.

Passa da hora de a sociedade, por meio de seus representantes no Congresso, debater seriamente sobre o fim do voto obrigatório no País. Ao invés de causar danos à democracia representativa, o voto facultativo obrigaria partidos e candidatos a se aproximarem dos eleitores a fim de motivá-los a sair de casa no dia da eleição. A democracia será tanto mais vibrante quanto menos depender de uma obrigação legal paternalista e mais da palavra de convencimento.

USP contra o antissemitismo

O Estado de S. Paulo

Investigação conduzida pela principal universidade do País é legítima e exemplar

A Universidade de São Paulo (USP) está movendo processo disciplinar que pode resultar na expulsão de cinco alunos por prática de antissemitismo. As diligências, que correm em sigilo e asseguram espaço de defesa aos investigados, devem ser concluídas em breve. É salutar que a principal universidade do País esteja conduzindo investigações sobre comportamentos potencialmente inexcusáveis, que nada têm a ver com a prática de livre circulação de ideias que suspostamente caracteriza o ambiente universitário. Manifestar-se favoravelmente aos palestinos ou de quem quer que seja é um direito em democracias como o Brasil, direito esse que não se confunde com intolerância religiosa ou étnica contra ninguém.

Desde a série de ataques promovida pelo grupo terrorista Hamas em 7 de outubro do ano passado, arrastando Israel para uma guerra sangrenta e sem paralelo nos últimos anos, protestos em prol dos palestinos eclodiram em universidades de todo o mundo. Não raro, alguns participantes de manifestações em geral legítimas em defesa dos palestinos, vítimas do próprio Hamas que supostamente os representa, cruzaram a linha e descambaram para manifestações preconceituosas contra os judeus. Nos Estados Unidos, três reitores da renomada Universidade Columbia foram removidos de seus postos por “mensagens de texto bastante problemáticas” que flertavam com “narrativas antissemitas”.

O processo em curso na USP avalia a conduta de estudantes que em texto compartilhado classificaram de “histórica” a barbárie perpetrada pelo Hamas no sul de Israel em outubro passado. Os terroristas torturaram, estupraram, sequestraram e mataram centenas de inocentes israelenses, provocando o revide de Israel e a morte de milhares de palestinos. Dos cinco estudantes investigados, dois são acusados de escrever o informe elogioso ao Hamas, enquanto outros três são suspeitos de disseminar mensagens antissemitas nas redes sociais.

A defesa dos acusados afirma que a universidade está perseguindo o livre debate de ideias. Fato é que o próprio Centro Acadêmico Favo 22, que realizou assembleia na qual o manifesto louvando os terroristas foi divulgado, pediu desculpas à época, afirmando não ter relação com o “informe”. Também é fato que diferentes campi da USP têm sido palco de antissemitismo explícito. Na Faculdade de Direito, por exemplo, inscrições nazistas foram identificadas em elevadores, mesas e cadeiras.

Ante o recrudescimento do antissemitismo no ambiente universitário, a atitude da USP de investigar a conduta dos alunos não é apenas legítima, mas exemplar. Ninguém foi condenado sumariamente e as expulsões só ocorrerão se as práticas antissemitas forem comprovadas. Em outros lugares do mundo, usar o sofrimento palestino para promover intolerância religiosa tem custado caro aos preconceituosos. As doações para a Universidade Harvard caíram 15% neste ano na esteira de protestos universitários antissemitas. Assim, perder a vaga na principal universidade do País é justo para quem, comprovadamente, promove intolerância.

Violência no futebol requer saída técnica

Correio Braziliense

Proibir adereços e materiais que identificam determinada organizada, jogos com portões fechados e multas monetárias são como enxugar gelo ou balançar as redes em impedimento

No último domingo, o Brasil assistiu a mais um caso de violência com integrantes de torcidas organizadas como protagonistas. O ataque feito pela Mancha Verde, ligada ao Palmeiras, deixou um membro da Máfia Azul, entidade relacionada ao Cruzeiro, morto na BR-381, onde ônibus foram destruídos e incendiados em Mairiporã, na Grande São Paulo. Outras 17 pessoas ficaram feridas.

As cenas da emboscada logo se espalharam nas redes sociais, principalmente em grupos de WhatsApp. Na mesma velocidade em que os conteúdos foram compartilhados, também apareceram opiniões que repetem chavões sobre episódios semelhantes. A cobrança é por uma punição exemplar, enquanto torcedores rivais tentam emplacar na agremiação agressora o título de "torcida mais desleal do país".

O roteiro é conhecido por qualquer torcedor mais atento ao noticiário: grande parte da imprensa condena a emboscada, as autoridades prometem uma resposta à altura e os suspeitos negam envolvimento no caso. Enquanto isso, a discussão sobre as reais causas do problema continuam ignoradas. A resposta se concentra sempre na coerção, que joga no mesmo time da ignorância científica.  

Autora do livro Futebol e violência, a pesquisadora Heloisa Helena Baldy dos Reis se dedica ao tema. Na publicação, que completa em breve 20 anos, ela indica possíveis linhas de combate ao problema nascido nos anos de 1980, evidenciando-o como uma questão social não só do esporte, mas também dele. 

A autora ressalta que o futebol é usado como plataforma para a manifestação violenta. Em um contexto social no qual boa parte das pessoas convive com saúde e educação vulneráveis, desemprego e falta de progresso, é comum o uso do esporte para reafirmação de comportamentos descontrolados, sobretudo entre os homens.

Cotidianamente colocados em posições de provedores da família, eles, diante das dificuldades socioeconômicas, recorrem ao reforço da masculinidade para se estabelecer socialmente. A arquibancada se torna um espaço onde podem se sentir no controle, sem as limitações que o cotidiano lhe impõe. Campo e bola viram, então, palcos do machismo sem questionamento coletivo.

É evidente que as soluções para um problema dessas proporções são também complexas, embasadas em conhecimentos técnicos. O que se cobra aqui é uma reflexão mais aprofundada sobre a violência no Brasil. Urge pensar a questão com a profundidade que ela merece, sem vícios e lugar-comum. As punições conhecidas pelo  torcedor pouco surtiram efeito ao longo dos anos. Proibir adereços e materiais que identificam determinada torcida organizada, jogos com portões fechados e multas monetárias são como enxugar gelo ou balançar as redes em impedimento. 

Há, ainda, punições que têm efeitos contrários — muitas delas pautadas no uso da força. A truculência policial incentiva ainda mais a sede pela masculinidade, em vez de frear os crimes cometidos pelas organizadas. Medidas sem base científica só servem para dar respostas momentâneas à opinião pública e ignoram a complexidade que envolve a violência em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, como o Brasil. 

Aqui também cabe cobrança aos clubes. Mais do que entender as complexidades do ganguismo, é preciso que eles banam dos seus quadros, e do futebol, posturas que estimulem a violência. O reforço de comportamentos violentos e da semiótica bélica dentro do esporte incendeia ainda mais um contexto já inflamado pelo ódio a quem deveria ser apenas um adversário esportivo. 

 


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